Fora das Paralimpíadas, o futebol de cegas avança a passos lentos no Brasil
Enquanto o futebol de cegos já é uma realidade no Brasil, a modalidade feminina ainda luta por espaço e visibilidade.
Por Cristina Dominghini Possamai e Tamara Finardi, para Cobertura Colaborativa #NECParis2024
Recentemente, o Brasil conquistou mais uma medalha com o futebol de cegos nas Paralimpíadas – o bronze em Paris 2024. Este foi o sexto pódio consecutivo dos brasileiros, que já colecionam cinco ouros. Mas você sabia que, atualmente, a medalha paralímpica deste esporte só pode ser conquistada por homens? Isso porque, desde que o futebol para pessoas com deficiência visual estreou nos Jogos Paralímpicos de Atenas 2004, só conta com disputas na modalidade masculina.
Este cenário demonstra que o futebol, mesmo no contexto do paradesporto, também é atravessado por questões de gênero. O primeiro Campeonato Mundial de Cegas ocorreu no ano passado. Existem movimentações e expectativas de que, nas Paralimpíadas de Los Angeles 2028, ocorra uma exibição da modalidade com a inserção oficial nos Jogos de 2032. Enquanto esta possibilidade não se confirma junto às entidades internacionais que regem o esporte, iniciativas que buscam fomentar espaços para mulheres com deficiência visual jogaram futebol no Brasil, encaram muitos percalços para manter suas atividades, tanto na falta de incentivo financeiro quanto de divulgação midiática.
No Brasil, a CBDV (Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais) é quem administra o futebol de cegos. A entidade relata dificuldades em captar recursos específicos para as mulheres neste esporte, dificuldade esta que se acentua em função da modalidade ainda não estar no programa Paralímpico: “para se ter uma ideia, os recursos destinados ao desenvolvimento da modalidade entre os homens não podem ser remanejados, por exemplo, para que se trabalhe com as mulheres”. Conforme a CBDV, também foram realizadas tentativas de captação via Lei de Incentivo, mas sem sucesso até o momento.
Em relação às competições, o Campeonato Brasileiro de Futebol de Cegos no Brasil, possui as séries A e B entre os homens. Já a modalidade feminina não conta com competições – neste ponto, parece se repetir a história do futebol de mulheres videntes aqui no país.
Primeira equipe de futebol de cegas do Rio Grande do Sul
Em meio a este cenário desafiador, meninas e mulheres com deficiência visual calçam suas chuteiras e se preparam para marcar muitos gols. É o exemplo do projeto sendo desenvolvido desde março deste ano em Canoas–RS, o qual ficou conhecido pela criação da primeira equipe de futebol de cegas gaúcha. A iniciativa é desenvolvida através do programa Atleta Cidadão do Futuro Paradesporto, ligado a Secretaria de Esporte e Lazer do município.
As atividades mudam a rotina e os sonhos de Alessandra Grillo da Silva, 32 anos, de Nova Santa Rita–RS, que aos 12 anos perdeu a visão do olho direito e, na sequência, descobriu um glaucoma no olho esquerdo. Ao praticar futebol através do projeto, se apaixonou pelo esporte, o que a fez almejar jogar profissionalmente. Neste ponto, a inserção da modalidade nos Jogos Paralímpicos impacta diretamente em sua realização como atleta:
“Participar das Paralimpíadas seria a realização de um sonho meu e das meninas, nosso objetivo é esse!”
O treinador da equipe, Rafael Ramon Toniolo, trabalha com futebol de cegos há oito anos na AGAFUC (Associação Gaúcha de Futebol para Cegos). Para ele, o projeto pioneiro de Canoas demonstra que a inclusão de mulheres é possível. O intuito é instigar novas ações como esta. Os treinos ficaram parados por um período devido às enchentes históricas que acometeram o Rio Grande do Sul em maio, que também atingiram o local de treino.
Há cerca de um mês, as atividades foram retomadas, com a missão de buscar um número maior de mulheres da região. Os treinos acontecem às segundas e quartas-feiras, às 15h, no Ginásio São Luís, localizado na Rua Engenheiro Rebouças, 844, Canoas–RS. Segundo o treinador, mulheres com baixa visão também podem participar das atividades.
O contato para inscrições pode ser realizado através do número no WhatsApp: +(51) 99184-0066 ou do e-mail: [email protected]
O pioneirismo da primeira equipe de futebol de cegas do Brasil e o apoio da rainha Marta: uma nova era de inclusão no esporte
Não é de hoje que a carioca Fabiana Krystal Salgueiro Cardoso, 44 anos, vive a prática do futebol. A atleta convive com a deficiência visual desde os 12 anos e, atualmente, reside no Rio Grande do Sul, onde joga com a equipe de Canoas. Entretanto, ela fez parte de algo histórico, a primeira equipe de futebol de cegas do Brasil, a Urece, que surgiu em agosto de 2009 no Rio de Janeiro, e depois jogou pela APDV em São Paulo.
“O futebol tem sido uma constante na minha vida, independente de onde eu esteja. É como se, em cada lugar, eu sempre encontrasse uma maneira de voltar para o campo e continuar fazendo o que amo”, enfatiza. A formação do grupo precursor de mulheres contou com o trabalho de Anderson Mayr, um dos fundadores da associação Urece Esporte e Cultura.
“O contexto foi um movimento de mulheres querendo jogar. Durante o meu mestrado na Europa, organizei a primeira clínica de futebol para mulheres cegas do mundo, na Alemanha. Conseguimos viabilizar e trazer esta experiência para o Brasil”.
Aos 37 anos, Gisele Cristina dos Santos Silva, também relembra com muito orgulho as conquistas junto à primeira equipe de futebol de cegas. Ao perder a visão, aos 7 anos, enfrentou desafios para encontrar escolas adaptadas e, nesta jornada, conheceu o esporte, onde iniciou no atletismo e no goalball. Em 2009, ao receber o convite para jogar futebol pela Urece, aceitou o desafio de cara.
O primeiro compromisso de peso da equipe foi disputar um torneio realizado na Alemanha. Além de Gisele e Krystal, embarcaram para a disputa as jogadoras Fabiane Alves, Silvia Regina Mesquita, Sirlene Ribeiro dos Santos, e Gisele Gonçalves (in memoriam do latim ou em memória na língua portuguesa). Como goleiras, Rebeca e Natália fizeram parte da equipe, que contou com a comissão técnica formada por Paula Bento, Gabriel Mayr e Anderson Dias da Fonseca (atual diretor administrativo da Urece). A Urece voltou com o título na bagagem e a iniciativa de realizar clínicas pelo país – eventos para demonstrar o futebol de cegas e motivar a criação de novas equipes.
A equipe pioneira do futebol de cegas no Brasil teve como madrinha ninguém menos que a rainha Marta. Com muito carinho e admiração, Krystal carrega esta memória:
“De repente eu estava ali, próximo à Marta. O mais incrível foi quando ela entrou em campo conosco e, vendou os olhos para vivenciar a nossa deficiência e jogou com a equipe dela. Ela me deu a oportunidade de acreditar que a gente pode chegar mais longe. Nos passou muita força, nos recebeu com tanto amor e, principalmente, respeito. Como eu gostaria de reencontrá-la e dar aquele abraço.”
Apesar da movimentação em torno da modalidade, as atividades do futebol feminino de cegas na Urece encerrou em 2012. Para Mayr, o fato de não ter perspectiva em relação a novas competições, contribui para a desmotivação da equipe em torno do projeto: “no primeiro ano a gente foi no campeonato, no segundo ano realizamos as clínicas e no terceiro ano a gente treinava, mas as outras equipes não foram encorajadas a continuar. Então as mulheres que jogavam conosco preferiram praticar o goalball, onde elas poderiam competir. Só treinar, sem ter uma competição, não era uma perspectiva muito legal para elas”. Ele ainda destaca a importância de ações e movimentos coordenados junto às instituições que gerem o esporte, para mobilizar e criar espaços para mulheres com deficiência visual praticarem o futebol de forma acessível e segura:
“No papel de um clube, a gente mostrou ser possível ter interesse. Mas o papel de organizar de uma forma nacional, com mais recursos, com mais estrutura, eu acredito e a Urece entendia naquele momento, que era da Confederação.”
Em 2022, a CBDV realizou o 1º Festival de Futebol de Cegas com a participação de 26 mulheres para incentivar a prática da modalidade. “A CBDV fará tudo que estiver ao alcance dela, até porque será também mais uma oportunidade de medalha ao Brasil em Jogos Paralímpicos”, reforça a entidade.
A expectativa da jogadora pioneira Gisele é ver mulheres buscando medalhas paralímpicas no futebol de cegas:
“Eu ficaria muito feliz em ver o futebol feminino na Paralimpíada porque faço parte desta história. A gente plantou a sementinha lá atrás e eu acredito que dará frutos. É um sonho, o qual acredito que não está longe de ser realizado”.
Argentina se inspirou em projeto pioneiro do Brasil e se sagrou a primeira campeã mundial
Um bom exemplo de crescimento do futebol de cegas antes da modalidade integrar oficialmente o quadro paralímpico está ao lado do Brasil, na Argentina. Os nossos “hermanos” não apenas se inspiraram no projeto pioneiro nacional, bem como superaram em termos de resultados esportivos, organização e uma programação constante.
De acordo com Gabriel Mayr, a base da seleção argentina é da região de Córdoba e conheceu o projeto da Urece. “A equipe argentina que foi campeã do mundo é a base de Córdoba, que visitou a Urece no Rio e aprendeu conosco. Depois eles não conseguiram entender porque nós não estávamos lá (no Mundial), enquanto eles que aprenderam conosco foram e venceram”, comenta.
“Nós ainda não temos campeonatos regionais. Por enquanto, a Federação Internacional realizou o primeiro Mundial no ano passado com poucas equipes. Para ter um esporte paralímpico, precisa ter a representatividade em campeonatos continentais e alguns parâmetros mínimos. Tem algumas regras para garantir o nível de esporte tanto olímpico quanto paralímpico. A federação teve um envolvimento muito grande na Europa, fruto de um investimento da Uefa que exige ações de gêneros. Então, a esperança é que isso se expanda para outros países em outros continentes”, acrescenta.
O Mundial citado por Gabriel foi realizado pela Federação Internacional de Esportes Cegos (IBSA) com oito seleções divididas em dois grupos de quatro times. A Copa ocorreu entre 18 a 27 de agosto de 2023 na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, como parte dos Jogos Mundiais da IBSA. Este é o maior evento internacional de alto nível para atletas com deficiência visual, com mais de 1000 competidores de mais de 70 países.
Promovido a cada quatro anos, os Jogos Mundiais são o auge do calendário internacional para pessoas com deficiência visual fora dos Jogos Paralímpicos. Com três esportes paralímpicos e oito esportes não paralímpicos, para alguns atletas é o nível mais alto que eles podem competir. O futebol feminino terminou com o título argentino, superando as japonesas na final. A Suécia ficou com o bronze.
Classificação final:
- Argentina
- Japão
- Suécia
- Índia
- Marrocos
- Áustria
- Alemanha
- Inglaterra
Liga argentina e encontros mensais da seleção
Vale salientar ainda que a Argentina já possui uma Liga Nacional de Futebol Feminino para Cegos, que iniciou em julho deste ano com as seguintes equipes: Las Guerreras, Las Pirañas, Las Petroleras, Las Romanas e Centro Basko. Ainda que o número de times participantes seja reduzido, a existência de um calendário facilita o desenvolvimento da modalidade e o surgimento de novos talentos.
Além disso, a seleção feminina se reúne mensalmente para um período de treinos visando as futuras competições. Conforme a Federação Argentina de Esportes para Cegos, a equipe começou mais uma concentração no dia 29 de agosto, se estendendo até o dia 2 de setembro.
Essa etapa de treinos é preparatória para a Copa Tango de Futebol Feminino, que será realizada em setembro, no Centro Nacional de Alto Rendimento Esportivo (CeNARD). Atualmente, a comissão técnica da seleção é formada por Gonzalo Abbas Hachaché, Santiago Jugo e Nancy Cruz.
Perspectiva para a modalidade entrar nas Paralimpíadas
De acordo com matéria do portal Projeto Colabora, a modalidade deve fazer parte do cronograma paralímpico nas próximas edições, entrando formalmente em Brisbane (Austrália) em 2032.
Ainda segundo o portal, o Comitê Paralímpico Internacional (CPI) planeja cobrar que os países passem a trabalhar na formação de equipes femininas. Para a próxima edição dos Jogos, em Los Angeles 2028, a intenção é promover um jogo de apresentação da modalidade.
Por fim, se a expectativa é que o esporte comece gradativamente a ganhar mais espaço e estimular a participação de mulheres que hoje acabam se direcionando naturalmente ao goalball, esporte já devidamente estabelecido no cenário internacional paralímpico.
Um ponto-chave que pode ajudar o Brasil a cortar caminho e a promover a inclusão das mulheres de forma mais acelerada no futebol de 5 é a realização da Copa do Mundo Feminina em 2027. Afinal, se o país almeja ser o país do futebol feminino dentro e fora de campo antes do pontapé inicial do Mundial, que seja de todos os tipos de futebol e para todas.