Indígenas revelam futuro possível em que medicina tradicional e conhecimento científico se complementam
Tenda da saúde no Acampamento Terra Livre traz formato inspirador, não só para a saúde indígena, mas para toda rede pública
Um espaço de acolhimento e saúde entre as alas do Acampamento Terra Livre se apresenta como perspectiva de um futuro possível – e ideal -, onde o conhecimento científico e os saberes tradicionais se complementam.
As irmãs Giovana e Joyce Cruz do povo Macuxi, de Roraima, coordenam uma equipe interdisciplinar em que mestres da medicina tradicional e profissionais da saúde trabalham em conjunto. Giovana é nutricionista residente da Fiocruz, enquanto Joyce é médica formada pela Universidade de Brasília (UNB), com especialização em Família e Comunidade.
Giovana conta que indispensável à mobilização desde a primeira edição – o ATL faz 18 anos em 2022 – a tenda de saúde cresceu na mesma proporção que o território transitório ativo até 14 de abril, concentrando 7 mil indígenas de todas as regiões do país.
“Cerca de 100 pessoas têm buscado o espaço diariamente. Ele está muito maior, bem estruturado e com mais recursos humanos para atender os parentes que saem de suas bases. É uma forma de minimizar os agravos que advêm da jornada até aqui”.
A tenda de saúde é parte dessa história. “Penso muito nessa construção, de sermos protagonistas dessa história”. Conforme aumenta a necessidade, cresce a relevância da medicina tradicional.
O formato é inspirador para hospitais, mas principalmente, para unidades de saúde indígena, “porque respeita nossa tradição”, reforça Giovana. “Trabalhei na Secretaria Especial de Saúde Indígena. Boa parte dos profissionais não são indígenas e tudo fica muito centrado na questão de o médico ser detentor da sabedoria. Há muita medicalização”.
A seu lado, a médica Joyce realça que o ATL é um momento de divulgar os benefícios do formato que respeita o conhecimento ancestral. “E principalmente, de cuidar de nossos parentes”.
E sobre o formato, defende um diálogo entre os saberes. “Essa é a nossa busca, que nenhum se sobreponha ao outro. O que vemos é uma violência do saber acadêmico ocidental se impondo sobre os nossos. Violência esta, que estamos tentando reverter. Fomos oprimidos. Mas temos que voltar a praticar e este espaço é perfeito”.
Sobre a medicalização, Giovana se posiciona também, dizendo que quando Joyce fala em reverter a situação, trata-se de mostrar aos parentes que a medicalização foi condicionada”.
“Mas a gente é contra”, diz Joyce. “Principalmente, porque muitos remédios trazem efeitos colaterais”. A especialização em Família e Comunidade lhe mostrou que há alternativa além da medicina baseada em órgãos. “Não se olha para a pessoa, que é completa. Além do mais, se você tem esses recursos naturais, por que usar remédios que trazem tantos efeitos colaterais? Você vê, nós, indígenas, sobrevivemos até hoje com nossa sabedoria ancestral, só precisamos de mais espaço”, defende.
Joyce diz que sente muito quando alguém usa o termo pajelança de modo pejorativo. “Isso é um ritual. É revoltante. Muitas vezes, na academia, ouvi esse desrespeito. Por exemplo, um médico dá um diagnóstico e determina um tratamento. Mas essa decisão tem que ser bilateral, é o corpo da pessoa, afinal. E então, quando questionados, muitos médicos dizem ‘então não posso fazer mais nada, procure a pajelança”, desabafa.
“Queremos que nossos saberes não fiquem à mercê, à margem, porque assim podemos praticar com mais segurança, muitas vezes a gente é marginalizado porque as pessoas desconhecem os benefícios da medicina tradicional”.
Atendimentos no ATL
Quem procura atendimento na tenda da saúde passa pelo acolhimento, onde recebe encaminhamento do médico do dia e então, o melhor atendimento.
Tem acolhida, conversa, orientações, massagem… “Porque imagina só, eles percorrem longa jornada até chegar aqui e estão em um pequeno território longe de casa. Vem de biomas diferentes… E daí tem cansaço, angústia, ansiedade, tensão”. E aí, a medicina tradicional com ervas para mastigar, cheirar e óleos de massagem chegam como um bálsamo.
Os atendimentos ocorrem das 8h às 19h e vale ressaltar, há médicos de plantão 24h, além de ambulância e equipes de emergência, se for o caso.
O ATL segue até o dia 14, no Complexo da Funarte. O tema deste ano é Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política.