Por Hyader Epaminondas

A experiência com Guerreiros do Sol começa com um engano delicioso. Ao dar play, imaginei estar diante de mais uma minissérie autoral das que o streaming brasileiro tem cultivado com precisão estética. Mas logo percebi: não era minissérie, era novela. Uma novela que se recusa a vestir o velho figurino do folhetim. Aqui, o formato se expande, se transforma e mira o olhar do cinéfilo com uma trama livremente inspirada no livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil (1985), do historiador Frederico Pernambucano de Mello.

É um híbrido arrebatador, onde o drama sertanejo sobre o cangaço e seus cangaceiros, retratados com camadas de complexidade, longe da romantização fácil ou das dicotomias entre heróis e vilões, se entrelaça ao faroeste e à poesia visual. A história, escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, mergulha nas contradições, nos dilemas éticos e nas pulsões violentas que moldam aqueles personagens.

A direção de João Gomez e Thomaz Cividanes, sob a direção geral e artística de Rogério Gomes, é um delírio árido, onde o sangue quente da terra se mistura à sombra dura da linguagem, criando uma experiência sensorial que é tanto brutal quanto lírica, tanto ancestral quanto moderna.

Logo no primeiro episódio, a estrutura já revela seu fôlego épico. A trama começa pelo epílogo, num presente em ruínas, e só depois retorna no tempo para mostrar como tudo desmoronou. Cinco anos antes, os personagens ainda eram matéria bruta, à beira da combustão. A cada corte, a cada cena, o sol se impõe como entidade.

Não apenas ilumina, mas sentencia. Ele banha corpos e paisagens com a fúria de um deus severo, transformando suor em linguagem. Sua sombra, sempre presente, denuncia mais do que protege. É o sol que grava a verdade nas testas de seus personagens. E o coração vira casa de tormenta, ninguém permanece intacto nessa crônica falada no meio do sertão.

Entre cordel e cinema

A narrativa que brota da família Alencar, com seu elenco estelar, é, na verdade, uma crônica de um Brasil não tão explorado no imaginário popular. Um país onde a justiça se confunde com miragem, onde a força policial serve ao capital e o coronelismo resiste como herança viva. José de Abreu transita com maestria entre o homem apaixonado e o desprezo absoluto pela vida humana, encarnando o poder genealógico do dinheiro com a aridez de um solo esquecido pela chuva. Ao seu lado, Daniel de Oliveira rasteja como serpente moldada pela herança maldita: um pai que é a caatinga estéril, um filho que se arrasta nela, perigoso, sinuoso, letal como o silêncio que antecede a picada.

Ainda assim, nem só de brutalidade vive a trama. O amor, por vezes, também insiste em florescer nesse chão rachado. O casal protagonista, Josué e Rosa, vive um romance proibido, embriagado por cachaça e lirismo, através das atuações de Thomás Aquino e Isadora Cruz, com suas trocas mais doces que arroz-doce e diálogos que soam como modas de viola, onde a prosa vira melodia e a palavra vira gesto de sobrevivência. Ao mesmo tempo em que Isadora intercala a narrativa com sua narração árida sobre a realidade daquela sociedade, Thomás transita entre a violência do cangaço e o olhar apaixonado shakespeariano. A linguagem entre eles não é só comunicação: é resistência afetiva em um mundo corroído pela guerra entre castas.

Enquanto o arco principal avança com força visceral, as personagens de Alice Carvalho, Alinne Moraes e Nathalia Dill sustentam com solidez o arco secundário, com tramas entrelaçadas envolvendo a ascensão dos direitos das mulheres no Brasil por volta dos anos 1930. Suas tramas próprias, marcadas por identidades distintas, não apenas ganham espaço para existir com potência, mas também equilibram e atravessam a narrativa central de forma marcante.

A novela propõe uma escuta sensível à sororidade, ao enfrentamento do assédio e à importância do cuidado com o corpo e a mente. E o grande destaque do elenco feminino fica a cargo de Marcélia Cartaxo como a matriarca da família Alencar, que encarna o trauma com uma delicadeza surreal. Em meio a esses temas, destaca-se a delicada construção do cuidado com a saúde mental, representada com profundidade por Arduino, personagem de Irandhir Santos, cuja trajetória revela as camadas mais silenciosas da masculinidade frágil dentro do contexto do sertanejo. Seu mal é uma mistura do vazio da ganância com a fragilidade de seu complexo de inferioridade.

O sertão como estética e denúncia

As atuações, sempre marcadas por certo tom teatral, não soam artificiais, mas reverberam como ecos de arquétipos maiores: o cangaceiro, o coronel, o servo, o jovem irado, a mulher invisível, todos os membros do elenco atuam com toda a potência do sol, em um nível fora de série, entregando momentos memoráveis em literalmente todas as cenas individuais. Não existe uma atuação ruim dentro dos diversos nomes presentes no elenco.

E mesmo essas figuras simbólicas carregam rachaduras profundas. O sétimo episódio, centrado no conflito interno de Arduino, talvez seja o mais cinematográfico da primeira leva. O uso de filtros que drenam as cores da tela acompanha sua batalha psíquica, criando um efeito visual que rivaliza com grandes dramas de guerra. Ali, a novela se despe do formato convencional e assume sua ambição artística sem pudor.

A direção de arte entende o sertão não como pano de fundo, mas como personagem em estado bruto. O chão é seco, o céu é um azul desbotado e tudo entre eles vibra sob o peso do calor. A luz do sol, dura e absoluta, transforma pessoas em sombras e sombras em metáforas. A câmera, muitas vezes baixa, revela a grandiosidade do vazio e a pequenez de quem o habita.

O sertão aqui não é cenário: é sentença. E isso fica explícito no horrível episódio catorze e no dilúvio escaldante da primeira parte do episódio quinze, com destaque para Kelner Macêdo e Rodrigo García, para passar o glamour para o restante do elenco no fechamento do argumento da primeira fase da novela, incluindo até uma inesperada crise de consciência de classe da Jânia de Alinne Moraes.

Com novos episódios toda quarta-feira, Guerreiros do Sol é um manifesto em forma de cordel audiovisual, entre pólvora, paixão e utopia, em uma história livremente inspirada em Lampião e Maria Bonita para reinventar o cangaço com olhar cinematográfico. Uma obra que flerta com o barroco, mas também com a crueza da realidade. Entre o calor e a penumbra, há espaço para contemplação. Entre tiros, mandos e desmandos, ainda há lugar para ternura e incerteza.

Ao exaltar a arte brasileira por meio de nossas utopias mais ousadas, esse desejo de sermos únicos, audaciosos, inconfundíveis, Guerreiros do Sol, já em sua primeira fase composta pelos quinze primeiros episódios, oferece uma resposta pulsante. Uma novela que se recusa a ser apenas entretenimento raso. Ela encara o sertão como se ali pulsasse o centro do mundo. O céu vigia. O sol sentencia. E a arte, silenciosa, mas acesa sob esse juízo, insiste em resistir.