Por Leila Monnerat

No dia 3 de julho, moradores de São Sebastião, no litoral de São Paulo, relataram que um odor fétido se espalhou desde o bairro São Francisco até a região central da cidade. A origem desse odor era o navio Maysora, atracado no porto e carregado com carga vida. Foram embarcados 17.400 bovinos vivos. De acordo informações da Agência Ambiental de São Sebastião fornecidas à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), próximo ao navio o odor era extremamente intenso e permaneceu mesmo após a desatracação do navio. Além disso, segundo o documento da inspeção, foi constatado que os dejetos provenientes da área de embarque estavam sendo lançados ao mar sem nenhum tipo de tratamento.

O relatório destaca que a caixa de decantação, para onde os dejetos deveriam ser encaminhados, não passa por nenhuma operação ou limpeza há mais de três anos e que a referida caixa – situada em frente ao posto da Polícia Federal – apresenta “odor de material fermentado misturado com fezes”. Segundo informação do operador portuário, a empresa responsável pelo embarque da carga foi a Log Logística São Sebastião EIRELI. De acordo com a CETESB, a referida empresa será responsabilizada e pelo odor de fezes animais “percebido ao longo de toda rodovia que interliga Caraguatatuba e São Sebastião decorrente do tráfego de caminhões contendo bovinos”.

O documento também informa que seriam “propostas para instâncias superiores a aplicação de penalidades à Companhia Docas de São Sebastião e ao operador portuário, em razão de se beneficiarem da atividade geradora do incômodo”, por conta da emissão de odores oriundos do embarque de carga viva de bovinos, “odor este percebido além dos limites das instalações portuárias, causando inconvenientes ao bem estar público e às atividades normais da comunidade”.

O odor de fezes de animais já é uma rotina na cidade, já que o porto de São Sebastião é um dos principais pontos de embarque de animais vivos para exportação. Apenas dois dias depois da partida do Maysora, o navio Ghena atracou para embarcar 19.200 bovinos. A chegada de outra embarcação, o Ocean Drover, estava prevista para dias depois do Ghena. Ocean Drover saiu de São Sebastião no final de julho com 14 mil animais a bordo.

“Fedor inimaginável”

O episódio recente no porto de São Sebastião lembra o que aconteceu em 18 de fevereiro deste ano no porto da Cidade do Cabo, na África do Sul, quando um “fedor inimaginável” tomou conta da região. A origem desse odor era o navio Al Kuwait, transportando 19 mil bovinos provenientes do Rio Grande do Sul com destino ao Iraque, onde seriam abatidos. Naquela ocasião, representantes do National Council of Societies for the Prevention of Cruelty to Animals (NSPCA), a maior e mais antiga organização de bem-estar animal da África do Sul, vistoriaram o navio e encontraram um cenário deplorável.

Dentro da embarcação, animais amontoados, feridos e doentes, atolados em fezes e urina e em meio aos corpos dos que não resistiram à viagem. De acordo com a entidade, “as cenas no navio eram repugnantes, com um acúmulo extremo de fezes e urina, e os animais não tinham outra opção a não ser descansar em poças de seus próprios excrementos”. O caso chocou o mundo, mas não é isolado. Maus-tratos e precariedade fazem parte da atividade de exportação de gado.

Foto: NSPCA

Uma prática cruel

A exportação de gado vivo pelo Brasil tem ganhado relevância nos últimos anos, impulsionada pela crescente demanda internacional por carne bovina. Entre os principais destinos da carga brasileira estão países do Oriente Médio e Norte da África, como Turquia, Egito, Iraque, onde é realizado o abate halal, segundo os preceitos dos muçulmanos. Esses mercados, em expansão, buscam o gado brasileiro pela qualidade e pelo preço competitivo. No entanto, essa prática levanta preocupações significativas em relação aos impactos ambientais e aos maus-tratos aos animais.

O transporte de gado vivo envolve longas viagens marítimas, durante as quais os animais enfrentam condições adversas. Embarcações superlotadas geralmente são navios-sucatas adaptados para o transporte de animais. Falta de ventilação adequada, higiene precária e alimentação insuficiente são problemas comuns. Esses fatores resultam em altos índices de estresse, doenças e mortalidade entre os bovinos. Além dos maus-tratos, a logística de transporte tem um impacto ambiental considerável. O transporte marítimo contribui para a emissão de gases de efeito estufa, além do potencial poluidor decorrente do manejo inadequado de dejetos animais durante a viagem, lançados em alto mar, assim como as carcaças dos animais que morrem no trajeto. Organizações internacionais como a World Animal Protection, a NSPCA e a Humane Society International, assim como o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e o Movimento Não Exporte Vidas, aqui do Brasil, denunciam as práticas cruéis e trabalham para aumentar a conscientização quanto ao sofrimento animal.

Foto: Reprodução/Forces News

Legislação brasileira

No Brasil, projetos de lei que visam proibir a exportação de gado vivo estão em tramitação, mas enfrentam resistência de setores econômicos e políticos que defendem a manutenção da prática como estratégica para a balança comercial do país. No Senado, o PL 3023/2021, de iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, teve sua última movimentação em dezembro de 2022 e aguarda inclusão na Ordem do Dia.

Já o PL 521/24, de autoria do deputado Célio Studart (PSD-CE), está em análise na Câmara dos Deputados e altera a Lei da Política Agrícola, que trata do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária. O projeto tramita em caráter conclusivo e atualmente aguarda parecer do relator, Dep. Pezenti (MDB-SC), na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR). Como pontua Célio, “as condições insalubres e os espaços reduzidos constituem maus-tratos evidentes”. Ambas as propostas legislativas, no Senado e na Câmara, permanecem com as enquetes ativas para opinião popular.

Pressão do agronegócio

O setor agropecuário e seus representantes no Poder Legislativo, por sua vez, argumentam que a exportação de gado vivo é fundamental para atender a mercados que exigem o abate halal, que deve ser realizado conforme os preceitos religiosos islâmicos. Além disso, destaca a geração de empregos e o fortalecimento da economia local. Em 2023, as exportações brasileiras de gado vivo ultrapassaram US$ 474 milhões.

Por outro lado, ambientalistas alertam para os danos ecológicos associados ao transporte de gado vivo. Além das emissões de gases de efeito estufa, o manejo inadequado dos dejetos a bordo causa poluição marinha. Outro ponto crítico é a expansão das áreas de pastagem no Brasil para atender a essa crescente demanda externa, o que frequentemente implica em desmatamento, especialmente na Amazônia e no Cerrado. A pecuária sabidamente contribui para a perda de biodiversidade e o agravamento das mudanças climáticas.

Foto: Reprodução/Herold Sun

O que diz a Justiça brasileira

Em decisão judicial de fevereiro de 2018, a exportação de animais vivos havia sido suspensa em todo o território nacional após uma tutela provisória de urgência referente à Ação Civil Pública (ACP) n.° 5000325-94.2017.4.03.6135, na  25ª Vara Cível Federal de São Paulo, de autoria do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. O objeto inicial em questão era o embarque de 27 mil bovinos no navio panamenho NADA – considerado um dos maiores navios boiadeiros do mundo – com destino à Turquia.

Na época, o embarque foi suspenso considerando-se que os animais são sujeito de direito e merecem amparo legal. Naquela ocasião, a AGU foi acionada e a tutela de urgência caiu por terra. Atualmente, a decisão final depende do TRF-3, embora o Juiz Federal Djalma Moreira Gomes tenha reforçado sua decisão e considerado procedente, em abril de 2023, a proibição em definitivo da exportação de animais vivos em todos os portos do Brasil.

Um dos argumentos considerados pelo magistrado foi o de que animais provenientes do Brasil deveriam ser tratados sob as mesmas leis de bem-estar animal e os mesmos preceitos de “abate humanitário” que são preconizados aqui no país. Isso envolve a insensibilização (tornar o animal inconsciente) antes da sangria por degola. No entanto, nos países para os quais o gado brasileiro é exportado, as práticas de abate religioso halal não preconizam a insensibilização prévia. No ritual, a sangria é feita enquanto o animal está consciente, sendo caracterizado, portanto, como maus-tratos segundo a legislação brasileira.

Os ativistas do “Movimento Carga Viva Não” e do “Não Exporte Vidas” têm se mobilizado com o objetivo de pedir ao presidente Lula, por intermédio da primeira-dama Janja e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que intercedam junto à Advocacia Geral da União (AGU) para que haja desistência do recurso na ACP em andamento. “O fim das exportações de animais vivos no Brasil está nas mãos do Presidente, pois basta a AGU desistir do recurso.” É o que destaca Denise Trolezi, integrante do movimento de ativistas independentes pelo fim das exportações de animais vivos.

“No dia 20 de julho, em convenção da Rede na cidade de São Paulo, conseguimos entregar uma carta e falar brevemente sobre o tema com a ministra Marina Silva. Na tarde da mesma data, conseguimos chamar a atenção de Janja com um cartaz durante a convenção eleitoral de Boulos, em que Lula também estava presente. Por meio de uma assessora, Janja pediu o cartaz pra tirar uma foto. Nosso cartaz foi devolvido com o contato da assessora e agora estamos aguardando um retorno para saber de que forma poderemos avançar em relação a tudo isso”, diz Denise.

O Ministério Público Federal inclusive manifestou-se, em 12/7, com um parecer favorável à proibição da exportação de animais vivos. Elizabeth Mitiko Kobayashi, Procuradora Regional da República, destacou a senciência dos animais não humanos e salientou que “as condições de transporte do gado bovino verificadas são as piores possíveis, submetendo os animais a condições insalubres e degradantes, de modo que não estão de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. Não é possível, pois, continuar a exportar animais para abate no exterior no atual estado de coisas, como se os animais fossem coisas, seres inanimados”. No parecer, também é citado que o método halal de abate submete o animal a estresse desnecessário e prejudicial a ele.

Violência do início ao fim

Para além das questões das condições insalubres de transporte e os métodos de abate dolorosos utilizados nos países de destino, há também a questão do transporte e embarque desses animais até os navios boiadeiros. Eles são submetidos a maus-tratos e condições cruéis da mesma forma, estando sujeitos a lesões e ferimentos nos chamados Estabelecimentos de Pré-Embarque (EPEs) e nos caminhões superlotados, como é possível ver no vídeo abaixo.

Tendência mundial

Para que a exportação de animais vivos seja proibida definitivamente no Brasil é necessária pressão popular para que a legislação seja alterada o quanto antes. Lembrando que não apenas os animais, mas também os trabalhadores dessas embarcações são submetidos à precariedade e os riscos da prática – incluindo os naufrágios, como de Barcarena/PA, em 2015. Tem crescido no mundo todo a pressão para a proibição da exportação de carga viva. Atentos aos impactos da exportação de animais de produção, a Nova Zelândia proibiu a prática em 2023. O Parlamento Britânico aprovou em maio de 2024 a proibição de exportação de animais vivos pela Inglaterra, País de Gales ou Escócia.

Fontes: Movimento Não Exporte Vidas e Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal