Por Débora Sobreira e Laila Shams

Bares e ruas nunca se viram tão ligados ao cinema quanto agora, ao incluírem o último capítulo da jornada em Hollywood de Fernanda Torres em suas programações carnavalescas. Enquanto isso, em um país europeu sem metade da dimensão e população do latinoamericano, uma recém-inaugurada estátua de gato ocupa uma rua de Riga, capital da Letônia. 

Um ou outro desavisado pode não saber que se trata do protagonista de ‘Flow’, primeira obra do país a concorrer a um Oscar e a arrecadar mais de 20 milhões de dólares na bilheteria mundial.

Em meio a indicações oriundas – ou baseadas em – diferentes países nessa temporada, os longas de Walter Salles e Gints Zilbalodis vêm atuando como um chamariz de visibilidade para as salas de cinema locais. Enquanto ‘Ainda Estou Aqui’ já é a quinta maior bilheteria nacional e permanece no cinema três meses após seu lançamento (feito louvável na era do streaming como competição), ‘Flow’ foi o empurrão para que o governo letão anunciasse um aumento de investimento à indústria cinematográfica do país.

As duas películas se diferenciam na temática como água e óleo, mas apresentam semelhanças quanto à forma: o silêncio, nestas obras, falam mais alto que as palavras. A atuação, ao mesmo tempo contida e explosiva de Torres, que grita com o olhar, encontra-se com a necessidade de linguagem corporal e movimento para animais que não dispõem das tecnologias da fala. Se conectam como arte que não se curva às limitações monetárias e geográficas.


Essa foi a primeira indicação da Letônia para Melhor Filme Internacional desde a sua primeira inscrição em 1992. Ao todo, foram 16 inscrições e, até então, nenhuma indicação. 

Perto de países como França e Itália, que possuem mais de 30 indicações, a Letônia se encontra mais próxima ao Brasil, com 5 indicações desde 1960. ‘Ainda Estou Aqui’ também teve um efeito nacional de orgulho e celebração. O fato de que o Oscar será transmitido na Sapucaí em pleno Carnaval mostra o quão longe a história da família Paiva conseguiu chegar.

Expressões culturais acabam por muitas vezes serem subestimadas, mas atuam como um forte signo de pertencimento e alento para seu povo. O reconhecimento internacional de obras e artistas empodera e, mais do que isso, traz ao centro do debate a necessidade de serem também estimuladas dentro das linhas imaginárias do próprio país.

Ao cinema brasileiro é conferido, com uma certa frequência, o mérito de carregar um dos cinemas mais ricos do mundo, dotado de subversão, nuance e inventividade. Mas com o colonialismo também compondo as premiações, nos cegamos ao subjetivar nossas obras a valores estéticos estrangeiros, que definem em sua linguagem e signos o que é digno de ser ‘arte de verdade’. 

Nossa língua e símbolos são relegados a algo inferior vinculado à cultura da premiação, na qual a aprovação do outro se torna valor intrínseco do eu. Sendo assim, ainda faz sentido comemorar as indicações em premiações como o Oscar?

O Oscar é assistido mundialmente e a arte ainda é considerada bem social de valor inferior ou descartável em muitos lugares. No Brasil há uma dificuldade em se produzir filmes e conseguir financiamentos e até mesmo a liberação de políticas de incentivo à cultura estão atreladas a uma ideia conservadora de gasto público indevido. 

Quando um filme como ‘Ainda estou aqui’ – com uma história que representa muitas famílias brasileiras afetadas pela ditadura – rompe a barreira desse prêmio tão celebrado, sendo indicado duas vezes com as palavras “Melhor Filme” e levando consigo uma atriz do calibre de Fernanda Torres à indicação de Melhor Atriz, estamos provando que a arte não é gasto, é investimento. Até os que bravejam contra o suposto uso de financiamento com dinheiro público podem usufruir de um orgulho construído a partir da coletividade.  

Para Letônia, um país pequeno, a indicação de Flow torna-se um símbolo de resistência cultural diante dos seus grandes países vizinhos. Para o Brasil, é a memória de um povo, que em tempos de apologia à ditadura, grita através da arte que não se calará. 

São culturas distintas, mas que a comoção nacional pelos seus filmes fortalece a arte como instrumento político e social de mudanças. 

Que nossos filmes sejam mais valorizados pós-Oscar, saindo vitoriosos ou com uma bela história de luta por reconhecimento. Uma estatueta, por si só – ainda mais vindo de fora —, não é capaz de sustentar todo o peso necessário para impulsionar a lógica de criação e distribuição de filmes. Um voto de confiança e a articulação pelos meios necessários à construção de obras dignas de premiação, sim.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.