Os diretores Fernando Meirelles e César Charlone, indicados ao Oscar por “Cidade de Deus”, farão uma minissérie sobre a fuga em massa da qual o ex-guerrilheiro e ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica participou há mais de cinco décadas, disseram fontes da produção na última segunda-feira (10). Segundo a revista americana Variety, a série “El Abuso”, baseada no livro “La fuga de Punta Carretas”, de Eleuterio Fernández Huidobro, será produzida pelas produtoras Federation e OjoFilms.

A minissérie de oito episódios também abordará o sequestro e assassinato do americano Dan Mitrione em 1970 pela guerrilha tupamara. Mitrione, suposto agente da Agência Central de Inteligência americana (CIA), era na época o principal assessor de segurança pública da Embaixada dos Estados Unidos no Uruguai. Antes, ele havia estado no Brasil.

“Queremos dar uma visão internacional porque, embora seja um episódio do Uruguai, está imerso no conflito global da Guerra Fria”, disse Charlone à AFP. “Para mim, o túnel é um símbolo. No final, não havia apenas a liberdade para eles, mas o sonho de uma sociedade mais justa para todos”, continuou. “‘El Abuso’ tem sido um projeto apaixonante e o resultado de anos de pesquisa rigorosa, enriquecido com depoimentos em primeira mão dos protagonistas, incluindo Pepe Mujica”, acrescentou Mariana Santangelo, da OjoFilms, citada pela Variety.

“Estamos nas etapas iniciais do projeto. Nossa intenção é filmar no Uruguai, com locações também no Brasil”, contou Charlone. Além disso, ele mencionou que se pensou em Enzo Vogrincic, protagonista de “A Sociedade da Neve” (2023), indicado em duas categorias ao Oscar, para interpretar Fernández Huidobro, mas ainda não foi definido quem interpretará Mujica.

José “Pepe” Mujica, guerrilhero

Um túnel secreto e a fuga de 106 guerrilheiros: a operação “El Abuso”

Mais de cem membros da guerrilha uruguaia Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros (MLN-T) fugiram em 1971 da prisão de Punta Carretas, hoje transformada em um shopping center no bairro nobre de Montevidéu, em uma operação que ficou conhecida como “El Abuso”. Entre eles estavam Mujica, hoje com 89 anos e que governou o Uruguai de 2010 a 2015, e Fernández Huidobro, ex-ministro da Defesa, falecido em 2016 aos 74 anos.

A fuga, que envolveu a construção de um túnel até uma casa próxima, foi um marco na história do grupo, que, influenciado pela revolução cubana, pegou em armas contra o Estado em meados dos anos 1960, mas foi derrotado em 1972, antes do início da última ditadura uruguaia (1973-1985).

Através de diferentes operações, que incluíram assaltos a bancos, sequestros e execuções, esse movimento foi desenvolvendo, na década de 60, uma guerrilha urbana que o colocou em confronto com o governo do então presidente Jorge Pacheco Areco, do Partido Colorado (PC – centro-direita).

“No contexto da repressão de 1968, da violência política e da crise, eles passaram a realizar mais ações de propaganda armada, como sequestros de líderes políticos e empresários, e o MLN cresceu até se consolidar como uma guerrilha urbana”, explicou à agência EFE o professor de história Gabriel Quirici.

A fuga ocorreu em um ano crucial, pois eram as eleições presidenciais. Pacheco Areco queria a reeleição, algo que não estava previsto na Constituição uruguaia, e precisava de uma maioria especial que não conseguiu. Enquanto isso, do outro lado, estava o líder do Partido Nacional (PN, centro-direita), Wilson Ferreira, e também eram as primeiras eleições da Frente Ampla (FA – esquerda).

Os tupamaros haviam prometido a Ferreira e à FA que não realizariam atentados de grande magnitude para não interferir no processo eleitoral. No entanto, caso os colorados mantivessem o poder (o que acabou ocorrendo com a vitória de José María Bordaberry, que dois anos depois daria um golpe de Estado), o MLN-T planejava retomar a luta armada.

Nesse contexto, e com todos os líderes presos na cadeia de Punta Carretas, começou a ser elaborado um plano de fuga, com o objetivo de transmitir uma “mensagem de luta”, como resumiu Jorge “Tambero” Zabalza. “O importante era a decisão que todos nós tínhamos, a consciência de que tínhamos que sair de alguma forma porque era necessário continuar a luta. Essa foi a mensagem da fuga. Vivíamos na prisão pensando no que estava acontecendo lá fora, nos companheiros que estavam lutando”, afirmou. “Considerávamos que era um direito lutar pela liberdade”, concluiu.

Ele, junto com Servando “Pocho” Arbelo, Jorge “Inge” Manera e Julio “Viejo” Marenales, foram os responsáveis por liderar a Comissão Aspirina para avaliar qual seria a melhor forma de escapar do presídio. De acordo com o livro “Comisión Aspirina: historias de hombres libres en cautiverio”, do jornalista uruguaio Samuel Blixen, houve diferentes planos de fuga. Entre as ideias mais insólitas, foi considerada a possibilidade de detonar um caminhão carregado de TNT contra um dos muros da prisão para abrir uma via de escape, bem como escalar as paredes do presídio e colocar colchões na rua para amortecer a queda dos fugitivos.

Finalmente, a partir dos cálculos do “Inge”, foi construído um túnel com barras transformadas em brocas, que atravessou três andares da prisão e cruzou uma rua para desembocar em uma casa particular. Durante a escavação, a falta de oxigênio foi uma ameaça constante para os tupamaros, mas um golpe de sorte permitiu que continuassem: seu túnel cruzou-se com o que havia sido utilizado por um grupo de anarquistas décadas antes, o que lhes proporcionou uma brisa de ar vital para completar o trabalho.

Dessa forma, em 6 de setembro de 1971, eles saíram da prisão e entraram na casa de uma mulher. Depois de acalmar a dona do lugar com conversas e chá que o próprio Zabalza preparou ao sair do túnel, começou uma nova etapa para o MLN-T. No entanto, um ano depois de retomar a luta, eles seriam derrotados pelas Forças Armadas e presos pouco antes do início da ditadura cívico-militar (1973-1985).

A fuga de Punta Carretas não foi a única tentativa de evasão do movimento em 1971. Meses antes, 38 mulheres ligadas ao grupo haviam escapado de outra prisão, dando um primeiro golpe contra o sistema penitenciário.