por Walace Ferreira

Belém se transforma em outubro. As ruas, os olhares e os sons se misturam entre o sagrado e o profano, compondo uma das mais intensas manifestações culturais e religiosas do Brasil. De um lado, o Círio de Nazaré, que arrasta milhões de fiéis em romaria à Virgem de Nazaré, símbolo da fé e da devoção do povo paraense. Do outro, a Festa da Chiquita, nascida como ato de resistência LGBTQIA+ e hoje reconhecida como patrimônio cultural imaterial do Pará, reafirma o direito de existir, celebrar e amar.

A coexistência desses dois eventos — separados por símbolos, mas unidos por significados — revela a alma plural de Belém. Enquanto o Círio consagra o sagrado, a Chiquita celebra a liberdade, e ambos compartilham o mesmo território, o mesmo tempo e o mesmo povo. Para Eloi Iglesias, fundador e idealizador da Festa da Chiquita, essa convivência não é uma coincidência, mas um gesto de fé e permanência. “A Festa da Chiquita é o espaço onde a comunidade LGBTQIA+ expressa sua fé e reivindica acesso a direitos fundamentais, como casa, educação, saúde e amor. É a garantia de um território que também nos pertence”, afirma.

A relação entre o Círio e a Chiquita vai além da proximidade no calendário. Para Eloi, ambos têm a fé como ponto de encontro. “O Círio representa a fé, e a Chiquita busca garantir essa mesma fé e o acesso a ela. Fé não tem a ver com religião — embora algumas religiões se apropriem dela. A proximidade entre as duas celebrações está na fé e no direito de vivê-la”, explica.

A festa, que ocorre na noite da Trasladação, é marcada pela pluralidade e pela convivência entre todas as crenças. Eloi enfatiza que o evento é pensado como um espaço do Estado, aberto e inclusivo. “Trabalhamos com o conceito de fé, não de religião. A fé é o único instrumento de apaziguamento em tempos difíceis. Ela busca a paz — do mundo e do ser humano.”

O tema deste ano, “Chiquita para Sempre”, simboliza essa permanência. É mais que um título: é um manifesto pela continuidade de um território conquistado com luta e amor. “É a reafirmação de um espaço, de um lugar de fala e da própria celebração da Amazônia”, ressalta Iglesias. Para ele, a mensagem que a Chiquita deixa à Igreja e aos fiéis do Círio é de respeito e coexistência. “Queremos garantir o espaço e a fé, dissociando-a da religião. A religião, às vezes, se vincula a ideologias; a fé, não. A fé está ligada ao amor — ao amor próprio e ao amor ao próximo. A Festa da Chiquita, embora pagã e não profana, é um espaço de amor e agregação, independentemente das crenças.”

Entre a corda do Círio e o brilho da Chiquita, o que se vê é um mesmo sentimento pulsando: a fé que move o povo paraense — seja ajoelhado em prece ou dançando na Praça da República. Em Belém, a fé e a liberdade caminham lado a lado.