“Figurações reflexivas e o autorretrato”, com Fefa Lins
De Recife, conheça o trabalho de Fefa Lins, artista plástico, transmasculino não binário e o #ArtistaFoda da semana.
Por Amanda Olbel
O entrevistado da semana para nosso mapeamento é o artista plástico, transmasculino não binário, Fefa Lins. Nascido em Recife, 1991, tem como conteúdo em seus trabalhos questionar a abordagem dominante e hegemônica dos corpos no meio da arte. Fazendo paralelos com as pinturas clássicas europeias, utiliza de elementos destoantes das figuras para compor os quadros, de maneira a quase satirizar as tais formas de representação.
Formado em Arquitetura no ano de 2014, percebeu, após adentrar no meio acadêmico, que seu prazer vinha do ato do desenho e do fazer da pintura. Sempre dentro de um momento prazeroso de introspecção, se percebia envolto de gosto pela materialidade, pelo ofício, pela técnica, pela “meditação da coisa”. Contudo, Fefa nos conta que não identificava na arte uma opção de carreira, como acontece nas trajetórias de muitos artistas, mesmo praticando o traço desde cedo.
Isso um tanto por conta de sua criação muito tradicional-católica, na qual o entendimento cristão da sacralidade do corpo, o torna algo que não deve ser abordado fora de um contexto de representação de divindades, em que a nudez é permitida por serem corpos que carregam pureza, diferente do ser humano pecador. Portanto, para ele, a nudez dentro de casa sempre foi muito polêmica, e a sexualidade então, era algo a não ser discutido. O que durante muito tempo, na realidade, foi ponto de rebuliço dentro do meio da arte, como reflexo social de compreensão estética. Por mais que hoje, na contemporaneidade da arte, exista maior abertura para usarmos a temática da carnação em trabalhos artísticos, socialmente a exposição de corpos permanece sendo um tabu, o que faz com que ainda haja uma rejeição muito grande de um público leigo.
Caretices à parte, Fefa diz ter sido uma investigação sua de algo que não podia antes acessar, pela moral na qual estava mergulhado mas que com o tempo, muito naturalmente, a questão da sexualidade lhe surgiu como assunto, por conta de vivências particulares como uma mulher sapatão até pouco tempo atrás. Então havia nele um desejo de entrar nessa elaboração de se desvendar e se entender a partir do próprio reflexo, sendo atravessado por muitos processos de disforia e frustrações até se entender como uma figura masculina, passando agora pela transição de gênero. Assim como aponta o psicanalista Jacques Lacan, de que a criança quando se reconhece no espelho passa por um processo de formação do ego (e por conseguinte se distancia da noção simbiótica com a figura materna primordial), ela também inicia a formação de sua identidade como sujeito. Claro que influenciado por muitas convenções, mas o artista da mesma maneira, se percebe mais uma vez numa tomada de consciência de si mesmo a partir da análise e decomposição da própria imagem.
Sendo assim, suas pinturas são de caráter figurativo-realista, ou seja, que trabalham com representação fidedigna do objeto de estudo, que no seu caso é o próprio corpo, em grande maioria. Diz que usar a si mesmo como referência gestual e expressiva em seu processo artístico sempre fez muito sentido, – para quando queria uma referência de posição de corpo, luz e expressão, podendo usar seu corpo como quisesse, a qualquer hora, – método que lhe acompanha mesmo antes de se entender como profissional, e pensar em seu trabalho como pesquisa conceitual.
Dessa forma, o artista começou a entender a pintura como ferramenta de diálogo, servindo também como campo de reflexão sobre questões socioculturais filosóficas.
“Começar me pintando fazia muito mais sentido do que pintar outros corpos, pela possibilidade de acabar cometendo os mesmos equívocos, desse olhar hegemônico do homem cis, hétero, branco, europeu, católico cristão sobre os outros corpos. Como por exemplo das mulheres brancas e seus contextos de feminilidade, e dos povos indígenas e negros, que foram retratados como sujeito passivo, utilizado com objeto para esse olhar masculino, do qual estou criticando e debatendo sobre”
Adiciona ainda à sua fala:
“Portanto, eu uso meu corpo para me representar, e explorar isso até onde posso, sem querer entrar num espaço onde eu não tenha como estar fazendo um discurso subjetivo de outros corpos.
“E não que eu não faça isso, mas são sempre em contextos que tenham relação comigo, destrinchando os significados disso. Não é sobre trazer uma subjetividade sobre outro corpo, que não entendo e não carrego a vivência, e sim de um entendimento sobre o meu, com certa propriedade”.
O artista enfatiza que a concepção de corpo abarca várias vertentes e possibilidades, mas a que ele tem trazido para sua pesquisa é a de um sujeito dentro desse sistema marcadamente opressor, sendo “sexo-gênero” o aspecto no qual ele se debruça. Principalmente nas relações sobre corpos lésbicos e trans, a sexualidade é algo de muito interesse em sua pesquisa, juntamente do autorretrato, que possibilitam essa narrativa pessoal e o que ela diz para além desse corpo dissidente e rebelde. “O que é que isso fala também? ”
“Depois que comecei, foi uma grande coisa entrar nesse espaço da arte, até por não ter feito uma faculdade de Artes, então essa coisa da pesquisa era muito nova, muito ‘castelo’, uma grande insegurança…agora me sinto melhor, mas nos últimos anos, tive que passar por esse processo de busca de tentar descobrir o que era o meu trabalho e tentar conceituar e com o que ele dialoga, e hoje eu tenho encontrado isso”.
Fefa Lins inaugurou esse mês sua primeira exposição individual, intitulada de “Tecnologia de gênero”, na qual se baseou pelos escritos da autora italiana Teresa de Lauretis, que falam sobre como o gênero é uma construção e o que determina ele não é apenas a diferença sexual, mas na verdade um conjunto de mecanismos sistemáticos que produzem o homem e a mulher, trazendo a síntese de apreensão desses conceitos para dentro de suas pinturas.
“Em uma das minhas primeiras exposições havia quatro quadros, e em um deles eu estava de calcinha e sutiã abrindo o estômago, um trabalho que falava um tanto sobre minhas ansiedades, e não tinha muito essa coisa do erótico, mas já tinha isso da nudez, um pouco como um ponta pé para a pesquisa que tenho desenvolvido hoje. Diferente da época em que eu comecei, mesmo já tendo uma técnica de pintura, com pincelada, e tratando um tanto a coisa da nudez e da intimidade, eu não tocava nos pontos que abranjo hoje. Isso no sentido consciente, tanto teórico quanto conceitual de discurso: intencionando mais o que eu quero fazer”.
Ele também comenta sobre a pintura ser utilizada como ferramenta de controle, na época da colonização, através da catequese dos povos nativos. Assim como o teatro, basicamente as artes antigas que chamamos de “arte clássica ocidental”, na História da Arte. E correlaciona isso à sua produção enquanto forma e discurso, enquanto aborda a representação do nu, dentro do universo erótico ou não, juntamente de elementos surreais, como tubarões sobrevoando um céu embrazado. Ou a imagem em alusão a vênus, vestindo um capacete de motoqueiro com detalhes de labaredas, e nos conta que até faz utilização de memes como referência em alguns projetos, evidenciando ainda mais esse contraste de representação clássico-contemporâneo.
“É difícil olhar para o que eu faço e não fazer a essa comparação, e é isso também o ‘castelo’. Entendo a pintura clássica europeia como essa fermenta de massa, de produção de sujeito dentro das normas. Uma ferramenta também de colonização, com imposição de uma cultura dominante hegemônica, e também de ostentação. De ostentar no lado dos ricos. Então para mim ao mesmo tempo é o ‘castelo’ porque sou esse corpo dissidente do sistema de sexo e gênero: sou uma pessoa trans, não binária, e também fui um sapatão minha vida inteira, e eu não queria fazer a mesma coisa”.
Seus quadros são intensos, ousados e complexos. Um equilíbrio perfeito para trazer narrativas à tona, chamando atenção do espectador. São envoltos de uma carga afetiva enorme, o que explica muitas pessoas se identificarem nas imagens, também entrando na “sacanagem” de satirizar situações, e enaltecer os corpos, com suas singularidades em suas manifestações.
Fefa Lins há dois anos é representado pela galera Amparo 60, em Recife, já tendo participado da Sp-Arte, feira de arte de São Paulo, entre outras exposições realizadas em Pernambuco.
Atualmente tem sua exposição “Tecnologia de Gênero” sendo exibida, com 21 obras constituindo a mostra. Ela faz parte do projeto Miranda, em parceria com a SpotArt, e está aberta à visitação até dia 28/05.
O artista compartilha seus trabalhos e seus processos em suas redes sociais, de perfil @fefa.lins. Para ficar por dentro do nosso mapeamento e saber quem são os próximos #ArtistasFOdA’s, siga nossa página do instagram @planetafoda, frente de mobilização com conteúdos LGBTQIAP+, Fora do Armário.