Hortas urbanas comunitárias, quintais produtivos, cozinhas solidárias, feiras agroecológicas, distribuição de alimentos, estreitamento da relação entre campo e cidade – estas foram algumas das práticas identificadas quando, no ano passado, a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) conduziu um mapeamento de experiências de abastecimento popular e solidário no estado. Em apenas três meses, foram cadastradas 260 iniciativas, muitas delas criadas no início da pandemia de Covid-19, quando a fome  e a miséria avançaram no país.

O mapeamento faz parte do projeto Afluentes do Rio, promovido pela AARJ, coordenado pela organização AS-PTA e financiado pelo Agroecology Fund. Agora, em 2024, o projeto passa por uma nova etapa: a sistematização de cinco das experiências registradas, com foco na região metropolitana, de modo a resgatar sua memória e avaliar as ações envolvidas.

Essas experiências são protagonizadas por movimentos sociais ou redes atuantes no estado – o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Rede Favela Sustentável (RFS), a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), esta a partir do trabalho da Rede Ecológica. Entre junho e agosto, essas organizações realizaram uma série de rodas de conversa e oficinas para refletir sobre suas iniciativas, iniciando o processo de sistematização. No início de setembro, representantes dos movimentos estiveram presentes no IV Encontro de Experiências de Agricultura e Saúde na Cidade (EEASC), realizado na Fiocruz Mata Atlântica, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, e puderam compartilhar parte do que construíram até agora.

Roda de conversa durante IV EEASC. Foto: Raquel Torres

De acordo com Denis Monteiro, agrônomo na AS-PTA, a circunstância em que as sistematizações estão sendo desenvolvidas não poderia ser mais oportuna: “Estamos no calor do momento das eleições de 2024 e queremos que todo o conteúdo produzido a partir das sistematizações seja objeto de discussão entre a sociedade civil,, candidatas e candidatos. No ano que vem se iniciam as novas gestões municipais e, independentemente de haver ou não a troca dos governantes, sempre há novos secretários municipais e um ambiente mais propício para se fazer incidência política no nível local, ainda mais agora com a retomada de algumas políticas públicas federais de apoio à agricultura familiar e de promoção da segurança alimentar e nutricional desde 2023 com o governo Lula”, analisa.  

A ideia, diz ele, é incidir politicamente a partir de experiências concretas, e não somente  de ideias. “Já podemos apresentar, a partir dessas experiências, o que é possível ser feito na prática para acabar com a fome e enfrentar as emergências climáticas, e indicar que, com o apoio de políticas públicas, se pode fazer muito mais. O mapeamento e a sistematização também contribuem para os movimentos sociais pressionarem o governo do Estado para efetivar a política estadual de agroecologia e produção orgânica, aprovada desde 2019 e que até agora anda a passos muito lentos, sem a devida prioridade”

Resgate e planejamento

Para os movimentos, tem sido um processo importante não apenas para construir a memória de suas experiências, mas também para analisá-las criticamente e formular ações futuras. O MTST, por exemplo, decidiu se debruçar sobre uma iniciativa que tende a ser cada vez mais demandada no contexto de crise climática: a cozinha de emergência montada pelo movimento no município de Petrópolis em 2022, logo após o maior desastre causado por chuvas na história da cidade. Na época, 241 pessoas morreram e centenas de famílias ficaram desalojadas. 

A cozinha foi organizada por voluntários do MTST poucos dias após as chuvas e se manteve na cidade por cerca de um mês, distribuindo quentinhas. “É uma iniciativa bem semelhante à das cozinhas solidárias [estruturas perenes que o movimento já mantém nas periferias em vários estados], mas com algumas diferenças, já que a ideia é ter uma atuação pontual, em um momento específico de emergência”, explica Luiz Augusto Gomes, militante do movimento. Depois de 2022, o MTST já realizou o mesmo trabalho outras vezes: novamente em Petrópolis; após o desastre ambiental ocorrido no Acre este ano; e na mais recente tragédia no Rio Grande do Sul, onde ainda hoje as cozinhas de emergência estão atuando.

 MTST levou cozinha de emergência a Petrópolis/RJ em 2022, após o maior desastre causado por chuvas no município. Fotos: Acervo MTST

“A gente precisa ter essa memória para sabermos o que precisamos fazer para criar uma cozinha de emergência, para não termos que ‘inventar a roda’ toda vez. Porque esse tipo de acontecimento vai ser nossa sina daqui para frente, e a sistematização tem também o papel de assinalar o caminho das pedras. Não é como uma receita de bolo, porque os contextos mudam, mas é um caminho que pode ser trilhado”, avalia Luiz Augusto.

Nesse sentido, a experiência que o movimento tem com as cozinhas solidárias também é importante. Parte dos voluntários que se deslocaram para ajudar na organização dessas cozinhas de emergência atuam nas cozinhas solidárias do MTST no estado do Rio, como a da Lapa, que atende principalmente a pessoas em situação de rua, e a do Sapê, em Niterói, voltada para moradores da comunidade do Rato Molhado. 

Campo e favela

A ideia de utilizar a sistematização para pensar passos futuros também é ressaltada por Rodica Weitzman, da Rede Ecológica, que, em parceria com a Rede Carioca de Agricultura Urbana, desenvolveu a campanha Campo e Favela de Mãos Dadas contra a fome e a Covid. “Em geral, não temos espaços propícios para uma reflexão mais crítica sobre a experiência, então a sistematização é muito bem-vinda. E decidimos também trabalhar as perspectivas futuras, entendendo, a partir da avaliação, quais são nossas lições aprendidas, para pensar em que a campanha pode se transformar”, explica.

A campanha teve início em 2020, nos primeiros meses da pandemia, para apoiar dois grupos populacionais: famílias em situação de insegurança alimentar em diversos territórios do Rio e agricultores locais que, devido às estratégias de isolamento social, enfrentavam dificuldades para escoar seus produtos nas feiras. Com recursos financeiros arrecadados por meio de doadores individuais e de um edital da Fiocruz, foi possível comprar a produção da agricultura familiar e fazer doações de alimentos agroecológicos. 

Entrega de alimentos em Macaé/RJ em 2021. Produtos oriundos do assentamento Oswaldo de Oliveira, no mesmo município. Foto: Acervo Rede Ecológica

Nas rodas de conversa que a Rede CAU e a Rede Ecológica organizaram para a sistematização, produtores, beneficiários e voluntários lembraram as diferentes configurações que a campanha tomou. No território de Vargem Grande, por exemplo, inicialmente eram doadas apenas cestas já montadas. No entanto, em 2022, já com as feiras de volta às atividades regulares, se chegou à elaboração da moeda social CUCA, que as famílias recebem e podem trocar pelos alimentos de sua escolha nas feiras. 

CUCA, a moeda social utilizada atualmente para a retirada de alimentos em Vargem Grande. Foto: Raquel Torres

Além da distribuição de alimentos, a campanha também promoveu ações educativas, oficinas de plantios em quintais e formas de geração de renda. De acordo com Rodica, a campanha não foi encerrada, mas teve seu escopo bastante reduzido pela escassez de recursos nos últimos anos – daí a necessidade de pensar seu futuro.

Outra experiência que estreitou as relações entre campo e cidade é o projeto Periferia Viva, realizado em uma parceria entre o MST, o Levante Popular da Juventude e o Movimento Brasil Popular (MBP). Ele funcionou inicialmente no período mais duro da pandemia, também com foco em doações de alimentos para populações vulneráveis, e foi retomado em 2023 a partir de uma parceria institucional com a Fiocruz. Na nova fase, que se encerra em novembro, sete territórios periféricos da região metropolitana do Rio estão envolvidos em uma série de atividades: a promoção de hortas comunitárias e cozinhas populares, cursos de formação de agentes populares por direitos, e feiras agroecológicas com produtos fornecidos por assentamentos do MST no estado. 

Plantio no assentamento do MST Roseli Nunes, em Piraí/RJ, onde é produzida parte dos alimentos que abastecem as feiras populares do projeto Periferia Viva. Foto: Raquel Torres

Segundo Leonardo Schafer, técnico agropecuário e integrante do movimento, a sistematização está focalizando atividades em três regiões: a horta comunitária Morro do Sereno, que faz parte do Complexo da Penha; as feiras agroecológicas na Penha e em Manguinhos, e uma cozinha comunitária na Rocinha. 

No Morro do Sereno, a horta comunitária é mantida por um grupo de mulheres que, com o apoio técnico de Leonardo, começaram a plantar em um pequeno espaço cedido por um morador. No terreno de menos de 50 metros quadrados, elas já plantaram aipim, abóbora, milho, temperos e verduras em geral.  “Os alimentos colhidos normalmente são utilizados em grandes almoços coletivos que promovemos na comunidade”, conta Cristine Germano, conhecida como Titi, uma liderança local que mobiliza o projeto no território.

As feiras são abastecidas por agricultores de assentamentos como o Roseli Nunes, em Piraí, no sul do estado. Ainda como parte do Periferia Viva, foi organizada uma visita dos moradores dos territórios contemplados pelo projeto ao assentamento, para conhecerem pessoalmente os produtores e participarem de um mutirão de plantio e colheita de hortaliças.

Produção de alimentos enfrenta obstáculos

A Rede Favela Sustentável, formada por integrantes de organizações que atuam em mais de 300 favelas no Rio de Janeiro, escolheu sistematizar a experiência do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM), na Terra Prometida, comunidade do Complexo da Penha. A Serra se estende por 27 bairros da Zona Norte do Rio e é a principal área verde da região. No CEM, multiplicam-se iniciativas relacionadas à agricultura urbana, à soberania alimentar e ao abastecimento popular: há uma agrofloresta comunitária, quintais produtivos, uma cozinha comunitária e atividades voltadas para crianças.

Viveiro de mudas na Serra da Misericórdia. Foto: Reprodução/ Facebook/CEM – Centro de Integração na Serra da Misericórdia 

A rede já tinha o hábito de sistematizar suas atividades como um todo – a organização atua em 11 eixos, incluindo soberania alimentar –, mas, segundo a coordenadora Theresa Williamson, nunca com foco específico em uma única iniciativa. “Esse processo acabou despertando nosso interesse para também olhar com cuidado para nossos outros eixos e pensar nosso futuro a partir disso”, explica ela.

Na oficina organizada com membros da comunidade para subsidiar a sistematização, foram mapeadas as várias atividades já desenvolvidas pelo CEM, desde sua criação, em 2010, até 2024. 

Apesar da profusão de atividades realizadas pelo CEM, os participantes destacam uma série de dificuldades: o espaço da agrofloresta é constantemente invadido por vacas, a terra ainda tem problemas de fertilidade, há problemas recorrentes com formigas. Mas um dos maiores obstáculos relatados, não só para a produção de alimentos como para a saúde dos moradores de maneira geral, é a violência na comunidade, constantemente palco de operações policiais. 

Necessidade de escoamento

O MPA, por sua vez, está sistematizando a experiência do Raízes do Brasil, criado em 2017 para promover um encontro entre campo e cidade, organizando a produção e a distribuição de alimentos agroecológicos na cidade do Rio.

Raízes do Brasil, no bairro de Santa Teresa. Foto: Raquel Torres

O Raízes é um espaço físico no bairro de Santa Teresa que oferece atividades culturais, debates e alimentação – há o tradicional Café Camponês, um buffet que funciona nas manhãs de sábado, uma loja com produtos não-perecíveis (como arroz, sucos e farinhas) e a feirinha camponesa, com alimentos frescos produzidos pelo MPA. “O Raízes é uma forma de fomentar o escoamento da produção dos agricultores –  não só os do Rio, como também de outros estados – a partir de um ponto dentro da cidade”, resume Jennifer Carmo, do MPA.

As sistematizações devem ser concluídas até o final do ano, após as eleições municipais – e Carolina Coelho, coordenadora do Afluentes do Rio, reforça a intenção de que as experiências venham a inspirar políticas públicas: “Sempre ouvimos dos movimentos que as políticas públicas não necessariamente vêm para atender a alguma demanda deles, mas que, ao contrário, as atividades que eles já realizam inspiram a formulação de políticas. Por isso é tão importante que o documento final seja, mais do que memória, instrumento de incidência”, conclui.