BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

Por Arnaldo de Castro / História Oral

A Revolução Francesa (e por consequência os ideais iluministas) deixou como herança para o ocidente diversos princípios que orientaram a consolidação do Estado e suas funções. Porém, o que fazer quando, por motivos diversos, as engrenagens do Estado se tornam ferramentas de opressão e exploração utilizadas por uma pequena parcela da sociedade para fazer valer seus interesses?

Se tomarmos como pedra angular a definição de Max Weber de que o Estado detém o “monopólio da violência”[1] e que a coerção é a finalidade última dele, nos surge o impasse: um Estado tirânico é legítimo? Caso não seja, como assegurar, moralmente, a legitimidade da luta contra quem detém o monopólio da violência?

Os pacifistas sempre dirão que “violência gera mais violência” e os adeptos das ações revolucionárias sustentarão a necessidade do combate, afinal “os fins justificam os meios”. É evidente que ambas proposições não respondem satisfatoriamente à realidade imposta. Nos últimos anos vemos crescer assustadoramente, discursos fascistas e por vezes nazistas. A conivência liberal é latente com tais discursos e endossa tais práticas desde que sejam atendidos os desejos do deus mercado. A partir desse contexto, o extremismo neoliberal impôs um debate que contamina e desconcerta os mais variados círculos de discussão: uma resposta revolucionária é a saída para a contenção do fascismo? A violência se justifica para interromper práticas de segregação e intolerância? Por fim, é correto combater a intolerância com violência?

Da academia às associações políticas, dos debates em ambientes públicos aos privados, a moralidade intrínseca das ações radicais que visam combater a intolerância é negativada. Em um amplo avanço do fascismo pelo mundo, a democracia (mesmo o sistema de representação da democracia liberal) se encontra ameaçada, e enquanto a passos largos as instituições recrudescem direitos, o ethos discursivo sanciona como “mau” qualquer apoio à rebeldia, à resistência e à revolução.

Apelam (os discursos neoliberais), em consonância com os pacifistas que a violência é sempre ruim e que a paz é o melhor caminho. Contudo, como nos mostra Michael Walzer[2], mesmo o pacifismo articulado como ferramenta de luta pode produzir efeitos violentíssimos. O clássico exemplo foi a utilização do princípio da não-violência na libertação indiana contra o imperialismo inglês, e há de se ressaltar que apesar da propaganda ocidental não deixar explícito, houve intensa violência. A romantização ocidental do evento acabou por esconder as atrocidades patrocinadas pelo capitalismo naquela região.

Essa discussão não pode então ser estabelecida por falsas simetrias. Dizer que o recurso à violência é sempre “mau”, embarcando em uma ética cristã, maniqueísta e profundamente legitimadora da opressão pelos poderes estabelecidos (antigamente: nobreza, empreitadas imperialistas; mais recentemente: sociedades capitalistas) é um equívoco conceitual aberrante. Se dessa premissa estipulássemos a conduta humana, acabaríamos com o direito à legítima defesa, ou sequer poderíamos admitir o conceito weberiano de Estado. Luiz Gama afirmava que o homicídio cometido por um escravizado contra seu senhor não passava de legítima defesa e tal princípio (da violência do oprimido contra o opressor) não pode ser balizado por uma ética covarde que individualiza o crime, porém legitima a perversidade sistêmica. É evidentemente um jogo de poder. Se admitimos que a tirania não é a melhor forma de governo, automaticamente, estamos dispostos a aceitar a prevalência do direito de resistência.

A Acomodação da vida política no século XXI se deu , principalmente, por dois instrumentos que serviram de amortecedor de revoltas e revoluções: 1- a ilusão difundida pelos meios de comunicação de que vivemos um tempo menos desigual e miserável, fruto de avanços tecnológicos e 2- pela crença na estabilidade do Estado Democrático de Direito Burguês, que por conseguinte suspendeu a premissa jusnaturalista do direito de resistência, substituindo-o por um medíocre princípio de contestação. Para Norberto Bobbio[3] , a resistência é a negação da obediência, sendo assim, dentro de um determinado sistema jurídico ela rompe a ordem e acaba instalando um período de crise. Já a contestação é o contrário da aceitação, ou seja, é a possibilidade de manifestar sua indignação e criticar a ordem vigente, contudo, sem estabelecer crises e fissuras.

É a partir do princípio da contestação que a esquerda latino americana tentou consolidar um parco Estado de Bem Estar Social na primeira década dos anos 2000. Depois da aceitação da derrota da esquerda revolucionária (à exceção de Cuba) imputada pelas diversas ditaduras na região, as organizações políticas suspenderam seu intento revolucionário abrindo mão do direito de resistência e se conformando com o princípio da contestação. Esperavam assim, que uma revolução social fosse alcançada aquém das mudanças estruturais que a institucionalidade política necessitava.

Vivemos hoje o fracasso intrínseco dessa empreitada. Se por um lado os governos de Rafael Correa, Evo Moralles e Luis Inácio Lula da Silva elevaram os índices de qualidade de vida de milhões de pessoas  e fortaleceram as economias de suas nações, por outro, imergiram em um perigoso diálogo e dolorosas relações com as elites americanas, que ao menor sinal de perdas (como a crise de 2008 e a consequente queda de valor das comodities) não pensaram duas vezes antes de promover golpes e instabilidade na região, que culminou na ascensão de neofascistas como Ivan Duque na Colômbia, Lenin Moreno no Equador, Maurício Macri na Argentina e o caso mais abominável, Jair Bolsonaro no Brasil.

A armadilha da supressão do direito de resistência em troca do princípio da contestação não advém da discussão moral iniciada nesse texto, mas sim da capacidade de manipulação da informação e do controle da burocracia jurídica do Estado pela elite econômica sulamericana. Em linhas gerais, no Modus Operandi vigente, o poder executivo estipula as diretrizes ideológicas para manutenção do ambiente econômico que favorece e enriquece os mais ricos, enquanto o poder legislativo corre a passos largos para destruir de forma ligeira e irreversível um amplo conjunto de direitos sociais adquiridos ao longo de negociações feitas por décadas, ao mesmo tempo em que o poder judiciário age como polícia política em favor do neoliberalismo.

Sem o perigo constante da manifestação da força da classe trabalhadora (consciente de seu papel histórico e de sua condição imputada pela dialética – não somente – mas sobretudo de classe), qualquer projeto de Wellfare State na América Latina se mostrou um fracasso. É por isso que o direito de resistência, defendido desde a Revolução Francesa e ainda mencionada no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 precisa ser resgatado. A política é disputa e diante da opressão de uma classe precisamos resgatar a resistência. Fazendo referência a Carl Von Clausewitz em seu livro Da Guerra, de 1832: a resistência é a continuação da política por outros meios.

*Esse ensaio foi escrito por Arnaldo de Castro com revisão e colaboração de Daniel Fernandes e Arthur Silvério.

[1] WEBER,Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução e notas: Marco Antônio Casanova. São Paulo, Martin Claret, 2015 – (coleção Obra Prima de cada autor).

[2] WALZER, Michael. Guerras justas e injustas – uma argumentação moral com exemplos históricos. São Paulo: Martins fontes, 2003.

[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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