
‘Gigi’, uma travessia animada repleta de delicadeza e reconhecimento
Curta-metragem de animação dirigido pela francesa Cynthia Calvi foi exibido no 19º For Rainbow, em Fortaleza (CE)
Por Sé Souza
A arte toca em nossa subjetividade — isso não é novidade para ninguém. Mas fazia tempo que eu não me conectava com uma animação como em Gigi, curta-metragem dirigido pela cineasta francesa Cynthia Calvi e produzido pela Xbo Films, em colaboração com o Studio des Affranchis, em Toulouse. Assisti ao filme durante a programação do 19º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, em Fortaleza, onde estou presente em cobertura jornalística. Foi uma das produções que mais captaram minha atenção e admiração: um mix de fofura, emoção e, sobretudo, reconhecimento.
O processo de transição de gênero tem sido a coisa na qual mais tenho pensado nos últimos anos. Após muito tempo suprimindo meu verdadeiro eu, pude — depois de amadurecer e me permitir a autoanálise — dar vazão à minha identidade, à minha verdade. Ou, como diz minha mais nova grande amiga Verónica Valenttino, “fazer a travessia”.
No curta, de forma lúdica, alegórica e poética, ao esconder e negar sua condição, a protagonista se vê transformada em uma criatura aquática: meio peixe, meio sereia, meio monstro. Mas nunca na mulher que ela é e deveria ter sido desde sempre. A vida faz isso com algumas de nós: intervenções externas, o medo social, preconceitos e um imaginário perverso construído para que nos sintamos erradas ou de menor valor.
Em certo momento, Gigi chega a repensar sua transição por medo de não ser amada. Seu ex-namorado propõe continuar com ela “do mesmo jeito”, mas apenas se abrisse mão de sua identidade verdadeira. Cruel, não? Chegar a cogitar abrir mão de si mesma para não perder uma oportunidade de afeto, que, convenhamos, não é amor.
A escolha pela animação digital 2D dá ao filme uma leveza que contrasta com a densidade do tema. Dos traços cartunescos às cores esverdeadas e terrosas, cada detalhe amplia a sensibilidade da narrativa. A cena em que Gigi dança voguing em uma balada é um momento de pura celebração, um gesto de afirmação que ecoa para além da tela.
Não à toa, o curta tem conquistado destaque mundo afora: foi nomeado a Melhor Curta de Animação no César 2025, venceu o Prêmio do Público no My French Film Festival 2025, recebeu o Helen Hill Animated Short Award no New Orleans Film Festival (EUA), além de distinções em países como México (DocsMX), Austrália (Queer Screen Film Fest), Grécia (Animasyros), Bélgica (Pink Screen), Sérvia (Animanima) e França, onde também ganhou o público em Rennes e o júri estudantil em Cinéopen. O reconhecimento internacional só reforça a potência desta obra que, ao mesmo tempo em que é pessoal, se torna universal.
Confesso que torço para que ele seja reconhecido com algum prêmio aqui no For Rainbow, ou que pelo menos tenha tocado mais gente assim como eu, e que seja exibido em mais salas para afetar ainda mais vidas trans.
Gigi não é apenas um curta de animação, é um testemunho poético sobre identidade, afeto e coragem. Um convite para a autoaceitação e, finalmente, dançar livres no espaço que sempre foi nosso.
Assim como Gigi fez sua travessia, eu também fiz a minha. Mergulhamos no mar das nossas verdades, retomamos nossas vozes, nossas cores, tudo o que nos foi tirado. Obrigada, Gigi, por me inspirar e me ver em você. Estou contigo.