FABIANA BORARI- ENTRE O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E A MEDICINA ANCESTRAL

 Fabiana Borari, pajé e agente de saúde do DSEI Guatoc, nativa de Alter do Chão,  oeste do Pará.

Viver no trânsito entre a tradição da pajelança e a prática de agente de saúde indígena. Essa é a experiência real de Fabiana Borari, que dedica diariamente sua rotina para possibilitar acesso à saúde aos seus parentes de 13 etnias do Baixo Rio Tapajós, no estado do Pará. Há anos, a Borari se divide entre suas obrigações laborais, do escritório e do campo, e espirituais – das medicinas da floresta e tradição geracional. A sua pajelança é praticada apenas em seu núcleo familiar, mas a dedicação à saúde indígena faz parte da sua existência de forma integral.

Por portar o conhecimento tradicional das ervas medicinais desde nascença e também por conhecer de dentro o funcionamento da Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, Fabiana entende o conceito de saúde de forma mais ampla do que a mera aplicação de uma atenção externa às aldeias. “Saúde indígena pra mim é usar o nosso conhecimento, a nossa sabedoria tradicional, usar os recursos da natureza em nosso benefício. São esses conhecimentos que se passam de geração para geração: pai pra filho, de avô pra neto. Isso pra mim é saúde indígena”, explica.

O uso do conhecimento tradicional para garantir a saúde integra a Política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas há 22 anos no Brasil. Segundo a política implementada pelo Ministério da Saúde, a adoção de um modelo complementar e diferenciado é voltada para “proteção, promoção e recuperação da saúde” e deve garantir aos indígenas o exercício de sua cidadania nesse campo.

Para isso, assegurar o direito à saúde às populações tradicionais se traduz em considerar as especificidades étnicas e culturais e os direitos territoriais dos povos indígenas. Mas será que os conhecimentos tradicionais são considerados na prática?

“Não podemos desvalorizar o conhecimento científico daquele profissional que passou seis anos numa universidade, mas também esse profissional, que estudou a parte científica, não desvalorizar o conhecimento tradicional daquele, vem ali desde berço, já nasceu com aquilo, já nasceu com esses conhecimentos”, enfatiza Fabiana.

Saúde indígena em tempos de Covid-19

A saúde indígena, enquanto política de Estado, funciona por meio de um Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), coordenado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena. Articulado com o SUS, descentralizado e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, o SasiSUS é organizado atualmente em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), distribuídos em todo o território nacional.

Os DSEIs são responsáveis por prestar atenção primária em saúde aos povos que moram nas Terras Indígenas (TIs) que se localizam dentro daquele território. Quando se faz necessário outro tipo de atendimento, como cirurgias, exames ou outro procedimento, o SasiSUS precisa se articular com o SUS regional para garantir o atendimento dos indígenas em todas as suas necessidades. Por isso, apesar da autonomia, o sistema de atendimento aos indígenas está ligado diretamente com a demanda ao SUS convencional, principalmente em um cenários de média e alta complexidade.

Em tempos de crise pandêmica e com a necessidade de fortalecer o investimento nos mecanismos de saúde, os indígenas estão entre os mais afetados, uma vez que os cortes na verba desse setor um governo declaradamente anti-indígena impactaram a gestão da crise nos territórios tradicionais.

Segundo o Sistema de Informações Orçamentárias Gerenciais Avançadas (SIGA Brasil), o valor orçamentário autorizado para a saúde indígena no ano de 2020 foi de R$ 1,38 bilhão, montante mais baixo dos últimos oito anos. Além disso, outro recurso destinado à garantia do acesso à atenção indígena foi reduzido em R$ 46,8 milhões em 2020. Trata-se da verba destinada para “Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção de Doenças e Agravos”.

Com esses cortes e a maior crise pandêmica do século em curso, as deficiências de cobertura de atenção médica para os territórios indígenas se alargaram, causando um desmonte à “política diferenciada de saúde indígena, fruto de uma luta histórica”, como mostrado na nota técnica “Execução Orçamentária da Saúde Indígena diante da pandemia do novo coronavírus”, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC).

Em meio à desassistência estrutural, o que restou foi o próprio movimento indígena arcar com a articulação de insumos a fim de garantir o acesso ao cuidado para as aldeias, em tempos de Covid-19. Além disso, o empenho dos agentes indígenas em campo foi essencial para assegurar que os pequenos recursos  que chegavam fossem otimizados.

“Por ser uma equipe bem pouca para quase dez mil indígenas no Baixo Tapajós, qualquer coisa que chegava a gente pensava ‘já é a Covid’, foi que a gente chegou a entender (por conta própria), já que não tem teste pra todo mundo e é difícil fazer exame pra saber se tá de covid ou não”. Foi nessa relação de desassistência que os laços com a pajelança foram fortalecidos ainda mais. “Aí começamos a fortalecer mais esse nosso elo quanto à saúde indígena, com nossos pajés, com o nosso conhecimento tradicional”, explica Fabiana

O atendimento à saúde diferenciada aos povos indígenas do Baixo Tapajós, incluindo aquelas que ocupam tradicionalmente territórios ainda não demarcados, bem como os indígenas que estejam em contexto urbano, é realizado por meio da atenção básica de poucos postos e um hospital Fluvial, o barco Abaré, gerido pela Universidade Federal do Oeste do Pará.

As equipes de saúde dos distritos deveriam ser compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores, engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários. Contudo, atualmente, o DSEI Guamá Tocantins só contou com 10 profissionais para atravessar os momentos mais críticos da pandemia.

Por outro lado, os pajés se mostraram essenciais no processo de garantia de cuidados aos contaminados pelo vírus. “Hoje a saúde indígena tem contribuído bastante porque os nossos pajés, eles dominam ali a experiência dentro da aldeia que já, desde sempre, os recursos naturais através da medicina, os conhecimentos usando as plantas medicinais”, enfatiza a Fabiana Borari.

Agora, o maior desafio é o processo de imunização. Apesar dos indígenas estarem dentro do grupo prioritário para vacinação, os discursos “antivacina” incentivados pelo atual governo reverberam nas aldeias e, em alguns casos, causam rejeição ao imunizante. “Essa rejeição, ela se tornou devido vários comentários que houve da vacina, distribuídos por WhatsApp. Muitos diziam que a vacina era pra matar os índios, outros diziam que as pessoas iam virar jacaré, até mesmo o meu pai disse ‘Agora vou virar jacaré, porque eu já tomei a vacina’”, conta Fabiana.

As equipes de saúde dos distritos deveriam ser compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores, engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários. Contudo, atualmente, o DSEI Guamá Tocantins só contou com 10 profissionais para atravessar os momentos mais críticos da pandemia.

DE MÃE PRA FILHO: O Menino Sacaca

O pajé, entre os povos indígenas, é um grande mestre possuidor das técnicas ancestrais e nativas da cura, nos campos emocional, espiritual e corporal. Em distintas e complexas categorias de cura e espiritualidade que um corpo não-indígena não é capaz de definir, a presença do pajé é uma força política que contribui sobremaneira para as comunidades indígenas passarem por esse processo de crise pandêmica.

Alejandro Borari tem 12 anos e é filho da pajé e agente de saúde indígena Fabiana Borari. Como a mãe, ele nasceu sacaca, nome que os indígenas do Baixo Tapajós dão aos que nascem com o dom de cura. Para ela, que pratica sua pajelança somente para os seus familiares, o preconceito com rituais  ainda é presente na zona urbana de Alter do Chão, onde sua família vive.

“Não só o preconceito, é o medo também porque eles acabam tratando diferente. Eu vejo isso pelo que eu vivencio com o meu filho. Às vezes tem pessoas que têm um certo medo dele. Às vezes fala ‘Olha, chegou um macumbeiro. Na casa de macumbeiro, sujou, lavou’”, diz Fabiana.

Ela conta que, desde pequeno, Alejandro começou a apresentar sinais da pajelança e que só vem se fortalecendo com o passar dos anos.

“Ele já nasceu com isso, por isso que eu digo que ele é sacaca, sabedor do conhecimento. Eu não posso interferir porque ele nasceu com isso, eu estou aqui só pra dar apoio pra ele”, explica.

Pela repressão que sofre, Alejandro diz que, em muitos momentos, se silencia e prefere não compartilhar o que sente. “Eu puxo, benzo e ensino remédio. Algumas (pessoas) não acreditam quando eu falo, daí eu não falo mais nada, eu só fico na minha mesmo”, encerra Alejandro.

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