Fundação Palmares dificulta emissão de documento de autorreconhecimento das comunidades quilombolas
Conaq critica morosidade do processo e descreve burocracia como “complacência com racistas”
“Mais uma vez o Estado debate e publica uma norma sobre nós, quilombolas, sem nos escutar”. É com esse desabafo que a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) abre nota de repúdio comentando a portaria número 57 de 2022, que burocratiza o procedimento de expedição da Certidão de Autodefinição de comunidades quilombolas, o documento de autorreconhecimento.
A Conaq enfatiza que trata-se de uma decisão unilateral que ignora o artigo 6 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à qual impõe ao Estado brasileiro a obrigação de consultar quilombolas sempre que qualquer medida administrativa tiver a possibilidade de afetar as comunidades.
E que as duas organizações, já vinham dialogando sobre outros assuntos. Daí a surpresa ao descobrirem a portaria. Agora, para que Fundação Cultural Palmares possa analisar pedidos de expedição de certidão de autorreconhecimento, passa a ser obrigatório endereço de e-mail da comunidade. Na visão da Conaq, regra que pode excluir quilombos que não têm acesso à internet.
“No âmbito do Grupo de Trabalho instituído por decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 742 a Conaq e a Fundação Cultural Palmares estão debatendo temas importantes, como o procedimento para denúncia de violação de direitos de quilombolas, mas o assunto da Portaria nº 57/2022 nunca foi levado a debate pela Palmares, em evidente ação de má-fé”, diz a nota.
A portaria também impõe que as comunidades enviem à FCP um relato detalhado da trajetória comum do grupo, com a história da comunidade preferencialmente instruída com dados e documentos, “o que nem sempre é de simples elaboração”.
Ainda sob análise da Conaq, “confere o prazo de apenas 30 dias para que a comunidade providencie mais documentos e informações sobre o pedido de certidão, quando a seu exclusivo critério a FCP entender necessário”.
E prevê ainda, que as comunidades que não responderem ao ofício com pedido de complementação de informações, deverão ser notificadas por diário oficial. “Procedimento meramente formal, burocrático e custoso que inviabiliza acesso das comunidades a essa informação, pois não consultam o diário oficial com regularidade”, destaca a nota de repúdio.
Morosidade
No documento, a direção da Conaq, representando quilombolas de todo o país, destaca que a Fundação Palmares também prevê agora que qualquer órgão do Estado, inclusive aqueles que se opõe frontalmente aos quilombos, a possibilidade de questionar a consistência do relato histórico feito pelas comunidades. Obrigando assim, a FCP a diligenciar no território para supostamente investigar nossas histórias.
“Mais burocracia, mais morosidade nas certidões e mais complacência com racistas que se opõem à plena liberdade de nossas comunidades em autodeclarar a identidade coletiva quilombola”.
Falta transparência também à portaria da Fundação Palmares, já que não há qualquer indicativo do que seria o suposto “histórico inconsistente” do relato feito pelas comunidades no pedido de expedição da certidão. Na forma exposta, a FCP terá ampla e ilegal margem de discricionariedade para definir o que é esse tal de “histórico inconsistente”.
“Agindo assim a FCP viola o direito quilombola ao autorreconhecimento da identidade coletiva, e abre danosa possibilidade de obrigar a realização de estudos para que a comunidade seja reconhecida como quilombola”, diz trecho da nota.
Lideranças quilombolas encerram a nota de repúdio reforçando que não aceitarão caladas as ações abusivas e ilegais da Fundação Cultural Palmares.
“Nada será feito sobre nós sem nossa participação. A tutela e o arbítrio do Estado não serão, como nunca o foram, aceitos por nós quilombolas. Adotaremos todas as medidas necessárias para reverter a publicação da Portaria nº 57/2022 da Fundação Cultural Palmares. Por fim, a portaria permite que a FCP revise certidões já expedidas, sem que para tanto seja obrigada a dialogar diretamente com as comunidades quilombolas cujas certidões passem por esse processo de questionável revisão de autodeclaração de identidades coletivas quilombolas”.