Gilberto Gil. Foto: Marcus Hermes

A programação musical do verão berlinense é sempre um momento ansiosamente aguardado. Além de Phil Collins, Neil Young, ZZ Top, o verão 2019 traz à capital, de uma cajadada só, três medalhões da Música Popular Brasileira: Caetano, Milton e Gil. Apesar da feliz coincidência resultante de aspectos mundanos desses artistas estarem, paralelamente, em turnê pelo Velho Continente, há uma vertente altamente política que envolve as apresentações.

A extinção do Ministério da Cultura foi uma das primeiras medidas do atual governo. Mesmo depois de 6 meses, percebe-se ainda uma grande consternação sobre o desenvolvimento político no Brasil, país que até poucos anos atrás era tido como aberto as culturas, liberal nos costumes e feliz.

Apesar de Caetano Veloso não ter se posicionado em seu show em 25/06, os gritos de “Lula Livre” e a frase de Moreno Veloso “O presidente Lula precisa ser solto para acabar esse sofrimento”, espelhou a ânsia dos presentes. Em maio passado, no Vivo Rio, Milton “Bituca” Nascimento teve a surpresa de Caetano Veloso e juntos, super na improvisação, cantaram “Paula e Bebeto”, mas não antes de Mílton exibir uma camisa do colégio D. Pedro II e ratificar a necessidade de cultura e educação.

O melhor começo

A Casa das Culturas do Mundo – inaugurada em 1957 no contexto da Exposição Internacional da Construção (Interbau) e construída pelo americano Hugh Stubbins – é uma instituição de visibilidade mundial e centro para realização congressos, palestras, filmes, música e eventos que discutem os desafios da contemporaneidade.

Casa das Culturas do Mundo/Terraço. Foto: Sabine Wenzel

Além de estar geograficamente na espinha dorsal política da República da Berlim, a “Casa” é subvencionada pelo governo federal. Por isso, os ingressos são bem acessíveis à inúmeras camadas da população. O custo para a noite de 5/7 com os shows da brasileira Luedji Luna e Milton Nascimento é de 24,00 euros (103,00 reais) e reduzidos, 20,00.

O Festival “Wassermusik” (Música dos Mares, em tradução livre) é um dos melhores festivais da Alemanha e um esperado highlight do verão berlinense.

A edição 2019 (05.-27.07.) sob o lema “Black Atlantic Revisited” foi inspirada no livro do historiador inglês Paul Gilroy “O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência”.

A qualidade e relevância musical, assim como a contextualidade com o que acontece em outras parte do mundo, são algumas das pilastras em foco da curadoria que desde 2006 leva a assinatura do músico, jornalista e crítico de música, Detlef Diedrichsen.

Detlef Diederichsen, curador do festival “Wassermusik”. Foto: Fátima Lacerda

Num dia de calor do “infernal” do verão berlinense, o curador do centro conversou com a Midia Ninja:

Eu já entrevistei jornalistas que conseguem lembrar o dia exato em que, pela primeira vez, ouviram um compositor da música brasileira e o que isso causou neles. O senhor consegue lembrar?

DD: Mesmo ainda quando eu não conhecia nada sobre a música brasileira, eu sempre tinha interesse nas sonoridades que me levaram até ela. Por exemplo, no disco do Santana, “Caravanserai” (1972) tinha uma canção do Jobim (Stone Flower). Eu adorei essa música! “Quem é esse Antooooonio Carlos Jobim?”, eu indagava. Também através de Flora Purim, na formação com Chick Corea, eu percebia uma preferência (por uma sonoridade). Bem depois, quando eu atuava como crítico de música para uma revista, alguém colocou na minha mesa uma pilha de discos selecionados e, nessa pilha, havia um disco do Gil. Era uma edição alemã e ali nada tinha que remetesse ao Brasil. A língua eu identifiquei como sendo a portuguesa. Eu achei super bacana que no disco (apesar de ser uma edição alemã) os dados eram todos português. Nenhuma palavra em inglês.

Entre cientistas, analistas e intelectuais existe uma grande discordância sobre se a música é, realmente, uma linguagem universal. Como foi chegar na música brasileira sem falar português. O quão decisivo foi isto?

Tanto faz! Se eu acho algo musicalmente interessante, é interessante! Quando eu era criança eu ouvia os Beatles e não entendia nada. É preciso um bom tempo até que o teu inglês baste para você entender o texto das músicas nessa língua.

Estamos aqui num olímpo cultural com visibilidade para todo o mundo e em terreno que faz parte da espinha dorsal da política de Berlim como capital da República. É possível se livrar totalmente desse “peso” na hora de alinhavar a programação?

Não sou absolutamente livre de expectativas. Elas são projetadas em nós e nossa programação, especialmente quando temos temas de cunho político. Esse lema “Black Atlantic” possui muitas facetas, é contextual com o tema do racismo, com a opressão do colonialismo; todos esses grandes “campos minados”, nos quais podemos tomar decisões erradas.

Erradas de que forma?

Convidar artistas errados, que se pensa, a priori, integrar bem a programação e não perceber que eles se posicionaram de forma errônea no discurso político. Outra preocupação é se a escolha faz jus ao lema da edição. No caso do “Black Atlantic”, já tivemos uma edição sob esse lema. O questionamento (para 2019) foi, no que podemos acrescentar (na versão Revisited).

Dois dos grandes dinossauros da MPB estarão presentes aqui neste verão. O senhor espera manifestação política durante os dois shows?

Imagino que sim. Há dois anos atrás, eu assisti um show no Gil na Filarmônica de Hamburgo. Lá tinha uma clima totalmente atípico para um show de um artista brasileiro. Haviam muitas faixas exibidas no público. Isso foi bem antes de Bolsonaro. Ouve gritos de “Fora Temer” do público. Gil, entretanto, não se posicionou claramente, mas o fez de maneira poética. Eu imagino que as pessoas que veem assistir o show de Gil tenham um posicionamento específico em relação ao Bolsonaro e como eles veem a atual situação do Brasil. Conta com uma certa tensão no âmbito político da parte de brasileiros no público.

Como se deu a Mélange dos artistas que estarão em Berlim?

A constelação é derivada de um feliz acaso de Milton e Gil estarem em turnê neste verão e terem agendas disponíveis. Milton foi o primeiro que fixamos na programação. Eu gostaria de ter conseguido ter um sambista. Tivemos proposta de Martinho da Vila, mas a turnê não aconteceu.

Eu gostaria de ter esse Trio: Mílton, Gil, Martinho como simbologia da “Face Negra da MPB”, já que a maioria dos representantes da música brasileira que marcam presença por aqui, são brancos, mas todos sabemos que o Brasil é uma nação arco-íris.

Dizem as fontes ligadas à casa que Gil, faz questão de tocar naquele lugar, onde já fez dois show históricos em 2006, ainda como Ministro da Cultura, durante da Copa do Mundo de Futebol. Um no interior do prédio (com ingressos esgotados em uma hora) e outro do lado de fora, quando foram tomados por uma massa humana os arredores do prédio e do jardim.

Minha sede de Milton

Milton Nascimento Foto: João Couto

Assistir o “Bituca” das Gerais no terraço da Casa de Culturas do Mundo será uma experiência eletrizante, para dizer o mínimo. Além da vista fenomenal da Skyline berlinense à beira do Rio Spree, que atravessa a cidade, a raridade da presença do mineiro aqui na capital são alguns dos itens que farão da sexta-feira, dia 05 de julho, um dia memorável. Milton vem lutando com a saúde debilitada, mas ainda continua fiel à frase que ele mesmo eternizou: “Todo artista tem que ir aonde o povo está”. Gil também está.

E dessa vez, assim quis o Deus do acaso, será mais do que “somente” afagar a alma saudosa de quem vive na diáspora. Será a realização do desejo expresso por Tavito na canção “Rua Ramalhete”. “Será que algum dia, eles vem ai, cantar as canções que a gente quer ouvir?!”. Mílton traz para Berlim o repertório do “Clube da Esquina”, movimento que nasceu numa esquina das ruas Divinópolis com a Paraisópolis, em Santa Tereza na capital mineira. Em 1972, o Clube de Esquina 1 e 1978, o 2.

A safra de cantores mineiros reunia o melhor das Gerais: Os irmãos Borges (Marilton, Marcio e Lô), Wagner Tiso, Beto Guedes, Flávio Venturini, Toninho Horta, Tavito. Entre os letristas estavam Fernando Brandt, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes.

A ideia de retomar a leitura musical de uma das mais importantes fases da carreira de Milton, é de seu filho, Augusto.

Elis costumava dizer que Milton cantava com a “Voz de Deus”. O timbre de sua voz lembra mais é um trovão que ecoa pelo mundo e incendeia paixões, visita saudades de uma esquina quando o Brasil era um outro país.

Em 2009, (para desespero das equipes de apoio) num show de 3 horas na última noite do Festival de Jazz de Montreux, o multitalentoso e pianista George Duke fez uma coletânea de músicas que influenciaram a sua carreira. No repertório uma versão XXL de “Cravo e Canela”, do CD “Brazilian Love Affair”.

Em 2014, por uma bela coincidência de estar em solos cariocas, eu assisti o esboço do Clube da Esquina no Olimpo da boemia carioca, na Fundição Progresso. No show, Mílton tinha no palco Lô Borges e seu amigo de unha e carne, Criolo.

Anos depois, tê-lo em Berlim e quase no quintal da minha casa é um regojizo sem tamanho. O palco no terraço da Casa das Culturas já está pronto para que o “Bituca”, na reta final de turnê pela Europa, possa dar o pontapé inicial no festival de música campeão em diversividade, coerente e com longa tradição histórica e cultural de Berlim.

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