Indígenas fazem guarda para proteger território de piratas que invadiram o rio Solimões
Diante da ausência do Estado se formou na região uma cultura de pirataria, com criminosos que aterrorizam e abordam qualquer pessoa
Chegando à reta final do governo, Jair Bolsonaro segue firme na crueldade de não promover demarcações de terras indígenas. E ele se orgulha da perseguição constante aos povos originários do Brasil. E, de outro lado, sabendo que do governo só partem ameaças e ataques diretos via discurso ou ações concretas que promovem retrocesso de direitos garantidos constitucionalmente, indígenas do Amazonas resolveram eles próprios demarcarem o território, como aponta reportagem especial da Folha de São Paulo.
Os Kokama, Tikuna e Mayoruna, da terra indígena Porto Praia de Baixo, em Tefé (AM), na margem do rio Solimões, marcaram 20 árvores com uma mensagem escrita com tinta vermelha: “Terra indígena Porto Praia. Proibida a entrada de pessoas não autorizadas, a derrubada de madeira e a caça ilegal”. A mensagem é seguida de referências a dois dispositivos legais: a lei nº 6.001, de 1973, ou seja, o Estatuto do Índio, e o artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
O “status” da TI continua o mesmo, à espera da tramitação do pedido de demarcação. Segundo a Folha, a terra indígena nem aparece no banco de dados da Funai (Fundação Nacional do Índio) para territórios cujos processos de delimitação estão em estudo. No Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a anotação sobre a reivindicação é: sem providências.
Guarda florestal
Eles têm utilizado o mecanismo das frentes de segurança para proteger o lugar onde vivem e também suas vidas, pois invasões se tornam cada vez mais frequentes por madeireiros e pescadores que atuam ilegalmente, também extratores de areia. Além da autodemarcação, criaram duas guardas florestais com equipe formada por indígenas para fazer rondas diárias mata adentro e também, no rio Solimões.
É que além de todos os outros invasores que visam explorar os recursos naturais, os indígenas agora enfrentam a atuação de criminosos que atuam nos rios, que levam tudo, até peixe. Eles apareceram com a explosão do tráfego de embarcações para garimpo ilegal e narcotráfico internacional.
“Os moradores da terra indígena notaram que os ataques também se estenderam a embarcações mais simples, e os crimes já não se limitam ao enfrentamento entre piratas, garimpeiros e narcotraficantes”. Os jovens sabem que não têm estrutura para lidar com os piratas, que trafegam pelo rio armados. Policiais militares já receberam informações sobre lanchas com quatro motores e sabem que eles conseguem roubar quantidades de drogas até dez vezes maiores que as apreendidas pela polícia.
Para um agente de Tefé, que pediu à reportagem para não ser identificado, diante da ausência do Estado se formou na região uma cultura de pirataria, com criminosos que “aterrorizam e abordam qualquer pessoa”.
Com isso, os indígenas precisaram mudar seus hábitos. Quando precisam ir a Tefé, evitam embarcar de madrugada. E voltam sempre antes do anoitecer. “Hoje os piratas roubam até peixe”, diz um indígena. A pesca vem sendo feita à luz do dia, como medida de precaução.
As 98 famílias do território – são 433 indígenas, segundo um documento da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) – precisam se proteger da pirataria, dos invasores, de ações de reintegração de posse e, ao mesmo tempo, provar a relação com a terra e a própria identidade indígena.
A comunidade vive de roças, da caça, da pesca e da coleta de açaí e castanha. A autodemarcação, que contou com o apoio do Cimi de Tefé, foi vista como provocação por empresários da cidade interessados num pedaço do território para exploração de areia, prática comum no curso do rio —à luz do dia.
Um argumento reprisado por esses empresários é que os indígenas não são indígenas. “Essa terra nunca teve um dono. Uma pessoa arrendava e se sentia dono”, afirma o cacique Amilton Kokama.
Num trecho da mata cobiçado por madeireiros, os indígenas, ao se prepararem para coletar castanha, descobriram um sítio arqueológico. Encontraram vasos, tampas, pedaços de cerâmica e outras peças de um cotidiano distante, hoje abrigadas nas casas da comunidade e até mesmo na escola, como enfeites.
A maior parte das peças permanece na mata. O grupo de pesquisa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá analisou, no fim de 2019, quatro coleções, com 65 artefatos, guardadas nas casas.
No relatório do grupo, de fevereiro de 2020, a conclusão é a de que a descoberta de “cerâmicas na área da comunidade Aldeia Porto Praia, reivindicada pelo povo kokama, é uma atestação de que essa região foi anteriormente ocupada pelos povos produtores das cerâmicas arqueológicas pertencentes à fase Tefé”.
A fase citada, prossegue o relatório, está “associada à tradição polícroma da Amazônia, no período provável de 500 d.C. até o contato, no século 16, o que demonstra a antiguidade indígena nessa região”.
“Isso é nosso desde muitos anos”, diz Amilton Kokama. “Talvez com a demarcação nos respeitem mais”.
A reportagem completa você confere, clicando aqui.
Os repórteres da Folha viajaram pela Amazônia, em territórios indígenas, para relatar as consequências da política do governo Bolsonaro de zerar demarcações no país. As histórias serão mostradas em cinco capítulos, publicados um por semana até a segunda quinzena de outubro. As reportagens contaram com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com Pulitzer Center.