Por Kaio Phelipe

Autor de mais de trinta obras, seu romance Stella Manhattan, publicado em 1985, é o primeiro livro brasileiro com protagonismo trans.

Nascido em Formiga, no interior de Minas Gerais, Silviano Santiago é um dos maiores nomes da literatura brasileira. Laureado cinco vezes com o Prêmio Jabuti e também reconhecido com o Prêmio Camões – mais alto prestígio da literatura em língua portuguesa –, seu romance Machado foi eleito um dos 25 melhores livros do século XXI.

Conversamos com Silviano sobre sua trajetória, a repercussão de Stella Manhattan, a importância de discutir gênero e sexualidade na literatura, sua amizade com Ezequiel Novaes – que inspirou o livro Mil rosas roubadas –, exílio e a biografia que está sendo escrita por João Barile.

O exílio é importante para a construção das suas narrativas?

O exílio tem a ver com o fato de que não nasci em uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo. Nasci em Formiga, uma cidade de trinta mil habitantes no interior de Minas Gerais. A mentalidade do lavrador e do marinheiro – usando a dicotomia de Walter Benjamim – é muito forte para quem nasce na província. Porque se fica, você vira lavrador, em um sentido obviamente metafórico, fica cultivando as tradições daquela comunidade interiorana de tal forma que, se você tiver o talento necessário, poderá concluir, como Tolstói, que o universal pode estar em uma pequena cidade.

E ao mesmo tempo, eu diria até por fatalidade, fui levado a ter uma curiosidade sobre todas as coisas. A fatalidade que digo é a perda da minha mãe quando eu tinha um ano e meio de idade.  Qualquer um pode imaginar que isso faz com que a formação infantil seja deformada, segundo os padrões convencionais de uma sociedade patriarcal.

Quer dizer, então fui, de certa maneira, conduzido a construir a mim mesmo desde muito cedo no isolamento. E por sorte fui uma pessoa muito curiosa. Inclusive, o meu apelido em casa era “Especula-cula”. Tudo o que diziam ao meu redor, eu queria saber o que era e ficava especulando. Posso dizer então que devo ter nascido com uma curiosidade muito grande sobre as coisas e sobre o mundo.

Um amigo meu disse que essa curiosidade é porque o trem de ferro parava em Formiga. Dizem que quando um trem de ferro para em uma cidade provinciana, o lugar passa a ser um centro de viajantes. Então Formiga atraía muito mais gente do que uma cidade onde o trem não parava.

Minha família é muito extensa. Meu pai casou duas vezes e somos onze irmãos. Do lado da nossa casa havia um cinema. Em Formiga, eu era de classe-média, mas depois tivemos uma ligeira desclassificação econômica quando fomos para a capital estadual. Mas, enquanto cidade provinciana, a gente era de uma classe-média relativamente sólida. E eu podia entrar e sair do cinema o quanto quisesse, não precisava pagar para entrar.

Então direcionei muito da minha curiosidade para a cidade – não havia como não direcionar –, mas sobretudo para o cinema e para o gibi. Desde muito cedo, acho que por volta dos quatro ou cinco anos de idade, comecei a ver muito filme. Nasci em 1936 e estou falando dos anos de 1940. Os filmes daquela época giravam em torno da Segunda Grande Guerra, a mesma coisa os gibis. E eu me interessava muito por isso.

Tive uma formação extremamente fragmentada. Minha educação não teve o caráter de alguém que nasceu dentro de uma família patriarcal, onde você tem a presença forte da mãe e do pai. Então fui constituindo e imaginando um lugar para mim que não seria na província. Tanto que o grande poeta para mim, quando comecei a mexer com literatura, foi Carlos Drummond de Andrade, principalmente pelo poema Infância, que é ele menino em Itabira lendo a história de Robinson Crusoé.

Então eu percebo que há a constituição inclusive na minha formação de uma maneira própria e teórica de enxergar o mundo.

Em 1971 escrevi O entrelugar do discurso latino-americano. Se você está na província, você vive o entrelugar a partir da própria vivência na cidade e o imaginário no universo popular. No meu caso, foi o cinema e o gibi. No caso do Drummond, foi a história em quadrinho.

Tive uma vida projetada para fora. E aí houve uma coincidência: minha família e eu fomos para Belo Horizonte. Nos transferimos quando eu tinha dez anos de idade. Em Belo Horizonte eu já estava no exílio, já não estava na cidade onde nasci.

Minha família sofreu uma desclassificação social muito grande. Meu pai era cirurgião dentista em Formiga, e nós tínhamos um padrão muito bom. Mas quando fomos para BH não tinha clientela e ele abriu uma loja de artigos dentários. Ele era pai e patrão.

De todos os irmãos, sempre fui o mais obediente, e com doze anos eu já trabalhava na loja. Fiquei trabalhando lá até meus vinte e um anos. Tenho um sentido de disciplina muito grande. Mas também comecei a fracassar como aluno. Saí do interior e entrei em um colégio estadual que só havia quarenta vagas, então eu tinha um bom preparado, mas comecei a ficar desmazelado.

Meu irmão tinha chegado do Rio de Janeiro e falou que havia um clube de cinema em BH, que é o CEC (Centro de Estudos Cinematográficos), e tendo entrado para o cinema, de repente, eu tenha canalizado também a imaginação do exílio. Porque o cinema nacional é sempre uma produção numericamente mínima em relação ao cinema dito universal. 

O próprio Walter Benjamin diz que o filme tende a ser universal porque só uma nação não consegue pagar o custo dele.

Eu estava inclinado a uma forma de arte que fosse universal e que fosse feita através de montagem, que não é de coordenação ou subordinação, mas de coexistência de imagens organizadas segundo determinados princípios.

Por outro lado, também tem a questão que no CEC encontrei uma espécie de comunidade diferente de família. E a família era extremamente fragmentada para mim. Mas encontrei essa comunidade de pessoas que gostavam de arte, e que se encontravam, e tinham prazer dessa forma.

Essa congregação foi importante para mim porque ela me despertou para a boemia. Nos encontrávamos em bares e havia uma cumplicidade meio indigna. 

Foi nessa época também que entrei na literatura. E foi muito bom ter entrado dessa maneira, com uma cabeça muito teórica, e percebendo que ela caba tendo o mesmo rigor composicional que um filme requer.

Uma coisa que é típica minha, já que eu era obrigado a trabalhar todos os dias na loja, é não querer fazer o que não gosto. Sempre gostei de fazer o que gosto. E isso também é importante porque define mais do que um gosto, define uma obsessão. Dessa maneira, fui organizando um universo.

E você tem que imaginar também o lado negativo de ser provinciano e crescer em Belo Horizonte. Nós não tínhamos acesso a museu, por exemplo. Nem em Formiga nem em Belo Horizonte. 

E já cursando Letras, não havia como não querer me especializar. Naquela época não havia CAPES ou CNPq. Você tinha que conseguir uma bolsa da embaixada. Foi na embaixada que consegui oportunidade para fazer meu doutorado na França. 

Então esse é o caminho do exílio. Esse exílio vai ser responsável pela minha verdadeira manutenção financeira, porque escolhi uma profissão, a literatura, que não rende. Fui obrigado a me autossustentar através do ensino, mas sem nunca largar a literatura.

Essa é a razão pela qual o exílio é tão importante ou presente em minha obra.

Foto: arquivo pessoal

Já pensou em trabalhar com roteiro ou produzir um filme?

Não. Uma das questões da minha vida é exatamente a questão financeira. Um filme é um problema financeiro muito grande. Se você pretende fazer um longa, o melhor é ficar na sua terra. Não há outra maneira de levantar dinheiro.

Fui muito amigo do Glauber Rocha em 1956. Nessa época, ele foi a Belo Horizonte para conhecer cidades históricas. O Glauber me escandalizou um pouco porque só se interessava por romance nordestino. Ele escreveu uma carta para um amigo dizendo que lá todos eram malarmaicos, como se a gente não estivesse no mundo. Me lembro muito bem das palestras que ele fez no CEC, ele já estava escrevendo Deus e o diabo na terra do sol.

Ele estava falando de Euclides da Cunha, e do romance Seara vermelha, de Jorge Amado. Em Deus e o diabo na terra do sol estão as três figuras de Seara vermelha: um cangaceiro, um místico e um que vai entrar para o Exército.

Nunca me interessei em fazer cinema também porque eu trabalhava muito. Escrevia romance, ensaio, dirigia tese, dava aulas e ainda tinha a minha vida íntima. Na prática, o cinema nunca foi para mim. Não consigo enxergá-lo sem um caráter teórico. Isso faz com que a minha própria leitura de qualquer forma de arte seja mais teórica.

Até a minha memória é teórica. Se você pedir para eu narrar um livro meu, não irei conseguir. Memorizo tudo teoricamente. Talvez seja por isso que eu tenha, ao contrário da maioria dos críticos da minha geração, um acervo muito maior do que a maioria deles.

Memorizo o livro já preparando para ser usado posteriormente em algum ensaio. Memorizo livros, filmes, obras de arte. Eu não preciso, por exemplo, reler um livro de Machado de Assis para poder falar sobre ele. Tenho tudo organizado em minha cabeça.

É possível discutir gênero e sexualidade na literatura? 

Claro.

A palavra se liga à ação. A palavra é de uma pessoa participante. E esse participante possui mente localizada em uma geografia e em um tempo. Se não tem, ele não é participante. E essa geografia pode ser uma comunidade, um grupo, o próprio Estado nacional ou o que for. E o tempo precisa ser necessariamente o presente. Se não for o presente, fica muito vago.

A literatura faz parte de um grupo – que incluo as ciências sociais e a filosofia – que coloca a palavra em relação direta com o pensamento. Então colocando a palavra em relação direta com o pensamento, ela tende a ser menos simplificada do que a palavra que está direcionada pela participação. 

Por exemplo, o Ney Matogrosso em 1973 é muito mais participante do qualquer outro no debate de gênero, queira ele ou não. A proposta inicial dele não era ser um participante, mas inevitavelmente acabou sendo.

A medida em que você apresenta um problema, você apresenta um debate. E a literatura é, antes de mais nada – não segundo o entretenimento, mas segundo a arte –, drama. E se ela é drama, é importante que tenha a ambição maior do que a projeção de uma questão da voz de um participante.

Não estou tirando a relevância da voz do participante. Estou dizendo que a ambição da arte é maior.

Posso dar um exemplo concreto: quando escrevi Em liberdade, me interessava sobre tudo. Tive um irmão que era do Partido Comunista e foi preso e torturado. Eu estava interessado em comentar isso, mas em lugar de escrever a história dele, eu achava mais importante entender e projetar a relação dos intelectuais com o Estado.

Meu livro já é uma tentativa de compreender menos a participação política em 1973 do que uma questão que é constante dentro da história do Brasil, que é a perseguição a intelectuais que vem da Inconfidência Mineira, e sendo eu um mineiro.

Tento me inserir dentro das preocupações que são de ordem política, de ordem das ciências sociais.

Uma vez o Pedro Paulo Sena Madureira me perguntou, já que o Em liberdade havia feito um relativo sucesso, se eu não escreveria um diário do Claudio Manoel da Costa. Eu respondi que não, de maneira nenhuma. Já tinha dado um recado, agora era preciso falar sobre outra coisa, algo mais próximo de mim. Nesse sentido, seria Stella Manhattan.

Não fui um ativista político no sentido estreio da palavra. Fui mais ativista no exílio do que no país onde nasci e sou cidadão. Nunca me tornei cidadão americano e sempre trabalhei com o greencard. Aí comecei a imaginar o Stella Manhattan. Até mesmo porque queria trabalhar com questões que estavam com muita deformidade no Brasil. Gostaria de mostrar o autoritarismo colocando a personagem principal trabalhando em um consulado brasileiro.

Stella Manhattan tinha esse sentido de trazer a questão de gênero. Levantando essa questão, abordei o que a gente chama de identidade de uma pessoa. Tive que ir além, não só na personagem, mas também na própria escrita do livro, que mistura masculino e feminino e idiomas diferentes. 

Você pode enriquecer e deve enriquecer a linguagem. A linguagem muda. A linguagem não se adapta a todo pensamento. O pensamento, de certa forma, que reorganiza o vocabulário. 

No fundo, Stella Manhattan é um romance que tem muito a ver com a filosofia da diferença. Não é um romance otimista apenas pelo otimismo. É um romance que já sabia que teria consequências. Haverá sempre um Trump ou um Bolsonaro no meio do caminho. 

Foto: Pedro Karp Vasquez

Como foi a repercussão de Stella Manhattan?

O livro foi publicado em 1985. Em geral, os meus livros são atrevidos. O próprio Em liberdade, publicado em 1981, teve problemas sérios.

Stella Manhattan foi mais complicado pelo fato de eu ser professor. Sempre tem aquela situação de estar um grupo de professores e perguntarem se o livro é autobiográfico. A minha tendência é dizer que sim. Se digo que não, as pessoas acham que é mentira. Quando digo que sim, a conversa acaba.

Nos Estados Unidos a tradução foi proibida em diversas faculdades.

De certa maneira, acho que o melhor é saber que se você escreve livros atrevidos, o atrevimento vai incomodar e as pessoas vão se manifestar. 

Geralmente se manifestavam aqueles que fiz reservas em resenhas. Por exemplo, o Wilson Martins foi terrível com o Em liberdade. Ele disse que eu era um escritor sem nenhum caráter. Mas em contrapartida tem uma resenha maravilhosa na Veja, escrita pelo Caio Fernando Abreu.

Ganhei o Jabuti com Em liberdade, mas não com Stella Manhattan. Ganhei cinco Jabutis, mas nenhum com Stella Manhattan. Talvez não fosse o momento.

Como era sua amizade com o Ezequiel Neves?

Foi uma relação muito bonita, difícil de ser existida hoje em dia. Nos conhecemos no CEC, devíamos ter dezessete anos. Nós fomos extremamente amigos, uma amizade que é difícil de acontecer isso.

A razão por escrever o livro Mil rosas roubadas é que o Ezequiel era a única pessoa que podia ser meu biográfo. Era o único que realmente me conhecia. Ninguém na minha família e nenhum outro amigo me conheceu tão bem.

Aí houve esse triste e fatídico acontecimento: ele morreu primeiro. É uma falta sentida de forma traumática por mim. Foi o trauma que me levou a escrever o livro.

Eu acho que eu deveria ter morrido primeiro. Assim, pelo menos, eu teria um bom biógrafo. E eu teria sido um péssimo biógrafo dele, mas era o que me competia. Daí escrevi a biografia dele, ou como eu acho que ela é. E não é sobre o Ezequiel que foi obrigado a se acanalhar por não ter tido uma profissão.

Isso era uma coisa que conversávamos muito e ele ficava um pouco furioso comigo. Eu era certinho demais pro gosto dele. E eu dizia que ele era o contrário, o Ezequiel se acanalhava muito facilmente para poder sobreviver. No final do mês, ele não tinha o dinheiro pra pagar o aluguel, então precisava tomar uma providência.

Eu tentei evitar isso. Foquei muito mais na minha formação e no CEC. 

 Quando eu estava nos EUA, mandava muitos discos para ele. Ele pôde fazer aquelas matérias em primeira mão, que deram um grande nome a ele, sobre Janis Joplin e The Doors.

O João Barile, que agora é quem está escrevendo minha biografia, descobriu as cartas que trocávamos. Tem algumas muito bonitas que o Ezequiel escreveu pra mim. Estou até querendo fazer uma publicação delas. Não tem as que escrevi pra ele. As cartas são muito bonitas porque traduzem exatamente a qualidade da nossa amizade no cotidiano, as pequenas coisas, pequenas ofertas.

Tem uma passagem muito bonita de quando trouxe um sapato pra ele. Eu estava no deserto de Albuquerque, que tinha uns sapatos que ficaram muito famosos depois, como botas de caminhar. O Ezequiel comenta sobre isso e diz que estava andando com os meus pés.

Tenho muita dificuldade de narrar o que é o Mil rosas roubadas. São coisas que me escaparam. Outro dia, li uma passagem que diz que o Ezequiel era um garimpeiro. E pensei comigo mesmo: que coisa louca, como eu escrevi isso? Era fantástica a capacidade dele de descobrir a joia no outro. Ele estava sempre descobrindo a joia no outro, muito diferente de mim. Sou muito mais crítico, muito mais feroz.

Releio partes do livro e acho engraçado. O que fiz, o que posso garantir, é que me esforcei muito na compreensão de uma pessoa muito íntima, e esse é um esforço que todo mundo deveria fazer. A gente entende como vidas tão próximas podem ser constituídas de modos tão diferentes.

Foto: arquivo pessoal

Como foi tomar posse na Academia Mineira de Letras?

Na Academia Mineira, entrei meio por acaso. Foi o presidente daquele momento que sugeriu que eu me candidatasse.

Foi no final da pandemia de covid-19. Eu estava em um período muito down. Eu moro sozinho, com a idade que tenho – estou com oitenta e oito anos. Na época, já tinha oitenta e tantos. Não tenho condição cardíaca, mas tenho uma hipertensão muito rebelde. Posso ir, assim, de uma hora para outra. Não é um equívoco, mas é um acaso eu ter entrado.

O fato de eu ter sido professor, por mais rejeição que um professor possa ter na universidade onde trabalhou, sempre terá lá uma espécie de chão social, que são os colegas. Durante a covid-19, nem esse chão social havia. Foi uma solidão terrível. Não havia como ter pessoas por perto e era um tédio. Estava acostumado a sair para tudo que é lado, fazer tudo sem depender de ninguém. Agora, por conta da idade, preciso ter uma vida mais tranquila.

E aí foi isso o que aconteceu. Fui muito bem recebido na Academia Mineira de Letras. Ocupo a cadeira que também foi do Paulo Tarso Flecha de Lima.

E quanto a ABL?

Acho que já superei essa depressão. Refleti muito e reparei que é uma questão de foro íntimo. Quando acho que não devo fazer algo, é melhor mesmo não fazer.

Não existe a possibilidade de uma candidatura minha. O mundo virou outro. Mas se viesse outra pandemia, não sei. 

Tem um detalhe que também faz diferença. Apesar de ter trabalhado na firma do meu pai, que depois virou uma boa firma, recusei a herança. O dinheiro que tenho é o dinheiro que ganhei na minha profissão. Não gostava do comércio, não queria ser comerciante, então preferi não ser sócio.

Tenho a troca de cartas com o meu pai e em uma delas digo que não queria a herança. Também tenho uma carta dele dizendo o quanto somos parecidos. Ele também se recusou a morar com o pai.

É um excesso de individualismo que fui obrigado a ter, por isso logo no começo da entrevista expus uma fatalidade que foi muito grande na minha vida. Não é toda pessoa que entende isso, viver em uma sociedade onde você não se encaixa. Todos os seus colegas tem mãe, tem festa de aniversário. Lá em casa não tinha festa de aniversário, a festa coincidiria com o dia da morte da minha mãe.

Tive uma sorte de conseguir organizar a minha viagem. Viver nos EUA, hoje as pessoas sabem o que é, mas trabalhar naquela época com greencard não era fácil, mas cheguei a um ponto que pude convidar pessoas como Glauber Rocha e contratar Abdias do Nascimento. Foi muito difícil porque todas as sociedades são xenófobas.

Como foi ser laureado com cinco prêmios Jabuti e com o Prêmio Camões? Essas são as experiências máximas que a literatura pode proporcionar?

Eu acho que a melhor experiência que a literatura pode proporcionar é a vendagem do livro. Assim como, se você é pintor, o reconhecimento das pinturas nos museus. Essa é a melhor recompensa, sem dúvida. 

O prêmio é outra coisa. É o reconhecimento, que pode ser exagerado ou falso, mas é uma forma de reconhecimento. São reconhecimentos para pessoas que se dedicam a algo – no meu caso, a literatura –, e que acreditam que você fez algo que se sobressaiu, em relação ao Jabuti. E no caso do Camões, que tive uma carreira que se sobressai. Então essa ideia de um reconhecimento é algo que me inspira a continuar escrever, mesmo que eu seja muito menos lido hoje em dia.

O que gosto de fazer é escrever e ainda estou escrevendo direito. Minha memória está razoável. Tenho uma habilidade de criar conceitos que os brasileiros, em virtude da colonização, não estão habituados porque a gente sempre trabalha em segunda mão. Assim, A essência do brasileiro é sempre endossar um conceito, e tendo sido colonizado pelos europeus, tendem a endossar um conceito eurocêntrico.

Mas também entramos em outra clave, que acho importante se você for provinciano, que é a ideia do atrevimento. Se atrever a fazer alguma coisa que certamente é menos importante, mas que terá um significado cuja originalidade está no fato de contrariar o fluxo da colonização. Pra isso acontecer, não se deve seguir a rejeição, mas sim a desconstrução da colonização. É preciso seguir o contrafluxo.

Tive um acerto atrevimento quando descobri que esse contrafluxo precisa ser acronológico. A medida em que você se torna acronológico, você também se torna um pouco perdido no espaço. Esse “perdido no espaço” da literatura oferece a possibilidade de observar aquilo que vem antes de você. De repente, você percebe que não fez uma cópia.

Assim, você já está quebrando um dos postulados mais fortes da colonização, que é a ideia de progresso. Mas é preciso ter coragem.

Tenho um texto onde comentou sobre a ideia de cosmopolitismo, sobre grandes migrações de comunidades pobres para regiões melhores colocadas economicamente. Assim, existe o cosmopolitismo do pobre. O pobre se vê obrigado a viver comopoliticamente sem estar preparado. E a gente está vendo o Trump expulsando um monte de gente dos EUA sem a menor justificativa. A que ponto isso pode chegar?

Brincavam, na época, dizendo que cosmopolitismo é coisa de rico. Não é, infelizmente. No momento em que você vivem em Nova York, se vê obrigado a sobreviver em Nova York e se inserir naquela sociedade. Ainda que seja de forma passageira, você tem uma vida cosmopolita. Você constitui uma cosmopolítica, e não simplesmente um cosmopolitismo no sentido estreito da palavra.

Quais serão seus próximos trabalhos?

O João Barile está escrevendo a minha biografia, que deve sair no final deste ano. Está sendo muito bem feito. O João é diretor do Suplemento Literário de Minas Gerais.

E tem os folhetins que escrevo para o blog, que é um livro aberto. Um livro muito ambicioso, sobre como mundo recomeça no século XXI, e todos os valores que foram massacrados pelo eurocentrismo estão de volta. Em particular e mais evidente, está a questão racial.

Daí o meu interesse em situar a questão identitária em um quadro mais amplo. Então escolho um quadro que começa com a chegada de Dom João VI no Brasil e o fato de a Independência não ter sido por civis, mas pela família de Bragança. 

E ainda tenho uma dívida com Helio Oiticica. Em 1973 ele fez um design para um livro de poemas meus, ainda inédito. Ele tem o formato de XXXV, trinta e cinco em algarismos romanos – eu tinha trinta e cinco anos quando escrevi. Na época, o livro precisaria ser feito em plástico e foi sendo adiado até agora.