O escândalo sobre o golpe multimilionário das criptomoedas lançado pelo presidente da Argentina, Javier Milei, atingiu o coração do governo libertário e desencadeou uma crise sem precedentes que ameaça arruinar os planos do governo no início do ano de eleições legislativas com a renovação do Congresso. Milei não só virou alvo de críticas de milhares de usuários ao redor do mundo, como também terá que enfrentar uma série de consequências que vão desde a deterioração de sua imagem até reclamações judiciais em âmbito nacional e internacional, incluindo pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados. Até mesmo espaços chamados de “dialoguistas” cobravam que o presidente prestasse contas urgentemente ao Congresso e que órgãos de controle como a Unidade de Investigação Financeira (UIF), a Promotoria de Justiça de Narcotráfico (Procunar) e a Comissão Nacional de Valores Mobiliários (CNV) interviessem. Desânimo e silêncio na Casa Rosada.

A origem

Um minuto depois das 19h de sexta-feira, Milei lançou o golpe. Por meio de suas contas verificadas no Instagram e X, com quase 6 e 4 milhões de seguidores, ele promoveu o “VivaLaLibertadProyect”, um suposto projeto privado para financiar empreendedores argentinos por meio da compra da recém-criada criptomoeda $LIBRA. O presidente postou a mensagem em suas redes sociais e enquanto milhares “investiam”, ele permaneceu em silêncio por um longo tempo. Boa parte das tropas digitais libertárias o seguiram rapidamente. Daniel Parisini, conhecido como “Gordo Dan”, respondeu à mensagem com a frase “EU COLOQUEI TUDO O QUE TENHO LÁ”.

Após uma alta vertiginosa, o valor das $LIBRAs despencou para quase zero. De acordo com especialistas de mercado, um punhado de carteiras virtuais que obtiveram a #LIBRA a um preço ridículo, venderam suas ações quando o valor disparou. Eles alcançaram uma lucratividade entre 70 e 100 milhões de dólares em poucas horas. Dada a magnitude do escândalo, circulou a hipótese de uma invasão à conta presidencial. A deputada libertária Lilia Lemoine confirmou que a postagem era real e 38 minutos depois da meia-noite chegou uma espécie de exoneração.

O presidente disse que não tinha “nenhuma ligação” com o projeto e que o anunciou sem ser “informado dos detalhes”. Sem pedir desculpas ou dar mais explicações, ele finalizou com seu típico roteiro agressivo: “Aos ratos imundos da casta política que querem se aproveitar dessa situação para fazer mal, quero dizer que a cada dia eles confirmam o quão vis os políticos são, e aumentam nossa convicção de dar um chute na bunda deles. VLLC!”

A versão da falta de conexão com o projeto e do desconhecimento dos “detalhes” esbarra em alguns obstáculos. Milei teve uma reunião em outubro passado com Julian Peh, cofundador da KIP Network Inc, durante a conferência TechForum. Peh decidiu postar uma foto com Milei em suas redes sociais e dizer que eles conversaram sobre Inteligência Artificial e o que sua empresa poderia fazer na Argentina.

Depois que o escândalo estourou, a KIP primeiro tentou inocentar Milei e depois se desvincular do golpe. Eles argumentaram que não tinham nada a ver com criptomoedas, mas que era responsabilidade de outra empresa, a Kelsier Ventures. Em sua conta X, a Kelsier Ventures fixou um retuíte de uma postagem de Milei de 30 de janeiro deste ano. “Estamos orgulhosos de aconselhar a @JMilei na execução deste objetivo na Argentina e continuar mudando o mundo para melhor”, comentaram. O tuíte do presidente o mostrou em seu escritório ao lado de um jovem desconhecido chamado Hayden Mark Davis, que, segundo ele, estava “aconselhando-o sobre o impacto e as aplicações da tecnologia blockchain e da inteligência artificial no país”. Ou seja, Milei havia se encontrado nos últimos meses com os responsáveis ​​pelas duas empresas ligadas ao golpe.

A reação

Capturas de tela de vários tweets excluídos logo começaram a circular. Não apenas do presidente e do “braço armado” libertário, mas também de líderes do partido no poder, como o presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem, e o chefe da Comissão de Orçamento e Finanças, José Luis Espert, que retuitaram o golpe. Apenas alguns políticos saíram para defendê-lo. O Ministro da Economia Luis “Toto” Caputo levou o dia todo para pensar cuidadosamente sobre sua mensagem: “O Presidente @JMilei é a melhor coisa que aconteceu ao país em 100 anos. Fim”, foi o melhor que ele conseguiu fazer. Na ausência de argumentos, as tropas digitais buscaram desviar a atenção e confrontar o kirchnerismo. Milei compartilhou freneticamente conteúdo sobre outros tópicos.

Naquela mesma noite e na manhã seguinte, as questões da oposição aumentaram. “Nunca vimos nada parecido antes na história”, disse Cristina Kirchner. “Você agiu como isca para um golpe digital.” O ex-presidente enfatizou que Milei inflou o valor da moeda ao tirar vantagem de sua posição presidencial e o chamou de “incompetente”.

“Como candidato, ele fez algo parecido e os fraudadores estão presos, mas desta vez Milei aproveitou a presidência para promover uma fraude”, lembrou o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, em referência ao caso CoinX. Kicillof também exigiu que ele desse explicações “perante o país e perante a justiça”. “É preciso deixar claro se ele e sua comitiva estão entre os fraudadores. O presidente da Argentina fez parte de um golpe global. É um escândalo e uma vergonha. Mas, acima de tudo, é um crime”, concluiu.

Do mundo sindical, tanto a CGT quanto as duas CTAs questionaram o presidente. O conselho de administração da CGT descreveu o incidente como um “ato grave de irresponsabilidade institucional”. Ele pediu uma “explicação abrangente e coerente” para alcançar um “esclarecimento total” da “decisão imprudente” do presidente. “Expressamos nossa absoluta condenação a esta conduta inaceitável e incomum do homem que é o presidente do povo argentino”, disseram os sindicatos liderados por Hugo Yasky e Hugo “Cachorro” Godoy.

Comissão de impeachment e investigação

A bancada de deputados do Unión por la Patria anunciou que apresentará um pedido de impeachment diante do “escândalo sem precedentes”. O mesmo havia sido anunciado pelo socialista Esteban Paulón, do interbloco Encontro Federal. “A gravidade do assunto justifica a abertura de uma investigação para apuração de responsabilidade. O foro natural estabelecido pela Constituição Nacional é a comissão de impeachment”, explicou a deputada do UxP e ex-chefe dessa comissão, Carolina Gaillard, à Página/12 .

Em abril do ano passado, a Comissão de Impeachment se envolveu em um escândalo quando, na época de sua constituição e eleição de autoridades, a oposição, juntamente com alguns apoiadores do governo, votou na libertária Marcela Pagano como presidente, Paula Oliveto (Coalición Cívica) como vice-presidente e Leopoldo Moreau (Unión por la Patria) como secretário. Menem tentou, sem sucesso, impedir a votação e, como não conseguiu, nunca oficializou o fato às autoridades.

Atualmente, esta comissão é composta por 30 membros. Todos esses blocos questionaram a atitude do Presidente. Os 13 assentos restantes são compartilhados entre os libertários e seus aliados mais próximos. Mas, além de poder haver maioria favorável ao impeachment, a comissão não pode se reunir sozinha, a menos que seja convocada por seu presidente (e, para isso, Menem teria primeiro que formalizar a designação de suas autoridades).

Além disso, Pagano foi justamente uma das poucas vozes que se manifestou sobre o assunto. O ex-jornalista usou um argumento curioso para sustentar que o impeachment não era adequado porque o presidente “não estava exercendo suas funções”. “O impeachment é uma ferramenta extrema e excepcional que não deve ser deturpada para ganhar manchetes de jornais”, concluiu.

Nesse contexto, outros blocos veem o caminho mais viável de criar uma comissão investigativa para coletar informações e então analisar os próximos passos. “Insistiremos em uma comissão investigativa no Congresso Nacional. Isso sem prejuízo de apresentar uma denúncia à Justiça”, disse Pablo Juliano, líder do bloco Democracia para Sempre. “Precisamos de todas as organizações que têm capacidade de auditar, encontrar e pressionar, e do próprio governo para dizer quem levou isso ao presidente. No mínimo, uma comissão investigativa e, com base no que surgir, ver qual curso será tomado, se impeachment ou não. Precisamos saber o que aconteceu”, disse o senador e presidente da UCR, Martín Lousteau. A Coalizão Cívica expressou uma opinião semelhante. “Não se trata de um erro simples. É uma negligência grave, uma possível ilegalidade e um sinal de irresponsabilidade por parte de quem ocupa o mais alto cargo do país. Não estamos falando de um incidente menor, mas sim de transações que valem bilhões de dólares”, disse o deputado Maximiliano Ferraro.

Reclamações legais

O Criptogate já chegou aos escritórios das autoridades dos Estados Unidos. Impulsionada pelo escritório jurídico Moyano & Asociados, especializado em casos de “insolvência internacional” e “fraudes financeiras”, uma denúncia criminal contra os irmãos Milei e outros protagonistas do escândalo, foi entregue aos departamentos do Departamento de Justiça e do FBI (Escritório Federal de Investigação, em inglês).

O Moyano & Asociados, escritório de origem argentina, apresentou um “relatório de operações criminosas” no qual acusa, detalhando o papel de cada um no caso, Javier Milei, sua irmã e secretária-geral da Presidência Karina Milei, e os empresários de criptomoedas Hayden Mark Davis (estadunidense), Julian Peh (singapurense), Mauricio Novelli (argentino) e Manuel Terrones Godoy (espanhol). O relatório inclui uma notificação à Comissão de Valores dos Estados Unidos (SEC).

O escritório de advocacia afirma representar investidores, em sua maioria argentinos, embora se saiba que a maior parte das pessoas enganadas não são do próprio país de Milei, mas de outros, como os próprios Estados Unidos.

De acordo com as informações divulgadas pelo jornalista Hugo Alconada Mon no jornal La Nación, o escritório jurídico “apresentou múltiplos dados que confirmariam a jurisdição estadunidense” para investigar e punir as condutas criminosas de Milei e companhia.

Começando, logicamente, porque há “cidadãos estadunidenses ou com residência nos Estados Unidos que foram vítimas do crime”. Além disso, porque “a plataforma utilizada, chamada ‘Kip Protocol’, foi desenvolvida nos Estados Unidos, e a empresa controladora, Kip Network Inc, está registrada em Kansas City, Missouri”.

Por sua vez, “tanto a Kip Network Inc quanto a outra empresa que estaria por trás da operação criminosa, Kelsen Ventures, não foram registradas na SEC, nem autorizadas a atuar como veículos financeiros ou agentes investidores”. No entanto, a Kelsen Ventures e seu proprietário, Hayden Mark Davis, “se apresentaram como uma empresa e um cidadão estadunidenses”. No entanto, a Kelsen “não pode ser encontrada nos registros comerciais ou societários disponíveis, o que levanta suspeitas sobre se essa empresa realmente existe”.

“Requeremos ao Departamento de Justiça que investigue o papel do presidente da República Argentina, Javier Milei, nesta fraude, dado que ele a promoveu e, no passado, promoveu vários empreendimentos que se revelaram fraudes”, diz o pedido do escritório Moyano & Asociados às autoridades estadunidenses, conforme relatado pelo jornalista Alconada Mon.