
Filha de preso político leva teatro às margens do Rio Negro na Virada Amazônica
Ana Rosa Tezza refaz memórias do exílio no Acre em travessia artística por comunidades ribeirinhas
Por Daniele Agapito
Em julho de 2025, uma artista e filha de exilados políticos cruzou as águas do Rio Negro com um projeto na bagagem: levar teatro, podcast, oficinas e memória às margens da floresta amazônica numa dinâmica que remonta sua própria infância.
O barco pilotado por Roberto Mendonça atracou devagar na comunidade do Tumbira. Roberto, que já foi madeireiro atuando na extração ilegal, tornou-se defensor da floresta ao trocar a motosserra pela gestão de uma pousada e pelo turismo de base comunitária. No convés, artistas de Manaus, Pernambuco, São Paulo, Acre e Curitiba da trupe Ave-Lola e da Cia Panorando. E no centro de tudo, Ana Rozza Tezza: diretora de teatro, produtora cultural e filha de dois militantes perseguidos pela ditadura militar brasileira, que se refugiaram no Acre. Em outro barco, caixas de som, figurinos caprichados, cenários, cortinas, instrumentos musicais, malas e mais malas.
A Virada Amazônica, que aconteceu entre os dias 4 e 13 de julho, teve sua abertura no Teatro Amazonas, em Manaus, e seguiu em direção às comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro com espetáculos teatrais, oficinas de escrita e dança, gravações de podcasts com lideranças locais e a produção de um documentário em tempo real. Muita gente acompanhou a movimentação. O que poucos sabem é que a semente dessa virada itinerante foi plantada ainda no jardim de infância de Ana Rosa.
Ana Rosa não era apenas a diretora artística e curadora da expedição. Era também o elo entre gerações separadas por utopias, golpes, prisões de Estado e pelo sonho comum de levar arte e cultura a lugares onde as turnês de dança, música e teatro normalmente não chegam.
A ideia nasceu dentro de casa. Literalmente. Laura Tezza, filha de Ana e acreana de nascença, cresceu ao lado da produtora e amiga de infância Dara van Doorn, ouvindo histórias sobre o passado de prisão e tortura de seu avô João Tezza, e sobre o teatro político feito na carroceria de um caminhão por sua avó, Marly Genari.
“Minha avó nunca foi citada em nenhuma memória porque usava nome falso durante a ditadura… Mas ela fazia teatro político. Tem até um documentário em que ela aparece. Acho que não é à toa que minha mãe gosta tanto da ideia de teatro itinerante.”
As peças se encaixam
Nos anos 70, João Batista Tezza Filho, pai de Ana, era um dos nomes mais vigiados pelos militares no Sul do país. Figura importante no movimento estudantil curitibano, acumulava registros no DOPS e citações em relatórios confidenciais. Foi preso. Trancado numa solitária. E depois disso, orientado pelo próprio partido, decidiu sair do Sul. Passou pelo interior do Paraná até se instalar no Acre, ao lado da esposa, Marly Genari, agora médica e militante com um extenso dossiê nas mãos da repressão e medo de abordagem.
Foi ali, no exílio forçado no Acre, região da Amazônia Legal, inicialmente habitada por povos indígenas e palco de conflitos entre Brasil, Bolívia e Peru pela exploração da borracha, que se tornou estado apenas em 1962, que Ana cresceu.
Com sotaque amazônida, gosto por teatro ambulante e um senso de dever herdado. “A artista que vive em mim nasceu ali”, diz Ana. “Fui para lá ainda muito pequenininha, e isso deixou uma marca profunda. Artisticamente, tem uma impressão muito forte, porque toda a minha relação com a arte na infância passava pela arte mais popular, a do circo. (…) A única forma de representação cênica que chegava em Rio Branco, no Acre, lá pela década de 70, eram os circos mambembes que cruzavam o Brasil inteiro até chegar naquela ponta do país.”
Criança criada em um lugar fora do eixo das turnês culturais, sem acesso a shows, peças ou eventos nacionais, ela vivia extasiada à espera da chegada do circo, a única manifestação artística que cruzava seu caminho. Essa realidade, infelizmente, ainda persiste. Grandes espetáculos seguem circulando exclusivamente pelos centros urbanos, muitas vezes restritos a uma elite. Não por acaso, hoje, como diretora da trupe Ave-Lola, já consolidada no Brasil e no mundo, ela escolhe levar arte e cultura justamente onde as grandes turnês raramente chegam.

Foi por isso que a primeira edição da Virada Amazônica teve um impacto tão profundo para os ribeirinhos. Para muitos moradores das comunidades do Tumbira, do Inglês e do Saracá, foi a primeira vez que tiveram contato com o teatro ou com a dança contemporânea. Para as crianças então, tudo era novo, e mágico.
Ao final das apresentações, não faltaram agradecimentos nem olhos marejados. Muitos apertavam as mãos dos realizadores para dizer que era a primeira vez que assistiam a um espetáculo, como definiam, “de primeira qualidade”. O encantamento que viveram talvez se assemelhe ao que Ana sentia, ainda menina, no Acre, com a chegada do circo.
“Quando o circo chegava na cidade, ele costumava ficar um mês, dois meses parado bem perto da minha casa. Eu saía correndo assim que terminava minhas tarefas, só pra ficar rondando por lá… vendo aqueles figurinos, aquelas famílias todas que trabalhavam juntas… os trailers, era um universo muito fascinante. À noite, meus pais sempre levavam a gente. Todo fim de semana. Ou deixavam que a gente fosse em turma, com amigos ou com a família. O universo do circo, com certeza, foi o que mais me formou. Foi o que mais me instigou. Pra mim, a primeira ideia de representação teatral veio ali, assistindo ao circo. Acho que é por isso que eu amo tanto essa ideia de vida em trupe. E por isso também que eu amo o teatro que consegue se comunicar com um público heterogêneo.”

Ao lado de sua filha Laura Tezza, da holandesa-brasileira Dara van Doorn e de sua sobrinha Maria Eugenia Tezza, diretora-executiva da Academia Amazônia Ensina, Ana colocou esse passado em movimento. O projeto também contou com curadoria de João Tezza, doutor pelo Centro de Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia (UFAM/UNB), com larga experiência em projetos de bioeconomia e saberes tradicionais.
A Virada percorreu rios, escolas e palcos improvisados. O teatro voltou para o caminhão, ou melhor, para o barco. E Ana, quase 50 anos depois da fuga dos pais, assinou a devolutiva poética de uma família que queria um Brasil menos desigual “meus pais acreditavam num Estado potente, forte, que atendesse as pessoas que mais precisam, que fizesse a distribuição de renda para que o país fosse mais equilibrado.

Agora, a luta para as próximas viradas é aliar cada vez mais sustentabilidade e arte. E, por mais cortante que seja o cenário, diante da possível aprovação da PL da Devastação, que amplia a dispensa de licenciamento ambiental e ameaça a vida dos ribeirinhos, da floresta em pé e do equilíbrio do planeta, segue vivo o projeto de um futuro mais justo.
Como diz Laura, resgatando a voz que a antecede:
“Minha avó dizia: a luta sempre valeu a pena.”