Guia Alimentar: A luta contra os ultraprocessados no Brasil tem um nome
Matéria especial da série ‘Alimentação de qualidade é um direito de todos’ – 10 anos do Guia Alimentar
Por autoria coletiva CulinAfro
Ao longo das últimas décadas, o estado nutricional e os hábitos alimentares das populações mundial e brasileira vêm se modificando consideravelmente. Com isso, a Organização Mundial da Saúde recomendou que os governos desenvolvessem diretrizes nacionais sobre alimentação e nutrição, em concordância com a realidade de saúde de seus países.
Uma das primeiras diretrizes nacionais foi o Guia Alimentar para a População Brasileira – Promovendo a Alimentação Saudável, publicado em 2006, como referência de alimentação adequada e saudável para governos, profissionais de saúde e sociedade. Entretanto, o documento continha linguagem muito técnica, que dificultava o entendimento pela população em geral. As orientações se baseavam em porções que organizavam os alimentos de acordo com a quantidade e os tipos de nutrientes que continham, como sugerido na pirâmide alimentar adaptada para a população brasileira.
Essa é uma forma muito limitada de classificação, uma vez que a relação da nutrição com a saúde e a doença demonstra que o processamento dos alimentos se conecta com o avanço da obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis. Portanto, apesar do cereal integral e o “matinal” serem fontes de carboidratos e, teoricamente pertencerem ao mesmo grupo de alimentos, o segundo apresenta, na sua composição, grande quantidade de açúcar adicionado e aditivos alimentares, que não possibilita considerá-los equivalentes.
Outra forma de classificar os alimentos foi proposta: a Classificação NOVA. Esta considera a extensão e o propósito do processamento industrial e foi incluída na segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira (2014). Os alimentos passaram a ser divididos em 4 grupos: alimentos in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados. Ou seja, o grau de processamento passa a ser a variável mais importante para se definir a qualidade da alimentação.
Nessa segunda versão do Guia, no capítulo 2, se discorre sobre o consumo dos alimentos e estabelece a Regra de Ouro: “prefira alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. Essa declaração coloca o documento em contraposição ao consumo excessivo desses alimentos. E algumas são as razões para isso. 1) A composição nutricional é desbalanceada, com excesso de açúcar, gordura e sódio. Nutrientes que são utilizados, em maior quantidade, para aumentar a palatabilidade, ou a vida de prateleira, ou para mascarar sabores indesejáveis dos aditivos ou dos processamentos utilizados. 2) Favorecem o consumo excessivo de calorias, pois interferem nos sinais de saciedade do organismo (que também é causado pelo baixo teor de fibras), fazendo com que seja necessário maior volume de alimentos, que apresentam maior quantidade de calorias. 3) Hiperpalatabilidade causada pelo excesso de gorduras e açúcares, sódio e aditivos para serem extremamente saborosos. Com isso, as pessoas passam a considerar alimentos in natura ou minimamente processados “sem graça”! Além disso, o consumo de ultraprocessados estimula o comer sem atenção na quantidade e qualidade do alimento; as porções, muitas vezes, têm tamanhos excessivamente grandes, fora o impacto negativo na cultura alimentar, vida social e no meio ambiente.
Mas quem são os alimentos ultraprocessados? São formulações industriais derivadas de substâncias ou constituintes sintetizados em laboratórios a partir de matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e outros tipos de aditivos, descritos na lista de ingredientes, que tornam o produto sensorialmente atraente). Ao estudar o corpo humano e o processo digestivo, aprendemos que produzimos enzimas que digerem carboidratos, proteínas e lipídios. Não petróleo e carvão! Sendo assim, o consumo elevado de ultraprocessados aumenta a incidência de doenças do trato gastrointestinal, como síndrome do intestino irritável, diarreia e constipação, e é fator de risco para o câncer colorretal, além da sua relação com o avanço da obesidade e suas complicações. Portanto, o problema do consumo habitual destes alimentos, é o alto teor de açúcar simples, gordura trans ou saturada, aditivos e conservantes que são desenvolvidos a partir de substâncias que o organismo humano não reconhece e, portanto, não digere.
A fabricação geralmente é feita em indústrias de grande porte, com tecnologias exclusivas e embalagens prontas para o consumo ou que permitem maior tempo de vida de prateleira. Como exemplo, temos diversos tipos de guloseimas, bebidas açucaradas, refrescos em pó, salgadinhos de pacote, macarrão instantâneo, barras de cereal, bebidas energéticas e muitos dos suplementos esportivos.
A importância do Guia na luta contra o consumo excessivo de ultraprocessados não é apenas no âmbito da recomendação. Também é base para políticas públicas extremamente importantes. Em março de 2024 foi publicado decreto presidencial a respeito da composição da cesta básica de alimentos no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar, com a finalidade de garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável e promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional. Nele, o presidente afirma que a composição da cesta deverá, dentre outras coisas, seguir as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos e assim, fomentar sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis e justos. Dessa forma, a cesta será composta por alimentos in natura ou minimamente processados e ingredientes culinários, sendo vedada a inclusão de ultraprocessados. O decreto orientou políticas relacionadas à produção, abastecimento e consumo de alimentos, como a da reforma tributária sobre o consumo. Aprovada a pouco tempo, define a taxação dos alimentos de forma distinta, em função dos benefícios ou malefícios que causam à saúde. Pela primeira vez na história, alimentos ultraprocessados terão imposto seletivo – inclusive as bebidas açucaradas -, enquanto que os in natura e minimamente processados, não.
A segunda versão do nosso Guia completou 10 anos! Foi o primeiro documento norteador de alimentação saudável a adotar a Classificação NOVA! E ao longo desse tempo, tem sido elogiado mundialmente, é considerado um dos melhores guias alimentares do mundo e, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, deve ser visto como referência. Além de ser importante ferramenta para o desenvolvimento de políticas públicas de combate à fome. Temos que ter muito orgulho da grandeza desse documento!
O Guia foi desenvolvido para todo brasileiro e para ser o documento norteador sobre alimentação saudável, também nas residências, unidades de saúde, escolas e nos mais diferentes espaços que a temática possa ser discutida. Deve-se considerar aspectos como a cultura alimentar, gênero, raça e classe. Com base nisso, a CulinAfro defende a culinária afro-brasileira como promotora e referência dessa alimentação saudável, já que alimentos in natura e minimamente processados também são sua base. Dentre nossas diferentes atividades, trabalhamos na Educação Básica e na de Educação de Jovens e Adultos com atividades de Educação Alimentar e Nutricional que fortaleçam o entendimento da saudabilidade da alimentação afrodiaspórica.
Gostaríamos de compartilhar duas experiências exitosas: a Tenda CulinAfro e a Oficina Visita ao Mercado. A primeira é uma instalação artístico-pedagógica afrocentrada que tem por objetivo propiciar a experiência sensorial por meio de fotografias, músicas, comidas, poesias e aromas de temperos expostos em uma estrutura de tenda tipo gazebo, fechada em suas laterais com tecidos coloridos. A Tenda é uma estratégia educativa que proporciona experiência vivencial pela interação do visitante a diversos saberes, e provoca reflexões sobre a alimentação adequada e saudável. O vídeo a seguir retrata recortes dessa experiência:
Já a oficina Visita ao Mercado tem o objetivo de dialogar com os estudantes sobre o preço dos alimentos, de acordo com os graus de processamento. A dinâmica simula a ida ao mercado com o recurso similar ao repasse de um programa de transferência de renda do governo. Os estudantes escolhem o que desejam comprar e após, se discute sobre qualidade, custo e valor dos alimentos, cultura alimentar e a possibilidade de “trocas” mais saudáveis, à luz das recomendações do Guia. Para saber mais recomendamos a leitura do livro Café com farinha e prosa: caderno de metodologias educativas para dialogar sobre o direito humano à alimentação adequada .
O Guia é importante instrumento na luta contra os ultraprocessados e suas recomendações podem e devem ser utilizadas na Educação Alimentar e Nutricional nos diversos ambientes de forma a contribuir para o desenvolvimento de estratégias para a promoção e a realização do direito humano à alimentação adequada.
SOBRE A CULINAFRO
Autoras Pesquisadoras da CulinAfro: Ainá Innocencio da Silva Gomes, Camila Moreira Fonseca, Danielle Theodoro Canicio, Debora Silva do Nascimento Lima, Luana de Lima Cunha, Maria Lorrane Lopes Conde e Rute Ramos da Silva Costa.
A CulinAfro é um grupo de extensão e pesquisa CNPq do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Macaé (RJ), criado em 2014 pela Profª Dr. Rute Costa. Hoje o grupo atua nas seguintes linhas de pesquisa: Educação Alimentar e Nutricional em Afroperspectiva; Alimentação Escolar Quilombola e Culinárias Africanas.
Referências
Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia Alimentar para a População Brasileira Brasília: MS; 2014
Bortolini GA, Moura ALP, Lima AMC, Moreira HOM, Medeiros O, Diefenthaler ICM, et al. Guias alimentares: estratégia para redução do consumo de alimentos ultraprocessados e prevenção da obesidade. Rev Panam Salud Publica. 2019; 43: e59. DOI:10.26633/RPSP.2019.59
Pinto JRR, Costa FN. Consumo de produtos processados e ultraprocessados e o seu impacto na saúde dos adultos. Research, Society and Development. 2021; 14: 1. DOI:10.33448/rsd-v10i14.22222
Bielemann RM, Motta JVS, Minten GC, Horta BL, Gigante DP. Consumo de alimentos ultraprocessados e impacto na dieta de adultos jovens. Rev Saúde Pública. 2015; 49:28. DOI:10.1590/S0034-8910.2015049005572
Cunha, LL; Costa, RRS; Lima, BCV (org) Café com farinha e prosa: caderno de metodologias educativas para dialogar sobre o direito humano à alimentação adequada. Disponível em: https://alimentacaoescolar.org.br/acervo/cafe-com-farinha-e-prosa/