Hayao Miyazaki e o Studio Ghibli: O encanto da meticulosidade cinematográfica
Como e porque o Estúdio Ghibli fornece estórias tão inovadoras e uma construção de mundo cinematograficamente invejável
Por Ben hur Nogueira
Existe um termo quintessencialmente popular no cinema como um todo: World-Building, ou construção de mundo. Nele, somos apresentados à construção de um modo fictício e quanto mais criativo é o diretor, mais criativo o worldbuilding tende a ser. Em se tratando de cinema de animação, vemos que, literalmente, não existem limites para o desenvolvimento de uma criação de um mundo que simplesmente é visualizado e eventualmente materializado. Um dos maiores exemplos de um worldbuilding que impera o cinema mundial como um todo é o Estúdio Ghibli: um estúdio de origem japonesa que universaliza histórias nunca vistas antes e traz uma construção de mundo bastante invejável devido a vários fatores que eu gostaria de detalhar posteriormente. Mas antes de detalhar como e porque o Estúdio Ghibli revoluciona a maneira que vemos suas histórias, primeiro devemos compreender o motivo de uma construção de mundo mudar a maneira que vemos o cinema como um todo e, eventualmente, enfatizar os eventos cinematograficamente canônicos do próprio Estúdio Ghibli.
A materialização da cenografia tem um papel ímpar no cinema. Sem uma direção de cena decente, fica difícil compreender qual o propósito do mundo que estamos presenciando. Um exemplo de como a materialização do mundo proposta afeta o cinema é simplesmente visualizar filmes ambientados em períodos epocais, como filmes de guerra, filmes de séculos pretéritos ou filmes ambientados alguns anos atrás. Temos de ter a sapiência de que o ambiente retratado tem a acurácia geracional que vai nos motivar a crer que tudo se passa em uma época diferente e isso não inclui apenas a cenografia, mas figurino, casting e o próprio jeito de falar dos personagens. Tudo deve estar meticulosamente definido para evitar uma discrepância histórica.
Com isso exemplificado, precisamos falar sobre como o cinema de animação afeta a maneira que a atmosfera é retratada e como o cinema de animação pode ter um papel vital para nossos sentimentos e consequentemente, uma construção de mundo.
No principio era o verbo
O cinema de animação não foi a priori utilizado como um veículo comercializado para infantes, decerto, o projeto de materialização do cinema de animação foi desenvolvido para amplificar histórias que poderiam ter uma projeção cuja visão diretorial fosse visível para o público com uma ampla criatividade. Animais antropomórficos teriam uma facilidade maior de locomoção na tela, fábulas poderiam ser contadas sem efeitos visivelmente interferidos por ações humanas e a imaginação não teria limites. O cinema só passou a ser comercializado para infantes no dado momento onde produtores de cinema perceberam que a relação de histórias contadas no cinema de animação tinham um efeito maior no público juvenil, quiçá, pela efetividade direta do cinema de animação na expansão da imaginação que seria maximizada de agora em diante. Daí tivemos a famigerada Golden age da animação norte-americana, com estúdios competindo uns com os outros em um duelo de qualidade fílmica e, destes duelos, saíram possivelmente as técnicas cinematográficas mais revolucionárias de todos os tempos que revolucionariam não apenas o cinema de animação mas o cinema live-action nas décadas seguintes.
Apesar de sempre nos referir à Disney como um fator revolucionário que concerne à própria Golden age da animação universal, houve outros estúdios que foram responsáveis por trazer modelos que seriam usados ou popularizados até os dias de hoje. O Estúdio Fleischer, por exemplo, desenvolveu um modelo único de animação conhecido como rotoscopia, onde temos uma modelação ultrarrealista feita com atores reais para facilitar o processo de animação e tornar os movimentos de animação mais ágeis. Filmes como “Fritz, the cat”, “O senhor dos anéis (1978)”, e “Com amor, Van Gogh” utilizam dessa técnica revolucionária onde atores reais eram gravados antes de serem modelados por artistas no estúdio de animação. Seria tecnicamente dois filmes gravados em um, o primeiro com atores reais e o segundo com a modelação de atores através da animação. Essa técnica revolucionou maneiras como animação é modelada até os dias de hoje, tendo reminiscências no chroma key e em outras vertentes.
Em termos de notoriedade, os Estúdios Disney foram revolucionários em vários aspectos cinematográficos como: na introdução do som audível na animação em “Steamboat WIllie” de 1928, na introdução da cores “Flores e árvores” lançado em 1932, na comercialização de animações em cinemas de marquises com a criação da antologia “Silly Symphonies”, cuja atemporalidade é notável até os dias de hoje pela introdução e sobretudo reafirmação da habilidade que o cinema animado tinha com o público majoritariamente infantil, onde tanto a cenografia colorida, as movimentações abruptas dos personagens, a maneira ágil e inventiva da história teria uma ação imediata com o público infantil. Isso foi o ponto de partida para o investimento em produções em longa escala cinematográfica, utilizando da metodologia inventiva e criativa da Golden era da animação global para tornar possível a materialização de histórias. O resto é simplesmente história. Filmes de animação começaram a ser lançados cronologicamente e a comercialização destes se tornou algo de praxe no cinema global como um todo.
Antes de se referir ao Estúdio Ghibli, é preciso falar um pouco sobre como a chegada da comercialização da animação como um produto global e como isso iria influenciar a maneira como enxergamos a animação hodiernamente, e como de praxe usualmente, houve uma película que mudou tudo em termos da maneira que vemos animações e se não fosse por ela, a maneira como assistimos películas de animação seria completamente diferente. Antes de se referir ao Estúdio Ghibli, é preciso falar do predecessor da animação tradicional moderna, é preciso falar de “Branca de neve e os sete anões”.
“Branca de neve e os sete anões” foi um dos maiores riscos tomados por Walt Disney, a produção tinha de seguir um protocolo linear que poderia não ter tido nenhum resultado positivo e poderia levá-lo à falência de acordo com o documentário estadunidense “The fairest of all”. Ademais, o risco de utilizar uma animação como um filme de uma hora e meia não era uma ideia pensada em quase duas décadas, já que a primeira película de animação comercializada foi originalmente lançada em 1917, intitulada El Apóstol lançada na Argentina e infelizmente perdida, sendo “As aventuras do príncipe Achmed”, dirigida pela cineastas germânica Lotte Reiniger, tida como a película de animação que mais sobreviveu ao tempo e creditada como o primeiro filme de animação.
“Branca de neve e os sete anões” transcendeu todas as expectativas criadas sobre sua ideal formação. Em um aspecto fílmico, é um filme altamente revolucionário, decerto, existe o cinema antes e depois do lançamento de “Branca de neve”. A utilização de sons em alta qualidade, (coisa que Walt Disney trabalhava com êxito) o investimento na cinematografia colorida, o cinema falado (ou talkies) que era já uma realidade e ameaçava o cinema obsoleto, uma história que tinha um foco simplório mas com uma autenticidade em personagens marcantes, a película tinha em si um objetivo: consolidar o monopólio da Disney e colocar Walt Disney e sua produtora na frente de seus concorrentes instaurando uma ascensão histórica, tinha tudo pra dar certo, e deu muito certo.
A animação era feita normalmente como filmes de baixa duração, isso tornava a produção mais metódica e o processo mais objetivo. Para produtores daquela época, fazer uma película de animação de uma hora e meia era arriscado já que o público era mais habituado com a quantidade minúscula de tempo. “Branca de neve” quebrou esse tabu tornando-se uma prova que a animação poderia ganhar o mesmo tempo de tela que uma película quantitativamente, e isso abriu portas para dois gêneros cinematográficos que seriam explorados constantemente: o cinema infantil e os filmes de animação em longa duração.
Desse momento em diante, a indústria cinematográfica não seria a mesma. Cada estúdio teria de recompensar o esforço lucrativo que “Branca de neve” foi, mas decerto, a cada passo que davam, um simples passo assertivo da Disney os colocaria pra frente. Exemplos? Dois anos depois do lançamento de “Branca de neve”, a MGM, grande rival da Disney, investiu pesado num projeto que seria voltado para o público infantil, mas em live-action. Em 1939 era lançado “O mágico de Oz” como uma forma de responder ao fenômeno que a Disney tinha desenvolvido, mas o resultado não foi nem um pouco lucrativo para o estúdio, apesar do sucesso astronômico que a película obteria nos anos seguintes. Outro exemplo foi o surgimento de uma onda de cineastas que focalizaram a materialização do investimento no cinema de animação como uma fonte autoral já que não seria apenas o lançamento de um filme animado notório, mas um filme animado notório que poderia trazer contos sobre várias culturas. Esse fenômeno posso com clareza categorizar como “Efeito Branca de neve”, onde a possibilidade trazida por Walt Disney influenciaria outros cineastas de animação ao redor do mundo, e desse momento em diante, a animação nunca mais seria a mesma.
Nos anos 1940, houve passos largos promovidos por vários cineastas autorais ao redor do mundo, cada um queria contar sua história do seu próprio jeito. Em 1941, duas películas de animação foram lançadas. O primeiro, “Mr.Bug goes to Town” foi uma tentativa não-lucrativa dos estúdios Fleischer de competir com a Disney, a película é muito pouco lembrada quiçá por ter sido lançada no mesmo ano que “Dumbo”, mas mesmo assim já dava sinais vitais que outros estúdios estadunidenses eram capazes de produzir outras ideias. O segundo, “Princess Iron Fan”, fez história na Ásia sendo o primeiro filme de animação asiático e o primeiro filme de animação chinês da história. Apesar da Disney ter consolidado o mercado de animação, outros estúdios começavam a dar sinais de exasperação em promover suas próprias histórias e, a partir desse momento, haveria uma onda de experimentalismo fílmico vindo de cada nação, e isso mudaria o rumo do cinema pra sempre.
Em 1942, na América do Sul, foi a vez do Chile tentar com a película “15 mil dibujos”, mas, mais uma vez, a falta de fiscalização cinematográfica fez esse filme ser perdido, o mesmo que ocorreu em 1917, na Argentina, com “El Apóstol”. Em 1945, a primeira película soviética de animação era lançada intitulada “Propavshaya gramota” ou “The lost letter”. Aqui, temos uma reminiscência absurda do efeito das películas da Disney e de animações do Ocidente, com cenário inventivo, uma locomoção quase que realista dos personagens fantásticos, apesar da forte influência local. Em 1953,com uma produção turbulenta iniciada no início dos anos 1940, o cineasta e animador Anélio Latini Filho, tendo como referência os filmes da Disney, resolveu lançar o primeiro filme de animação brasileiro, fazendo sozinho mais de 500 mil desenhos com uma rotina extremamente exausta de quase um dia inteiro de serviço. O resultado foi a primeira película de animação brasileira: “Sinfonia Amazônica”, uma película que traz vários contos abrasileirados sobre nosso folclore.
A animação estava conseguindo contar histórias que nem mesmo um estúdio de grande porte orçamentário seria capaz de contar. Em escala astronômica, durante um período curto de tempo, os Estúdios Disney ganharam muito dinheiro promovendo suas próprias histórias como películas de animação, isso até uma guerra mundial mudar tudo.
Para eu prosear sobre o Estúdio Ghibli, devo falar da segunda guerra mundial, e para falar da segunda guerra mundial, devo falar como o cinema se comportou durante esse período, pois creio decerto que, com uma ausência dos fatores que culminariam a segunda guerra mundial, países como o Japão, cuja a população fora afetada, não teria uma redenção cultural em um período curto de tempo. E, surpreendentemente, a história de como a quase falência da Disney acabaria com planos futuros do estúdio tem muito haver com o impacto cultural japonês, mas, para isso, devemos voltar para 1937, onde “Branca de neve” tinha acabado de ser lançado nos cinemas do mundo todo quebrando recordes de bilheteria.
Como mencionado, “Branca de neve” abriu portas para um novo gênero cinematográfico de longa duração, apesar de não ser a primeira animação a ser desenvolvida, mesmo sendo sempre creditada. Disney, apesar de ter uma vida privada controversa, era um gênio em termos de seu planejamento fílmico, pois sabia como a indústria se comportava com a chegada dos “talkies” ou filmes falados. O que diferenciava a Disney de estúdios como MGM e Warner Bros era a qualidade fílmica das obras, e isso era motivo de orgulho para Disney, que era pioneiro em muitas práticas cinematográficas, como os efeitos de som em seu trabalho “Steamboat Willie” em 1928 que, junto de “The jazz singer”, são creditados como os primeiros trabalhos com falas de personagens no cinema, e a cor, que em 1932 lhe garantiu um Oscar de melhor animação pelo seu trabalho revolucionário no curta “Flowers and trees”.
Walt Disney queria expandir a revolução fílmica de um jeito tão avassalador que o cinema animado teria de andar com as mesmas pernas para o acompanhar. A comercialização de músicas em suas obras se tornou uma marca registrada sua. Por exemplo, é impossível escutar a canção “When i wish upon a star” e não se lembrar da animação “Pinóquio”, lançada em fevereiro de 1940, e os aparelhos de som que escutamos nos cinemas hodiernamente que ampliam os efeitos sonoros e tornam a qualidade de som de cada película mais imersiva, todos surgiram como um projeto revolucionário de “Fantasia”, possivelmente a película de animação mais experimental lançada até então, onde Disney queria transformar a trilha sonora mais imersiva e dar ênfase maior aos instrumentos tocados durante o filme. Tudo isso fazia parte de um projeto de revolucionar o cinema de animação e impor um império solidificado, isso até o começo da segunda guerra mundial fazer com que o cinema não fosse mais lucrativo quanto antes, fazendo estúdios como a Disney perderem bastante dinheiro devido à taxação de impostos.
Durante os anos 1940, o cinema mundial passou por altos e baixos globalmente significativos. Na primeira etapa, eram lucrativos, na segunda nem tanto, na terceira, piorou, e isso tem muito a ver com o andamento da segunda guerra e como a Disney se comportou durante o auge da segunda guerra mundial, onde as películas passaram a se tornar propagandistas como “Você já foi à Bahia” e “Alô amigos”, devido à política de boa vizinhança entre países como o Brasil e os EUA nos anos 1940. A qualidade fílmica das animações de estúdios como a Disney nesse período ficou muito fraca devido à segunda guerra mundial, e isso é notável quando vemos que quase todas as películas lançadas depois da segunda metade dos anos 1940 foram esquecidas subitamente e quase nenhuma é lembrada até os dias de hoje. A Disney só voltaria a ser o que era em 1950, quando retornou a trabalhar com contos de fadas e lançou “Cinderela”, apostando tudo o que tinha. Poderia ser o fim de seu estúdio, mas acabou sendo sua redenção.
O ponto principal disso é que o cinema mudaria muito sua visão de mundo tanto humanamente quanto artisticamente pós segunda guerra, e com isso dito, havia um país completamente destruído depois da segunda guerra, cujas cidades foram bombardeadas, cidadãos mortos, crianças em situação de vulnerabilidade e precariedade, e sadicamente, para piorar a situação, a primeira demonstração da utilização da bomba atômica havia sido feita em duas de suas cidades: Nagasaki e Hiroshima. Foi após período turbulento onde tudo parecia estar perdido que cineastas japoneses se reinventaram e tornaram o cinema japonês uma potência mundial, obtendo aclamação em todas as premiações de cinema internacionalmente. Entre os destaques, tinham filmes de samurai, histórias populares, contos folclóricos e um gênero que se tornaria um fenômeno mundial: o anime.
Um cinema pós-guerra
O cinema como arte pode ser sempre ponderado como uma variável idiossincrática que se comporta conforme a forma que a sociedade é dirigida. Isso implica que se existe uma guerra em um cenário hipotético, é natural que haja películas sobre a guerra favoravelmente, contrariamente e, principalmente, sobre as consequências daquela guerra. No caso do Japão, muitos cineastas passaram a se readaptar trazendo histórias sobre as consequências turbulentas que haviam terminado de passar. Nesse momento grandes nomes como Kurosawa, Honda e Tsuburaya passaram a ter credibilidade no ocidente e isso fortaleceu muito a maneira como o Japão passou a ser visto principalmente no pós-guerra.
É decerto intrínseco que o estúdio Ghibli e seus predecessores japoneses favoreceram muito a construção de mundo (World building) cinematograficamente. Uma construção de mundo neutraliza pontos cirúrgicos de uma atmosfera cinematográfica, sem ele, ou sem um bem feito, não existe potencial para desenvolvimento, pois cinematograficamente, em uma película, o desenvolvimento particular só ocorre quando ações são influenciadas e as ações só passam a ser exploradas em uma ambientação que tem um histórico cronológico de situações que culminam nas decisões a serem tomadas. Foi neste cenário de grande influência que surgiu Osamu Tezuka, alguém que influenciaria muito as histórias que seriam contadas pelo estúdio Ghibli.
Osamu Tezuka foi responsável pela criação dos mangás mais famosos da história moderna do Japão, muito de seu material foi adaptado para o cinema, para a televisão e sobretudo é conhecido internacionalmente, como: “Astro boy”, “Kimba, o leão branco” (cuja premissa inspiraria a Disney produzir a película “O rei leão”, em 1994) e “A princesa e o cavaleiro”. O cerne da questão é o quão meticuloso o trabalho de Tezuka era. Fazia seus trabalhos com maestria, sabia utilizar bem a ambientação da história como planejamento geográfico e sobretudo central. Ele se inspirava muito no modelo ocidental de contar histórias, um exemplo claro disso é seu trabalho “Kimba, o leão branco” que tem referências notáveis de “Hamlet” de Shakespeare e isso já era vanguardista, pois outros cineastas como o próprio Kurosawa também se espelhavam em modelos modernos de outros países para popularizar o cinema, como novos enquadramentos, edições certeiras entre outros.
Daí passou-se a ter um grupo que admirava Tezuka, e decerto o cinema de animação japonês teve uma ultrarrevolução com seu material, mas, além disso, da maneira como ele lidava com temas como a vida, morte, amadurecimento e outros temas. Vários que vieram depois dele também utilizariam esses moldes culturais japoneses, entre eles, Miyazaki, um dos maiores nomes modernos do cinema japonês.
Miyazaki como contador de histórias
Nos anos 1970 e 1980, houve um experimentalismo fílmico muito prolífico ao mesmo tempo que preciso no cinema de animação. A Disney já não era mais a mesma, tanto lucrativamente quanto no quesito de contar histórias. Ao mesmo tempo houve um levantar de animadores ao redor do mundo com novas ideias de utilizar o cinema como ferramenta política. Daí surgiu muita coisa boa como “Planeta fantástico”, lançado em 1973, que traz debates sobre política e manipulação; “Fritz, the cat”, lançado em 1972, que de certo modo revolucionou o uso da comédia na animação, influenciando gerações futuras; “O senhor dos anéis”, lançado em 1978, que utiliza da rotoscopia como ferramenta principal no seu desenvolvimento. Parecia que houve um despertar de animadores propondo novos modelos de animações ao redor do mundo e no Japão não poderia ser diferente.
O que tornou o cinema de animação japonês tão imensamente conhecido nessa época foram vários fatores. A sociedade já não enxergava o molde fabulesco com os mesmos olhos de antes, pois as revoluções contra-culturais dos anos 1960 e 1970 moldaram uma geração que necessitava de ver temas que tratavam de uma sociedade mais realista. Daí tivemos dois tipos de películas animadas nesse período, as películas que resistiam ao tom fabulesco mas aceitando a maturidade do público e as películas de animação mais realistas e concisas. Um exemplo da primeira categoria seriam películas da Disney que naquela época adentravam novas etapas no processo criativo. Ao mesmo tempo em que eram fabulescas traziam mais maturidade e temas nunca levados em cena, como por exemplo: ”O cão e a raposa”, “Bernardo e Bianca” e “Caldeirão mágico”, películas que apontavam já uma outra fase dotada de maturidade do estúdio. Ao mesmo tempo, víamos películas ultrarrealistas como “Akira”, anime lançado em 1988 e que revolucionou o molde de animação tradicional a que assistimos através de sua abordagem futurista, distópica e desesperançosa sobre a humanidade.
Esses dois tipos de películas de animação não se tornaram casos isolados pois, acima de tudo, foi através de uma junção de conhecimento endógeno sobre os horrores da guerra, conhecimento nostálgico sobre a impersonificação fabulesca de personagens folclóricos dentro de cada cena, a utilização da natureza como um fator de alcançabilidade cinematográfica e a materialização da operância do World-building com base no conhecimento prévio de várias obras de fantasia fabulescas de outrem que surgiu uma variante das películas de animação que estavam sendo lançadas naquela época: as animações de Miyazaki.
A maneira como Miyazaki faz o público digerir suas obras é quase como se voltássemos para a infância onde estamos nos possibilitando a ver novas descobertas sob um olhar mais sensível e mais humanamente introspectivo. É a animação natural no seu estado mais puro, algo modesto, simples e sem grandes exageros cinematográficos. São histórias fabulescas ambientadas em cenários catastróficos e daí surge a possibilidade de adaptação, da cura de cada persona. Parece que me refiro ao cinema, mas me refiro a humanidade de Miyazaki.
O que torna uma película de animação meticulosamente bem trabalhada são múltiplos fatores: um bom desenvolvimento, uma acurácia bem detalhada, uma alcançabilidade nos temas trabalhados e entre outros a própria construção do mundo ou World-building, como mencionado.
Desde o começo da comercialização do cinema de animação, a exploração do world building é nitidamente usada por animações sobretudo fabulescas onde a permissão da exploração do ambiente apresentado passa a ser a responsabilidade do propósito dos temas propostos. Contudo, a autonomia do cineasta é de suma necessidade para trabalhar a atmosfera e a ambientação, o que implica que não adianta termos uma ambientação fabulesca se o ambiente não possui um histórico, uma cronologia, ou ainda mais agravante, se o animador não se propõe a explorar a atmosfera, o propósito não vem a fruição e isso para um cinema quintessencialmente live action pode ter escapatória, para o cinema de animação não pois o maior propósito do cinema de animação é a materialização para a criatividade individual e a impossibilidade da exploração da atmosfera torna a animação basicamente pragmática. O Estúdio Ghibli, sobretudo Miyazaki, transbordam um projeto que a intenção original é a necessidade da exploração do ambiente como uma variável estigmatizada a ser desmembrada e, para facilitar, uso dois exemplos de películas do próprio Estúdio Ghibli dirigidas pelo Miyazaki que usam dessa metodologia do world-building.
A primeira película é “Porco Rosso”, película que narra a transfiguração do personagem principal que teve seu rosto modificado pela face de um porco após os horrores da guerra. Aqui a construção de mundo lida com a complexidade da humanização e da desumanização. É uma película sobre a desumanização da individualidade e claramente sem o processo de criação de mundo, a animação não exploraria os seus temas da mesma maneira. Aqui Miyazaki usa de sua sapiência fílmica e pessoal sobre a segunda guerra através de suas experiências e perdas pessoais para explanar o tratamento que a guerra traz para um indivíduo e sua persona.
O espaço onde “Porco Rosso” é amplamente localizado é tomado por fascistas italianos e o personagem principal, Porco Rosso se recusa a se aliar com fascistas pois segundo ele: “Melhor um porco do que um fascista”. Essa frase, apesar de curta, torna nítida a necessidade de Miyazaki de impor a construção de mundo como um fator predominante na obra. O world building aqui é usado para mostrar a transfiguração do personagem principal. Porco busca uma redenção que irá torná-lo humano novamente ao mesmo tempo que lida com sua personalidade complexa em meio ao levante autoritário europeu e isso é notavelmente amplificado através da construção de mundo criada por Miyazaki. O mundo aqui não é apenas construído, mas também proposto para ser digerido meticulosamente para interpretarmos a natureza que o personagem lida.
A segunda obra é a película “Princesa Mononoke” que, diferente de “Porco Rosso”, tem uma amplificação na estrutura antropomórfica e fabulesca da história, fazendo jus ao cinema de animação em seu estado mais puro. Aqui somos apresentados a um Japão feudalista onde um príncipe enfeitiçado é banido de sua tribo e passa a procurar pela cura do feitiço que foi lançado contra ele. Ele embarca numa jornada interpessoal fantástica onde se depara com seres fantásticos protetores das florestas, seres humanos que visam destruir a floresta limítrofe e por último, ele conhece Princesa Mononoke, uma protetora da floresta que, apesar de humana, foi criada por lobos. A película lida com temas como biomas, relações humano-natureza, industrialismo, e relações de poder e o world building nessa película tem uma alcançabilidade isomorfa a da construção de histórias em escala épica onde a necessidade da exploração do ambiente torna-se algo necessário para se entender a trama. Isso coloca essa película em um patamar cinematográfico diferente, onde possuímos uma alta escalação de ambientações que precisam ser exploradas para se compreender o histórico do ambiente e eventualmente o que levou a atmosfera a presenciar tantos conflitos.
Geograficamente, o ambiente tende a ter comportamentos que nos motivam a se comportar conforme tanto o histórico quanto a energia que o local transmite. Com isso, em “Princesa Mononoke”, temos um fruto da animação tradicional fabulesca, uma ode ao cinema japonês dos anos 1950 e 1960 onde existe guerras pela manutenção local e, não obstante, uma construção de mundo onde a meticulosidade explora tantos os seres fantásticos quanto o comportamento humano cronologicamente. Isso passa a exemplificar que as películas dirigidas por Miyazaki, que recentemente recebeu seu segundo prêmio da Academia norte-americana de cinema pela película “O menino e a garça”, são películas que lidam com um espectro que exploram a ambientação e depois passam a mostrar como tanto o espaço e tempo isomorficamente trazem suas consequências para a individualidade humana.
O que diferiu e ainda difere o trabalho maestral de Miyazaki será sua excepcionalidade na necessidade de impor a ambientação como fator que deve ser explorado e não apenas a persona dos personagens. Anos vão passar e o atributo maior do cinema de animação será a autonomia no processo criativo, como tivemos durante anos uma hegemonia massiva dos Estúdios Disney, mas, cinematograficamente falando, o Estúdio Ghibli terá sempre um espaço na construção meticulosa de um mundo tão complexo onde problemas, guerras, conflitos ocorrem, mas, ainda assim, através da animação genuína, existe esperança.