Muitas pessoas não entenderam muito bem os perigos da sugerida “autonomia do Banco Central” que foi aprovada na Câmara dos Deputados. Ainda que não seja um assunto tão atraente quanto o BBB21 (e não contém ironia nessa frase), é preciso discutir a questão e se preparar para o embate e os possíveis efeitos dessa medida. Se você pressente que há caroço nesse angu, aqui vou tentar trazer à luz alguns pontos dessa discussão que pode gerar arrepios.

Antes de mais nada, precisamos lembrar que o Banco Central (Bacen) é o coordenador da política econômica do país, entre tantas de suas funções, as mais destacadas giram em torno do controle inflacionário, controle cambial, emissão de títulos de dívida pública e a definição da taxa básica de juros, a conhecida Selic – Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. Em resumo, tudo que interessa ao desempenho econômico do país está diretamente associado ao trabalho do Bacen.

O fundamento básico da aprovação da autonomia do Bacen nasce do discurso liberal de afastamento do Estado da vida econômica. No século XVIII, a ideia do distanciamento entre economia e política ganhou muita força no período das grandes revoluções burguesas, entretanto, a composição do Estado a qual estavam submetidos, em nada se assemelha com a realidade do século XXI. Estamos falando do Absolutismo, um período em que o Rei era o centro de gravidade e o Estado era uma extensão da figura do próprio monarca. Não é descabido pensar a frase atribuída a Luís XIV – O Estado sou eu – como uma declaração patrimonialista, podemos entender que a própria noção moderna de público e privado sequer existiam. Essa situação de grave fragilidade da coisa privada, impactava sobre a atuação econômica da burguesia.

É desse pressuposto “laissez-faire, laissez passer” (deixar fazer, deixar passar) que toda a proposta liberal se firmará a partir de então. Acreditando que existe uma espécie de lei natural do universo, essa turma de pseudo-intelectuais defende que quanto menos intervenção do Estado, melhor o desempenho econômico. No entanto, essa tese, ainda que repetida à exaustão, não encontra qualquer respaldo observando a história econômica. Todo tipo de malabarismo é utilizado para defender a metafísica da famosa “mão invisível”, que não passa de um terraplanismo econômico, e o que vemos, é precisamente o contrário: o desenvolvimento está intrinsecamente ligado à atuação do Estado.

Para não alongar muito o texto, vamos entrar no centro da questão. A proposta neoliberal de autonomia do Banco Central tem como justificativa a proteção do Deus Mercado e seu bom funcionamento. Para isso, é preciso maior liberdade para que a economia siga seu curso, supostamente natural. Sugerem os liberais, que caso o poder executivo perca sua influência sobre o Bacen, isso irá causar menos mudanças na política econômica com as trocas de governo.

Verdade seja dita: eles não estão errados, mas isso não quer dizer que é algo bom.

A desastrosa condução da economia de Paulo Guedes, por exemplo, teria continuidade por mais dois anos, ainda que o estúpido Jair Bolsonaro não ganhasse as eleições de 2022. Isso porque não existe a possibilidade de exoneração do Presidente do Bacen, para que ele perca seu mandato (que terá duração de quatro anos) é preciso ter sido condenado por improbidade administrativa. Qualquer um que acompanhe, minimamente as notícias, sabe que processos de improbidade duram anos e costumam rastejar por ainda mais tempo de acordo com a influência política do réu. A título de exemplo, não podemos deixar de registrar que, Arthur Lira, atual presidente da Câmara dos Deputados é condenado em 2° instância por Improbidade Administrativa.

Na prática, o presidente do Bacen jamais perderá seu mandato antes de completar os quatro anos, por mais desastrosa e incompetente que seja sua atuação. O que se pretende com essa medida é manter o ultraliberalismo em ação, sem interferências. Ainda que o povo sofra seus efeitos nefastos, exija mudanças e escolha diretrizes diferentes nas eleições, a mudança não será possível. O poder executivo, tem como uma de suas principais atribuições conduzir a política do Estado em sua máxima acepção, o que engloba também a política econômica. Com a aprovação da autonomia do Bacen, o próximo presidente perderá parte substancial de seu papel.

É uma medida antidemocrática, que retira do povo o direito de escolher seu próprio destino. A quem interessa tal medida? Bancos, Estelionatários, Crime Organizado, Rentistas, Investidores… Enfim, a todos e todas que operam no grande cassino chamado sistema financeiro. A indicação do presidente do Bacen será feita pelo presidente da República após muita pressão dos abutres do sistema financeiro, o indicado será sabatinado pelo Congresso Nacional e depois ocupará mandato por 4 anos, iniciados no segundo ano de mandato do presidente da República.

Contudo, toda tragédia apresenta em si o espectro da salvação, e uma casa que começa a ser feita pelo teto, não tem como ficar em pé. E esse é o único lado bom dessa história: estamos hoje submetidos a um governo tão incompetente (tanto o executivo, quanto seus apoiadores no legislativo) que não sabem sequer tocar um projeto de lei como manda o devido processo legislativo. É o único caminho jurídico que a esquerda tem para lutar contra essa aberração institucional aprovada no Congresso Nacional.

Explico!

Existe o entendimento em nosso ordenamento jurídico, que a reorganização administrativa de cada poder, apesar de necessariamente ter que se transformar em lei, precisa ser enviada, pelo próprio poder interessado, ao legislativo. Nesse caso, a lei aprovada de autonomia do Banco Central, órgão integrante do poder Executivo, partiu do Senado Federal, órgão integrante do poder Legislativo, ou seja, existe vício na origem.

Caso ainda exista seriedade nos princípios mais consagrados de nosso ordenamento jurídico, qualquer Ação Direta de Inconstitucionalidade que aponte esse vício de origem será prontamente atendida pela Suprema Corte, pois existe jurisprudência consolidada em súmula vinculante sobre essa matéria.

Pelo bom funcionamento das instituições e pela independência e autonomia dos três poderes, o STF certamente julgará procedente o pedido de inconstitucionalidade, pois já existe o entendimento que “nem mesmo a aquiescência do Chefe do Executivo mediante sanção ao projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, tem o condão de sanar esse defeito jurídico radical.” Por fim, é apenas mais um problema que um desgoverno sem criatividade, inteligência ou conhecimento formal está criando para o país, na tentativa de beneficiar os interesses do sistema financeiro.

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