Por Leila Monnerat

Um ataque armado contra os indígenas Guarani Kaiowá em Douradina/MS resultou em pelo menos dez feridos. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o ataque na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica ocorreu logo após a retirada da Força Nacional do território, o que gerou suspeitas de conivência entre os agentes de segurança e os criminosos. Testemunhas relataram que jagunços fortemente armados dispararam munição letal e balas de borracha contra os indígenas a partir de caminhonetes. Relatos de conivência surgiram quando um dos agentes da Força Nacional teria dito: “Pega teu povo e sai daqui ou vocês vão morrer” pouco antes do ataque. Entre os feridos, dois indígenas foram baleados na cabeça e no pescoço, ambos em estado grave. A situação dos Guarani Kaiowá evidencia a contínua tensão e os conflitos agrários na região, exacerbados pela ausência de ações concretas de reforma agrária e demarcação de terras indígenas.

A Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica é composta por sete áreas retomadas, incluindo Pikyxyin, onde ocorreu o ataque. Na sexta-feira (2), um outro ataque havia sido registrado na região, sem feridos. Na quinta-feira (1), a Força Nacional havia detido um ruralista armado. Após pressão, a Força Nacional retornou ao local para assegurar a segurança dos indígenas. A Defensoria Pública da União (DPU) anunciou que buscará a destituição do comando da Força Nacional em Mato Grosso do Sul devido à sua atuação questionável. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) mobilizou atendimento emergencial com apoio do Corpo de Bombeiros. A Força Nacional retornou à área após pressão. Os jovens feridos estavam protegendo barracos nas retomadas Kurupa’yty e Pikyxyin, onde mais de 30 crianças e quatro bebês estavam abrigados.

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal enviaram equipe para prestar assistência aos Guarani Kaiowá. Eloy Terena, secretário executivo do MPI, solicitou explicações ao Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre a retirada da Força Nacional e pediu a permanência do efetivo no território para evitar novos episódios de violência. Um ofício foi enviado ao diretor-geral da Polícia Federal solicitando uma investigação imediata dos ataques.

Segundo o CIMI, “há um total de sete retomadas na Terra Indígena. As duas últimas, Guaaroka e Yvy Ajere, contíguas e feitas a partir do último dia 13 de julho, concentravam a atenção ruralista antagonista à presença dos Guarani Kaiowá. De tal forma que a retomada Guaaroka está sob liminar de reintegração de posse e a Yvy Ajere convive diariamente com um acampamento de jagunços. Ambas sofreram uma sequência de ataques. A situação, porém, mudou. Os ataques se espraiaram para as demais retomadas”.

Além dos ataques aos indígenas, o acampamento Esperança, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), também foi alvo de violência. Localizado em Dourados, município vizinho a Douradina, o acampamento foi atacado e incendiado por um grupo armado. Cerca de 300 famílias residem no local. Segundo as lideranças locais do MST, o ataque foi uma retaliação à demonstração de solidariedade do MST aos indígenas Guarani Kaiowá, em visita no último dia 29. “Fazendeiros não permitiram que o corpo de bombeiros agisse rapidamente, bloqueando o acesso imediato ao local dos incêndios. Alguns barracos foram destruídos pelo fogo, mas a infraestrutura será recuperada depois”, afirmou uma nota do acampamento Esperança. O texto enfatiza que a solidariedade do MST aos Guarani Kaiowá permanecerá firme.

Falsa informação a favor dos ruralistas

De acordo com o CIMI, na manhã do último sábado (3) a Força Nacional informou à Coordenação Regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que os Guarani Kaiowá haviam avançado nas retomadas. Uma equipe da Funai foi enviada para verificar a situação e constatou que os indígenas permaneciam nos mesmos locais, desmentindo a alegação da Força Nacional. Porém, essa falsa informação foi utilizada pelos ruralistas para gerar pânico e mobilizar pessoas na região, exacerbando a situação de tensão e mobilizando novo ataque na noite de domingo (4). Segundo o CIMI, entre 18 e 19 horas, houve novo ataque, dessa vez na retomada Yvy Ajere, com a confirmação de ao menos um ferido atingido por balas de borracha.

O agrobolsonarismo

A onda de violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul –  orquestrada pelos ruralistas – vem crescendo nos últimos anos, tendo sido acirrada inclusive pelo “agrobolsonarismo”, segundo Diógenes Cariaga, antropólogo e professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). Segundo ele, que estuda esses povos há mais de 20 anos, a chegada de Jair Bolsonaro ao poder e seu forte alinhamento com o agronegócio fragilizou ainda mais os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. O mesmo foi observado pelas lideranças indígenas da região, que viram milícias rurais a favor do agronegócio se espalharem pela região, inclusive com a conivência das forças policiais. Essa pressão do agronegócio sobre os povos indígenas é denunciada também pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Ameaças de estupro e presença do “caveirão”

Um dos marcos nessa escalada de violência foi o “caveirão”, um trator blindado usado pelos ruralistas para destruir os barracos e demais ocupações indígenas, arrastando tudo que encontra pela frente. Mas os jagunços contratados pelos ruralistas também usam de outras armas para forçar a saída dos indígenas, incluindo ameaças de estupro.

Milícias do agronegócio

Há quase um ano, o CIMI lançou o minidocumentário “Pode queimar: indígenas sob ataque das milícias do agronegócio”. O vídeo, que inclui imagens feitas pelos próprios indígenas, além de depoimentos, fala sobre os cinco anos ininterruptos de violência de pistoleiros contra uma comunidade de indígenas Guarani Kaiowá em Dourados, Mato Grosso do Sul.

No último mês, o CIMI já havia registrado conflitos entre produtores rurais e indígenas nos estados do Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul, motivados pela sensação de impunidade trazida por medidas legislativas inconstitucionais, como a Lei 14.701 e a PEC 40, que buscam instituir a tese do marco temporal. Ainda no mês de julho, na madrugada do dia 14, um ataque de fazendeiros à Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica já havia ferido um indígena.

Segundo nota pública da Aty Guasu e conselheiros das comunidades indigenas Itay, Guyra kamby’i, Gaaro’ka e Tajasu Iguá, “Nossa área do Lagoa Rica está delimitada, porém nunca foi entregue a nós. Retomamos para garantir a vida do nosso povo mas agora estamos temendo a morte”.

Histórico de violência

A última edição do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023 foi publicado no final do mês passado. De 2023 pra cá, como vimos no último dia 3, nada mudou. A violência contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul reflete um histórico de conflitos agrários e violações de direitos. Desde o início do século 20, esses indígenas foram forçados a deixar suas terras ancestrais para viverem em reservas menores.

Este processo se intensificou nos anos 1940, quando o governo federal loteou terras indígenas para venda a proprietários rurais. Nos últimos anos, a violência contra os Guarani Kaiowá tem se manifestado de várias formas, incluindo ataques armados, incêndios criminosos e homicídios de lideranças indígenas. A impunidade continua a ser um problema significativo, apesar das medidas recentes para proteger os territórios indígenas e apurar os crimes cometidos.

A situação dos Guarani Kaiowá destaca a necessidade urgente de políticas eficazes para garantir a sobrevivência e a dignidade das comunidades indígenas. A violência contínua e a falta de ação concreta por parte das autoridades evidenciam a vulnerabilidade desses povos e a importância de uma intervenção efetiva para proteger seus direitos e suas vidas.