‘Foi Apenas um Acidente’ revela Jafar Panahi em seu estado mais íntimo
Um retrato semi-biográfico em que o diretor revisita sua história para questionar poder, censura e o próprio ato de filmar
Por Hyader Epaminondas
Desde a Revolução Islâmica no final dos anos 70, marco que reconfigurou a vida política, social e cultural do Irã, o país vive sob estruturas que restringem liberdades e naturalizam a vigilância. A história do processo revolucionário e suas consequências é o pano de fundo inevitável de “Foi Apenas um Acidente”, e não apenas como contexto factual, mas como a espessura histórica que dá sentido à desconfiança, à perda de referências e ao modo como o trauma atravessa gerações.
No início do mês, Jafar Panahi foi condenado a um ano de prisão por “atividades de propaganda” contra a nação por conta da produção do filme, uma ironia cruel que apenas reforça como, para o diretor, criar é existir e existir é desafiar. Sua arte segue ferindo o orgulho do poder porque ilumina exatamente aquilo que ele tenta manter nas sombras, funcionando como um espelho incômodo que devolve ao regime uma imagem que ele não quer ver.
Panahi desenvolve uma narrativa que opera simultaneamente em vários registros: é um filme sobre vingança, mas também sobre a covardia que se infiltra no silêncio coletivo e sobre a integridade que insiste em sobreviver mesmo quando tudo ao redor conspira contra ela.
Ao articular esses vetores, o diretor cria uma espécie de dilema grego contemporâneo, em que o gesto de perdoar deixa de ser uma solução moral simples e passa a ser uma ferida aberta, sempre prestes a sucumbir. O perdão, aqui, não é a catarse que resolve o conflito, mas a pergunta que permanece: o que resta de nós quando escolher entre punir ou perdoar significa, de todo modo, continuar enfrentando a própria consciência?
A trama do filme é simples na superfície e complexa em sua anatomia emocional: um ex-prisioneiro acredita ter encontrado um homem que o torturou décadas antes. Como as vítimas eram vendadas durante as sessões de tortura, o reconhecimento facial é impossível, restam apenas a audição, memórias sensoriais e fragmentos que sobrevivem como ruídos.
É aí que a obra concentra sua inteligência estética: o som substitui o testemunho ocular, a perna protética e seu clique metálico viram índice, assinatura e acusação. A perna não é apenas um objeto, é a prova resistente do passado, uma linguagem tátil traduzida em som.
A venda, repetidamente mencionada e lembrada, funciona em duas frentes simbólicas. Literalmente, aponta para as práticas de tortura: o corpo privado da visão, a identidade esvaziada, a desumanização. Simbolicamente, traduz o apagamento da verdade social sob regimes autoritários, uma nação vendada que não pode ver ou que é forçada a ver apenas o que o poder autoriza.
A incapacidade de confirmar identidades cria um horror específico: o do reconhecimento incerto. Ser incapaz de saber quem feriu é viver sem a possibilidade de justiça, é conviver com uma dúvida que corrói.
Humor, sublimação e sobrevivência
A sonoplastia de Panahi é minuciosa e opera como tribunal interior, onde cada ruído tem o peso de uma evidência e cada pausa carrega a tensão de uma sentença iminente. O uso do som como prova sublinha algo mais profundo: a violência de Estado deixa rastros que não se apagam com a ausência do agressor. A audição, vulnerável às interpretações, se transforma em campo de disputa entre desejo de vingança e medo de erro.
Uma das escolhas mais interessantes do filme é o emprego de um alívio cômico claustrofóbico atípico, não como fuga, mas como mecanismo defensivo. Pequenos gestos cômicos atravessam cenas de alta tensão e não aliviam o horror, o transformam. Na busca por confirmar a identidade do torturador, o que se apresenta como investigação é, em outro nível, um ritual.
Cada tentativa funciona como treino para o ato final, e esse caráter performativo aponta para a dificuldade de transformar desejo de justiça em ação. O que parece ser uma busca pela verdade é também um processo de restauração de agência. Os sobreviventes ensaiam o ato para reunir coragem, e o próprio filme estrutura essa jornada com repetição rítmica, como se cada cena fosse uma volta de relógio que aproxima e, ao mesmo tempo, adia o instante decisivo.
Título e ironia política
A expressão do título sugere minimização, e nesse gesto reside uma crítica ao modo como violências institucionais são rotuladas, naturalizadas ou despolitizadas. Chamar de “acidente” aquilo que nasce de políticas sistemáticas é uma forma de apagar a responsabilidade dos agressores. O filme, ao contrário, insiste na intencionalidade do dano e na urgência de nomear os culpados.
“Foi Apenas um Acidente” atua como arquivo emocional, não apenas relata um caso, mas preserva a experiência de quem sobreviveu, algo que o próprio diretor viveu durante seu período na prisão em 2022. É denúncia e registro sensorial. Ao transformar ruído em evidência, Panahi propõe um método estético para lidar com o passado, não eliminar a dor, mas torná-la inteligível, compartilhável e politicamente potente.
Panahi denuncia como a violência, repetida até virar hábito, acaba absorvida pelo tecido social, que aprende a conviver com a ameaça permanente. Com o tempo, esse risco contínuo corrói a capacidade de indignação, fazendo com que episódios que antes causavam espanto sejam reduzidos a números, enquanto o horror se dilui na familiaridade do cotidiano.
É um trabalho sobre a memória que resiste, sobre o estatuto da prova num contexto onde as certezas foram arrancadas e sobre as estratégias que os sobreviventes inventam para continuar vivendo. Entre a perna protética que acusa, a venda que apaga e o riso que sustenta, Panahi constrói uma fábula moderna sobre coragem, dúvida e a necessidade de transformar ruídos em relatos.
Em tempos em que o autor da obra vive sob ameaça direta do Estado, o filme se afirma como exercício de resistência estética e documento implacável sobre as maneiras pelas quais uma sociedade tenta, muitas vezes em vão, chamar seus agressores pelo nome.



