Por Hyader Epaminondas

Saí da sessão com os olhos inundados, não por lágrimas comuns, mas por um rio chamado Mato Grosso. Um fluxo denso, límpido e cortante que nasce na carne do artista e termina na retina de quem o encara com coragem. Homem com H, dirigido por Esmir Filho, não é uma cinebiografia tradicional. É um ritual. Um mergulho em águas profundas de identidade, prazer e resistência. Um filme que reverbera no corpo como o eco dos agudos de Ney Matogrosso atravessando os porões da repressão.

Durante 130 minutos, Jesuíta Barbosa se abstém de qualquer vaidade de ator. Ele não interpreta: ele canaliza. Obedece a uma entrega que parece vir do próprio Ney, como se o artista soprasse suas dores e brilhos por entre os poros do corpo de Jesuíta. Há algo de possessão nessa performance. Um transe andrógino que flutua entre a delicadeza de um sopro e a brutalidade de um trovão, um estado marcado por um olhar que não suplica por aceitação, mas impõe, com fúria silenciosa, a urgência da verdade.

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos

A direção de Esmir Filho não tenta impor sua visão sobre Ney, mas sim liberar um espaço sagrado, onde a arte do cantor explode como um vulcão de fogo e plumas. Esmir não dirige, ele cultiva, ele desperta o ser que está adormecido em cada ângulo e luz, dando liberdade para que a alma de Ney dance nas sombras e nas cores. As cenas de sexo, longe de qualquer vulgaridade, se tornam um balé nu, onde os corpos se entrelaçam como versos de um poema proibido, dançando ao ritmo do desejo, da carne e da alma. Cada movimento é uma metáfora, uma coreografia que fala mais do que palavras, uma entrega ao prazer como manifestação da existência mais pura e crua.

O prazer aqui não é um fim, mas um caminho tortuoso de expressão e libertação. As sequências são como pinceladas de um quadro surrealista, onde o corpo de Ney se torna uma tela que reflete os caminhos incertos e gloriosos por onde o artista percorreu. É como se cada ato, cada cena, fosse uma escultura viva da própria resistência, uma expressão visceral da liberdade que nasce e morre nas margens da sociedade, brutal, encantadora e, acima de tudo, verdadeira.

Bandido, bandido corazón

Na cena de Bandido Corazón, o deboche contra a censura militar se veste de uma elegância macabra, como se o riso de Jesuíta Barbosa fosse uma lâmina afiada, cortando as amarras da repressão com uma precisão aterradora. A risada que ele solta não é apenas uma gargalhada; é um grito abafado, uma explosão silenciosa que ecoa o sofrimento de tantos que foram forçados a engolir seu protesto durante a ditadura, um grito que foi silenciado, mas nunca esquecido.

O que se revela como um momento cômico é, na verdade, imbuído de um gosto amargo, o gosto ácido do ferro, simbolizando a luta engolida, a resistência transformada em ironia. A ironia, nesse momento, não se disfarça de leveza, ela se apresenta como um soco visceral. É um riso que não só critica a censura, mas que, através do sarcasmo e da dor, coloca em xeque toda a opressão, num ato de resistência que se esconde sob o véu da comédia, mas que é, em sua essência, uma ferida aberta.

E nessa dramaturgia íntima, até o pai de Ney surge como um para-raios simbólico: a figura de uma autoridade, um militar que tenta conter um espírito livre, assim como a própria ditadura tentava sufocar a arte e a liberdade de expressão. Mas, no filme, ele não é apenas confrontado, é tocado. Em uma das cenas mais belas e emocionantes do longa, vemos esse pai rígido, que representa o poder militar e opressor, ceder, não pela força de um embate, mas pelo impacto inevitável da arte.

A performance impiedosa de Ney atravessa aquele pai como atravessa o público: com intensidade, beleza e uma verdade inegociável. Homem com H, com sua carga estética visceral, sintetiza essa luta: o artista não é vencido pela autoridade, ele a desafia, e ao desafiar, transforma. Não se trata de vencer o pai, trata de fazer com que ele enxergue. E ele enxerga. Pela primeira vez, o reconhecimento vem, não em palavras, mas em um olhar, e é justamente ali, no silêncio dessa aceitação, que o artista triunfa. Sem grito. Apenas sendo, como uma resposta silenciosa à repressão que o país viveu, conquistado pela arte, pela resistência silenciosa de quem nunca se curvou.

Eu quero é todo mundo nesse carnaval

Esmir Filho entrega o seu filme mais maduro, o mais necessário e potente do cinema brasileiro. Não se limita às arestas de ser uma cinebiografia: é um manifesto, um espelho, uma epifania banhada na mais pura, contraditória e gloriosa brasilidade. Talvez estejamos diante do melhor filme brasileiro de todos os tempos. Jesuíta Barbosa, em estado de entrega absoluta, não interpreta Ney: ele o incorpora, projeta a partir do inconsciente e o transborda. Sua atuação é uma ferida aberta, um rito de incorporação onde o inconsciente do artista ganha corpo. Não há performance. Há revelação.

O filme avança como um corte seco, preciso, sempre crescendo, sem se perder em excessos, sem temer o abismo. Passeia pelas fases artísticas de Ney com a precisão de um bisturi: o corpo, o palco, a política, o desejo, a dor, o riso, a sombra. E quando tudo poderia desaguar num desfecho previsível, Homem com H ergue sua síntese com Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua.

Um encerramento que não pede licença: explode em tela como um desfile de carne e fantasia, misturando carnaval e funeral, vida e resistência, arte e desobediência. Um clímax que não celebra apenas uma trajetória, mas a afirmação violenta e poética de uma existência que nunca pertenceu ao tempo, porque sempre esteve à frente dele. Ney não se encerra, ele transborda.

Homem com H é menos sobre a biografia de um artista e mais sobre o Brasil que existe entre a performance e o silêncio. Um país de brilhos e baionetas, de purpurina e censura, de amor e sobrevivência. Um filme que não se vê: se sente na pele. Se você tiver coragem de olhar nos olhos dele, saiba que não sairá o mesmo.