Ao longo da recente história republicana brasileira, o voto se consolidou como a espinha dorsal da participação política. Diante de tantas violências até a garantia desse direito, o povo brasileiro aprendeu a dedicar atenção especial a esse instrumento. Bem por isso, o sistema eleitoral brasileiro é, atualmente, um dos mais elaborados do mundo, e para executar pleitos sazonais, conta com justiça própria, que tem a responsabilidade de dispor acesso a uma urna segura e inviolável, onde quer que resida um cidadão ou cidadã.

A disputa pelo controle do voto foi alvo de diversas pesquisas, sendo pioneira a obra de Victor Nunes Leal “Coronelismo, Enxada e Voto”, publicado em 1948, em que o autor faz uma fina análise dos métodos e procedimentos utilizados pelas oligarquias para assegurar o controle das eleições e a exclusão de boa parte da população na Primeira República (1889-1930). Mais recentemente, José Cláudio Souza Alves se dedicou ao estudo da atuação das milícias no Brasil, sua principal obra se chama Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense, de 2003. Ambos pesquisadores fazem parte de uma tradição intelectual que investigou, em alguma medida, as estratégias de controle eleitoral.

É por causa dessa longa tradição de manipulação eleitoral que o Brasil aperfeiçoou seus mecanismos de votação, visando assegurar o sigilo do voto, e consequentemente diminuindo o poder de interferência nas escolhas políticas do eleitorado. No entanto, um dilema ainda permanece e provoca tensões de tempos em tempos: a relação de inversa proporcionalidade entre verificabilidade e privacidade. Esse dilema é fácil de entender, pois, quanto maior a possibilidade de verificar se o seu voto foi computado corretamente, menor é a garantia da privacidade e vice-versa, sendo o sigilo, o principal direito que garante a liberdade de escolha. Esse é o elemento incorrigível do nosso sistema eleitoral.

O que podemos afirmar com precisão, é que não existe um sistema 100% seguro para apuração eleitoral. Exatamente por isso, as estratégias de contenção de fraudes eleitorais precisam ser permanentemente aperfeiçoadas. Nos últimos 24 anos, a experiência brasileira com urnas eletrônicas tem se mostrado um método eficiente para esse fim, exatamente porque suas ferramentas estão em constante análise, prova, reavaliação e aperfeiçoamento.

Sendo assim, elencamos cinco razões para ser contra a impressão de votos, como previsto na Proposta de Emenda Constitucional 135 de 2019:

  1. Segurança – as urnas eletrônicas oferecem muita segurança;
  2. Agilidade na apuração – poucos países apresentam resultados tão rápido;
  3. Transparência democrática – sistema eleitoral é acompanhado por diversos atores;
  4. Auditoria com precisão – a qualquer momento podem ser verificadas fraudes;
  5. Impressão de votos já foi testada – resultado: muito dinheiro para pouca eficiência;

Entretanto, antes de abordar cada item, é preciso discorrer, brevemente, sobre as motivações que levaram a direita a uma caçada implacável em busca da aprovação do Projeto de Emenda Constitucional 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que quer estabelecer o voto impresso.

O tema do voto impresso se tornou questão central para o regime de Bolsonaro. Não por apego à democracia ou pela defesa do direito do voto, pois, Jair Bolsonaro é sabidamente defensor de regimes autoritários e profundo admirador de ditadores sanguinários como o paraguaio Alfredo Stroessner, alguém que ele considerou um grande estadista. Stroessner é conhecido em seu país por cometer milhares de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, e apreciador de torturas e assassinatos utilizando serra elétrica e maçarico, ao longo dos quase 35 anos de sua ditadura.

Contudo, é uma verdadeira afronta ao raciocínio lógico, um político que foi reeleito, sucessivas vezes através do voto por urna eletrônica, contestar a veracidade do sistema adotado no Brasil. Então por que a insistência em provocar desconfiança frente ao nosso método de votação?

Por seu pouco apreço pela democracia, Bolsonaro abraçou a causa do voto impresso. No entanto, há uma questão prática: a contestação dos resultados eleitorais de 2022 precisa ser fomentada desde já. Não importa se o voto será impresso ou não, se o resultado não for favorável a ele, certamente a máquina de propaganda de Bolsonaro será acionada para disseminar a ideia de que houve fraude eleitoral. Essa narrativa foi usada em 2018, em que ele mesmo foi o vencedor do pleito. Naquela ocasião, a alegação era de que Bolsonaro teria vencido no primeiro turno.

Delírios bolsonaristas à parte, essa é uma situação preocupante que deve ser desmontada quanto antes. O limite entre uma Ditadura explícita e a democracia é a existência de uma Carta Magna e o cumprimento das leis, em acordo com nosso ordenamento jurídico. Precisamente por isso, a última fronteira que Bolsonaro tenta ultrapassar é o poder judiciário. Suas constantes investidas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) é apenas um dos fronts dessa batalha, outro braço do judiciário que entrou na mira da infantaria bolsonarista foi o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A tropa de choque legislativa do regime, especialmente na figura da deputada federal Bia Kicis, tem pressionado para que a PEC 135/19 seja apreciada pela Câmara dos Deputados. A proposta prevê a constitucionalização da impressão do voto, com o argumento de que assim, seria auditável. Como um todo, assim como tudo que vem dessa gente, os argumentos são distorções, e por diversas vezes flagrantes mentiras.

Não há nenhum argumento que se sustente frente ao exame racional dos fatos!

Por isso, apresentamos 5 razões, entre tantas outras, que consideramos mais relevantes para se defender o posicionamento contrário ao Voto Impresso, tal qual apresentado no projeto da deputada Bia Kicis:

1- Segurança das urnas eletrônicas

As urnas eletrônicas são aparelhos desenvolvidos para o único fim de se realizarem eleições seguras. Uma das grandes inovações no Brasil, que visava dar mais segurança ao direito de privacidade do voto, foi a criação de uma justiça especial, em que, pessoas dotadas de fé pública desempenham o papel de evitar fraudes, e caso aconteça, o crime será julgado a partir de leis específicas. Essa mesma justiça, criada em 1932, passou a disponibilizar cabines de votação e cédulas, que conferiram maior credibilidade aos pleitos.

Em 1960, Ricardo Puntel criou uma urna mecânica, precursora da nossa urna eletrônica. Contudo o transporte da máquina se tornou o maior empecilho para o uso em todo o país. A ideia, no entanto, não foi abandonada, e em 1995 foi apresentada a urna eletrônica, que vem sendo aperfeiçoada a cada ano. O sistema é todo desenvolvido pelo Tribunal Superior Eleitoral e seu transporte é feito com extrema segurança, contando inclusive com a participação das Forças Armadas, em especial, do Exército Brasileiro.

Além disso, o TSE faz regularmente o Teste Público de segurança (TSP), em que a justiça eleitoral abre espaço para que brasileiros ou brasileiras maiores de 18 anos, individualmente ou em grupo, tentem burlar a segurança das urnas. Um dado a ser registrado é que ninguém jamais logrou êxito nessa empreitada. Porém, mais importante que provar a inviolabilidade das urnas, o TSP é um momento de extrema relevância para que desenvolvedores do sistema identifiquem falhas e aperfeiçoem o software das urnas.

Um último dado merece ainda ser mencionado: desde a implementação do sistema de votação por urnas eletrônicas, jamais foi comprovada qualquer fraude, em qualquer das etapas propostas pela justiça eleitoral para a realização das eleições.

2- Agilidade na apuração

Os resultados eleitorais são divulgados quase instantaneamente. Às 17 horas é encerrada a entrada nos locais de votação e quando a última pessoa daquela zona eleitoral emite seu voto, começa o processo de apuração. Isso faz com que cerca de 4 horas depois de encerrado o pleito, já tenhamos acesso aos resultados.

Por questões de segurança, imediatamente com o encerramento da votação em uma urna, ela emite a impressão da totalidade dos votos, e tanto o TSE, quanto fiscalizadores externos (como partidos políticos) têm direito a uma via do comprovante daquela urna. Essa medida foi criada para garantir que ao entrar no sistema de recolhimento dos dados, na rede interna do TSE, os votos não serão computados de forma diferente. Cada urna tem um número próprio, uma identidade particular, e assim, qualquer pessoa pode conferir se os votos registrados no final da votação, condizem com aqueles que foram repassados ao TSE.

Esse sistema garante um feito único no mundo: somente o Brasil é capaz de entregar os resultados eleitorais oficiais com tamanha velocidade, ao passo que é garantida a confiabilidade desse mesmo resultado. Muita gente tem argumentado que se esse sistema fosse assim tão bom, os Estados Unidos da América adotariam a urna eletrônica. Não vamos destrinchar esse argumento aqui para não fugir do escopo da questão, mas com a experiência da última eleição lá, é visível que para o bem da democracia americana, seria bom que eles adotassem um sistema semelhante ao nosso e não o contrário.

3- Transparência democrática

Todo o desenvolvimento do software das urnas eletrônicas é feito pelo Tribunal Superior Eleitoral como dissemos, e regularmente esse sistema é colocado à prova, tanto com o TSP, quanto pelos próprios técnicos do tribunal responsáveis pelo projeto. O código-fonte do software das urnas, apesar de não estar aberto a qualquer pessoa, é compartilhado com diversas instituições que queiram fazer parte do processo de fiscalização eleitoral como partidos políticos, Polícia Federal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições.

O primeiro comprovante emitido pela urna é a zerézima. No momento em que se inicia o uso da urna, é impresso comprovante contendo os votos totais que aquela urna tem, o número, logicamente, deve ser zero, ou seja, é um extrato que mostra que naquela urna não tem nenhum voto registrado.

Todas essas medidas têm por objetivo garantir que a eleição seja completamente auditável, para que assim, não se possa levantar suspeita sobre a idoneidade das instituições responsáveis pela realização da eleição e pela apuração dos votos. Ainda assim, mesmo com todas essas ferramentas, há quem diga que pode existir diferença entre os registros das urnas e o resultado oficial, alegando que pode haver hackeamento nas zonas eleitorais.

Precisamos reforçar que as urnas não têm conexão com absolutamente nenhuma rede de comunicação como a internet. Antes de que a conexão com a intranet do TSE seja feita, diversos comprovantes são emitidos, e para dar ainda mais confiabilidade, cada urna conta com uma espécie de caixa preta, em que todas as etapas do processo, desde quando é ligada a urna até o seu encerramento, são registradas.

4- Auditoria com precisão

A argumentação central dos proponentes do voto impresso é que ele pode ser auditável. Fazendo essa afirmação, imediatamente as pessoas tendem a estabelecer o par oposto, atribuindo à urna eletrônica a falsa característica de que ela não é auditável. Como dissemos anteriormente, são diversas as ferramentas para garantir a auditoria das urnas, caso seja levantada qualquer suspeita de fraude.

Se a exposição até aqui não foi suficientemente convincente, deixamos o melhor para o final, o Registro Digital do Voto (RDV). Pedimos bastante atenção a esse mecanismo, pois, reside nele, a única porta que merece completa atenção das autoridades. O RDV é um registro individual da votação naquela urna. É um sistema bastante confiável, que demonstra que cada voto foi inserido na urna da maneira tal qual foi digitada. Afirmamos que esse recurso merece cuidado porque, em todo o processo, a única falha de segurança já identificada, que pode oferecer riscos a uma eleição, está precisamente no RDV. O software que opera esse sistema age combinando aleatoriamente os votos, com outras variáveis, para que seja impossível identificar quem votou em quem.

Por exemplo: suponhamos que você tenha deixado seu voto na urna às 15h16, poucos minutos antes, foi autorizada sua entrada e registrada sua presença na zona eleitoral, essas são duas variáveis, que se forem abertas, pode deixar de garantir a privacidade do seu voto. Por isso, o sistema reúne todas as informações, de todas e todos os votantes daquela urna, e os combina aleatoriamente, evitando quase por completo que o votante possa ser identificado.

Se existe um calcanhar de Aquiles no nosso sistema eleitoral, esse sem sombra de dúvida é o RDV. Contudo, a falha nesse sistema foi identificada uma única vez, e apenas conseguiram isso por causa do TSP, ou seja, em um ambiente controlado, em que a justiça eleitoral fornece condições adequadas para que o sistema seja testado. Podemos citar o fato de que aquela urna foi acessada publicamente, situação diferente de uma votação real, em que a urna não pode ser manipulada por qualquer pessoa.

Em resumo, a exigência de impressão de voto deixa margens para que a privacidade eleitoral não seja respeitada. Se o RDV apresenta condições que podem diminuir a privacidade, o voto impresso na urna, imediatamente quando você confirmar sua escolha, pode facilitar ainda mais o controle externo sobre suas opções e convicções políticas. Ser auditável é a reivindicação que sustenta a narrativa da direita brasileira em defesa do voto impresso, entretanto, as urnas eletrônicas são completamente auditáveis.

Então, a grande pergunta a se fazer aqui é: o seu voto será auditável por quem? TSE? Polícia Federal? Partidos? Candidatos? Empresas? Milícias? O seu poder de verificação imediata do voto abre espaço para que outros e outras agentes façam o mesmo, o que pode se tornar um problema profundo para nossa tão fragilizada democracia.

5- Impressão de votos já foi testada, o resultado: muito dinheiro para nenhuma eficiência

Para encerrar essa longa argumentação, é sempre preciso ressaltar que o sistema híbrido, com votação eletrônica e impressão imediata de comprovante, é uma experiência que já foi testada no Brasil. A Lei n° 10408 de 2002 definiu para as eleições daquele ano, que o sistema híbrido fosse aplicado.

No total, 150 municípios, 7128333 pessoas, ou seja, 6,18% dos eleitores no país experimentaram o processo, tal qual o que é proposto pela PEC 135/19. Diversos relatórios foram feitos sobre o evento, sendo o mais contundente deles o do TSE, que garantiu não existir fundamentação razoável para a manutenção de um sistema tão caro, que não altera satisfatoriamente a garantia de direitos no processo eleitoral.

Em conjunto, o TSE também destacou que os trabalhos ficaram mais lentos devido ao desconhecimento das ferramentas pelos eleitores e mesários, o que exigiria uma cara rede de formação, tanto para operadores do sistema, quanto para eleitores.

Conclusão

A argumentação em torno da defesa do voto impresso é rasa, superficial, mentirosa e manipuladora. A narrativa difundida pela base governista no Congresso Nacional e pelo próprio presidente da República, não tem nenhuma intenção de aperfeiçoar o sistema de votação no Brasil.

O que podemos perceber, nitidamente, é que existe uma intenção golpista, que tem como suporte a contestação dos resultados eleitorais em 2022, caso não seja favorável a Jair Messias Bolsonaro. O que nos dá segurança para fazer tal afirmação são, principalmente, três eventos: 1- a tentativa de imputar descrédito às urnas eletrônicas ganhou bastante espaço desde o pleito de 2014, quando o então candidato Aécio Neves, foi derrotado por Dilma Rousseff. Aécio levantou essa propaganda, que foi imediatamente difundida pela direita brasileira, e posteriormente passou a compor o enredo discursivo de Jair Bolsonaro. 2- A eleição estadunidense (feita por cédulas de papel), contraditoriamente, fomentou a base bolsonarista a dizer que houve fraude na vitória de Joe Biden, em consonância com os tristes eventos que lá sucederam, em especial a invasão do capitólio, o que fez com que o Brasil fosse um dos últimos países, tradicionalmente parceiros dos EUA, a reconhecer e parabenizar a vitória de Biden. Por fim, 3- Jair Bolsonaro, ainda hoje, alega que houve fraude em 2014, e pasmem, também em 2018, quando ele mesmo foi vencedor.

Sobre esse último ponto, o Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “se o presidente da República ou qualquer pessoa tiver provas de fraude tem o dever cívico de entregá-la ao tribunal e estou com as portas abertas. O resto é retórica política, são palavras que o vento leva”. Bolsonaro precisa apresentar provas de que ocorreram fraudes, como argumenta, sem isso, não passa de mais uma mentira do presidente, algo rotineiro em suas falas.

Por fim, gostaríamos de lembrar um episódio anedótico que ocorreu no Senado Federal. Na eleição para a presidência da casa, em 2019, aconteceram diversos tumultos promovidos, em suma, pela base governista. Entre essas divergências estava a possibilidade de se fazer o voto no painel eletrônico ou por cédulas. Impulsionados pela propaganda pelo voto no papel, a escolha do presidente do poder legislativo foi realizada com cédulas. Resultado: o Senado Federal conta com 81 parlamentares, mas quando feita a apuração da urna, havia 82 votos.

Alguns poderiam dizer que isso é uma piada; infelizmente não. Esse é um mecanismo para tumultuar nosso sistema eleitoral, e assim tentar aproveitar a brecha para garantir mais um golpe contra nossa democracia em 2022.

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