Na região Centro-Oeste do estado do Paraná (PR), cerca de 50 famílias agricultoras, integrantes do Coletivo de Frutas Nativas e Crioulas, vêm aproveitando as árvores cultivadas em suas propriedades para produzir alimentos, conservar a natureza e gerar renda para a agricultura familiar.

Araçá, ananás, guabiroba, jabuticaba, jerivá, juçara, morango silvestre e uvaia são alguns exemplos de espécies nativas da Mata Atlântica utilizadas pelas agricultoras e agricultores agroecológicos de cinco municípios do estado: Laranjeiras do Sul, Quedas do Iguaçu, Palmital, Laranjal e Goioxim. Entre as frutas crioulas plantadas, que é a forma como chamam as variedades exóticas adaptadas à região, estão a banana, a goiaba, o limão caipira, o mamão, a manga e a mexerica.

Já são mais de 20 variedades de frutas processadas pelo Coletivo e aproveitadas na produção de diferentes produtos agroecológicos. Mas, de todas as receitas preparadas, uma tem se destacado na região: o picolé Sabores da Agrofloresta – a Fruta Camponesa.

Atualmente, o Coletivo conta com 15 sabores de picolés que são vendidos, principalmente, em eventos relacionados à agroecologia, como as feiras de sementes e da biodiversidade, as jornadas de agroecologia, as feiras da reforma agrária, festivais da Mata Atlântica, entre outros.

Produtos Sabores da Agrofloresta preparados com frutas nativas e crioulas pela agricultura familiar agroecológica do Paraná. Imagem: Divulgação (@sabores.agrofloresta)

O trabalho das/os agricultoras/es com as frutas nativas e crioulas se iniciou em 2015, mas somente quatro anos depois começaram a experimentar as receitas de picolé, com o apoio do Laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Laranjeiras do Sul. 

Conforme explica o professor da UFFS Julian Perez-Cassarino, primeiro, eles realizaram oficinas para aprimorar o processo de congelamento das frutas e, em seguida, investiram na produção de picolés, inspirados na Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas (CPSFN) do Rio Grande do Sul. “Depois que a gente arredondou as formulações dos picolés, fomos procurar sorveterias para fazer uma parceria”, diz. 

Julian ressalta que a parceria com a sorveteria Q-Delícia, em Laranjeiras do Sul (PR), ainda é uma importante estratégia para reduzir os custos. Os equipamentos necessários para fabricação de sorvetes e picolés são muito caros e, como o volume de produção ainda é pequeno, não justifica a aquisição do maquinário. “A gente identificou que uma parceria, nesse momento, é muito mais interessante do que construir uma agroindústria de picolés. A gente não tem custo fixo, o que nos permite ter um valor bem acessível do picolé”, conclui. 

Por outro lado, ele considera que é fundamental ter nas comunidades as unidades de processamento para fazer as polpas. “É lá nas propriedades rurais que estão as frutas nativas que a gente trabalha e quase nenhuma delas dá para vender in natura, pois elas não resistem. Aí entra a importância da despolpadeira e de congelar”, aponta Julian.

Além dos picolés, o Coletivo produz cinco sabores de sorbê – que é um sorvete à base de água – e seis variedades de doces, todos com matéria prima agroecológica da agricultura familiar camponesa. No momento, o grupo também está empenhado em ampliar a quantidade e variedade de produtos ofertados e diversificar as estratégias de comercialização – para não ficarem restritos aos eventos. 

Em breve, o grupo deve ter disponível para venda balas de banana saborizadas com araçá, juçara, guabiroba ou jerivá, e o suco natural – 100% fruta – pasteurizado, para durar mais tempo e não dependerem da cadeia do frio para comercializar. “Também estamos começando a trabalhar com picolés adoçados com suco de maçã, porque a gente quer ver se consegue entrar com os picolés no PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar]”, projeta Julian.

Participação do Coletivo em eventos como feiras de sementes crioulas e festivais da reforma agrária. Imagem: Divulgação (@sabores.agrofloresta)

Os desafios do início

Mas a iniciativa que hoje vem se consolidando na região começou com muita desconfiança de algumas famílias. Por ser um território onde predominam as monoculturas de grãos e as atividades voltadas à produção de leite, a ideia de gerar renda a partir das árvores frutíferas presentes nos pomares não parecia algo viável e de interesse das/os agricultoras/es.

Para Julian, foi essa percepção de que as famílias não estavam valorizando a diversidade de frutas em suas propriedades que motivou um grupo de agricultoras/es a desenvolver uma ação coletiva em parceria com instituições como o Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia (Ceagro), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), a Rede Ecovida de Agroecologia e a UFFS. 

A partir de um trabalho de visita às propriedades e do mapeamento das árvores frutíferas, foi identificado que muitas frutas se perdiam e que muitas famílias tinham, inclusive, a intenção de suprimir algumas espécies nativas. “A gente passou a dizer, então, que estamos trabalhando com as frutas ‘negligenciadas’. Não é um negligenciamento proposital, mas é aquilo que os agricultores ou quem dá assessoria técnica não atribuía valor. E aí é valor em todos os sentidos: ambiental, alimentar, mas também pesa muito a questão econômica”, analisa Julian, destacando que, agora, as/os agricultoras/es estão não apenas dando valor às árvores que possuem em suas propriedades, mas preservando as que têm e plantando mais. 

Oficina de frutas nativas realizada no acampamento Chico Mendes, em Matelândia (PR). Imagem: Divulgação (@sabores.agrofloresta)

Rede de apoio

Segundo o agricultor Josué Evaristo Gomes, que mora no acampamento Dom Tomás Balduíno, em Quedas do Iguaçu (PR), o fato das ações serem pensadas e desenvolvidas de forma coletiva foi determinante para consolidar um grupo de agricultoras/es em torno do trabalho com frutas nativas. Ele narra ainda que as famílias se sentiram amparadas e tiveram suporte para trabalhar em toda a cadeia produtiva, desde a colheita e o beneficiamento até chegar à comercialização.

Com o acompanhamento técnico de instituições como o Ceagro e a UFFS, as agricultoras/es foram incentivadas/os a ampliar a produção de frutas nativas e crioulas, por meio de oficinas de formação e mutirões para o manejo agroflorestal. Ao mesmo tempo, elas/es tiveram acesso a alguns equipamentos fornecidos pelas organizações parceiras, como despolpadeiras, seladoras e freezers para armazenar a produção. Josué ressalta que, atualmente, quase a totalidade das frutas nativas e crioulas que comercializam vem de uma produção que as famílias estavam perdendo. “Após a organização no Coletivo, temos a possibilidade de gerar renda a partir dessa produção. Para ter uma ideia, neste ano, eu posso te dizer que 80% da minha renda vêm da fruta nativa”, afirma.

Os últimos anos resumem bem a influência que o trabalho com frutíferas tem na vida de Josué. O agricultor começou a se envolver nas atividades do Coletivo há oito anos, em uma época na qual ele ainda morava com os pais em outro assentamento. Quando Josué foi se mudar para o acampamento Dom Tomás Balduíno, seis anos atrás, ofereceram para ele um lote com muita mata e várias palmeiras juçaras. O que para muitos seria um empecilho, para Josué foi um grande atrativo. 

Ele constata que, por ter participado das oficinas de formação, já tinha conhecimento sobre as árvores nativas e enxergou na plantação de juçara um grande potencial. “Já tinham passado quatro famílias pra olhar o lote. Mas por ser mata fechada e bem íngreme, essas pessoas acabaram não querendo essa unidade de produção e foram buscar áreas mais planas, que favorece a mecanização para trabalhar com monocultivo”, lembra.

Josué conta que já no primeiro ano, quando começaram a fazer o manejo da área com apoio do Coletivo, conseguiram colher e produzir em torno de 300 quilos de polpa de juçara. Desde então, ano a ano, a colheita foi aumentando. Em 2024, a previsão é produzirem cerca de 4 toneladas de polpa, considerando a produção da área de Josué e dos lotes de outras cinco famílias que também se inseriram na cadeia produtiva de frutas nativas e crioulas.

Agricultor Josué Evaristo Gomes, de Quedas do Iguaçu (PR), mostra cachos da palmeira juçara no ponto de colheita. Imagem: Arquivo Pessoal

Uma medida ousada

Julian recorda que, em 2017, um episódio foi decisivo para a sequência dos trabalhos: “Fomos nos grupos e falamos que o que eles produzissem de guabiroba na próxima safra a gente daria um jeito de vender”. No primeiro ano, três grupos de agricultoras/es produziram de 30 a 40 quilos de polpas de guabiroba, que foram usadas para autoconsumo, doadas e vendidas em comércios locais. “Daí pensamos que, no ano seguinte, iriam produzir de 100 a 150 kg. Mas o pessoal produziu quase meia tonelada de polpa. O que ocorreu foi que eles ficaram muito impressionados de poder vender guabiroba”, avalia o professor.

A agricultora Iolanda Fryder Americano, moradora da Comunidade do Divisor, em Palmital (PR), diz que foi nessa época que ela e o esposo, Dirço Gonçalves, se envolveram nas atividades com frutas nativas. “A gente começou com a guabiroba, que é uma fruta de época e tem bastante aqui. Depois a gente foi se envolvendo a partir de outras frutas também, com a uvaia e a cereja do mato”, relata Iolanda. 

De acordo com a agricultora, o trabalho com as frutas vai além da geração de renda direta, pois as ações estão associadas a outros benefícios, como a saúde, o resgate e a valorização de hábitos alimentares saudáveis e a conservação da natureza. “É um trabalho que a gente faz em contato com a natureza, e a gente tem como resultado um alimento saudável, sem agrotóxicos”, reflete Iolanda. 

No momento, ela e o marido estão empenhados em aumentar a quantidade e variedade de árvores nativas e crioulas na propriedade para ampliar a produção e recuperar uma área degradada que era destinada à pastagem e repouso de animais. “A gente quer colocar bastante árvore nativa e crioula misturadas, pra fazer um reflorestamento e um aproveitamento dessas frutas”, planeja Iolanda.

Resgate da cultura alimentar

Para as/os integrantes do Coletivo, um impacto significativo do trabalho que desenvolvem pode ser percebido quando as/os agricultoras/es participam dos eventos e vêem como seus produtos são valorizados e procurados. As pessoas que consomem os alimentos produzidos com as frutas nativas ficam surpresas e gratas pela oportunidade de voltarem a ter acesso a alimentos que há muitos anos não consumiam ou que não conheciam. Esse interesse das/os consumidoras/es tem sido mais um estímulo para as famílias agricultoras, que agora estão experimentando novas receitas e propondo diferentes frutas para incorporar na cadeia produtiva.

A agricultora Iolanda cita como exemplo as receitas que estão criando em parceria com estudantes dos cursos de Engenharia de Alimentos e de Agronomia que integram o Laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais da UFFS. “Agora estou fazendo o doce de banana com jerivá, que é a mistura da polpa de jerivá de um produtor com a banana que eu tenho. E estou fazendo também a geleia de banana com guabiroba. Já estamos na fase de aprimoramento”, revela Iolanda.

Agricultora Iolanda Fryder (de camiseta preta, no centro da foto) participa da atividade de distribuição de mudas de árvores nativas promovida pelo Laboratório Vivan, na UFFS. Imagem: Divulgação

Relação com a universidade

Por meio de projetos de pesquisa e extensão rural, professoras/es e estudantes do Laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais têm apoiado as associações e grupos de agricultoras/es em diferentes atividades, como no mapeamento das árvores nativas nas propriedades, na construção do regimento interno do Coletivo, na criação da marca dos produtos, na padronização das receitas e na definição das estratégias de comercialização.

Segundo o professor Julian, que também é coordenador do Laboratório, eles sempre procuram realizar as reuniões e atividades de formação tanto nas comunidades como nos espaços da universidade, pois a intenção era criar um ambiente no qual as/os agricultoras/es se sentissem à vontade para frequentar a universidade. “Isso é uma coisa muito legal, eles se sentem muito apropriados da universidade. A gente está falando de uma universidade nova, e quando terminou a construção dos blocos de laboratórios, a primeira atividade pública com a comunidade em geral foi com os agricultores das frutas nativas. Foi o primeiro uso de um laboratório da universidade fora das aulas dos alunos”, comemora.

Oficinas para aprimoramento de doces e geleias com frutas nativas realizadas pelas agricultoras camponesas do acampamento Vilmar Bordin, Quedas do Iguaçu (PR), em parceria com estudantes do laboratório Vivan/UFFS. Imagem: Divulgação (@sabores.agrofloresta)