Exclusivo: Alvaro Campos se une à era ‘pós-pandemia’ do cinema nacional com a estreia de ‘Mundo Novo’
O longa-metragem foi exibido no Festival do Rio, onde recebeu os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Atriz, além de participar da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Por Isabella Vivela
O longa-metragem de ficção “Mundo Novo”, escrito e dirigido por Alvaro Campos, já tem data de estreia. O filme, produzido pela Coqueirão Pictures, em coprodução com Vilania Ficcional e Nós do Morro e produção associada da VideoFilmes, conta a história dos preconceitos vividos por um casal interracial e chega aos cinemas brasileiros em 23 de maio com distribuição da O2 Play.
“Mundo Novo”, que esteve na 45ª Mostra Internacional de São Paulo, fala das vidas de Conceição, uma advogada negra, e de Presto, um grafiteiro branco, que decidem pedir financiamento bancário para comprar um apartamento no Leblon após passarem o isolamento da pandemia de Covid-19 juntos. Mas, para conquistarem o novo lar, o casal precisa da ajuda de Charles, irmão de Presto, o que acaba revelando os verdadeiros pensamentos de Charles sobre o casal.
O longa também passou pelo Festival do Rio de 2021, onde arrematou dois prêmios: Melhor Roteiro, para o diretor Alvaro Campos e elenco, e Melhor Atriz, para a atuação de Tati Villela, no papel de Conceição.
Em entrevista ao Cine NINJA, o diretor, que está na mesa de roteiro das séries Senna, a ser lançada pela Netflix em 2024, e da série Anderson Spider Silva, da Paramount+, falou sobre as limitações da obra, desde orçamento até as dificuldades da pandemia, além de refletir sobre o Brasil pós-pandemia. Confira abaixo:
Cine NINJA: Qual foi o ponto de partida para a criação de “Mundo Novo”? Qual era a sua intenção ao criar essa história?
Alvaro Campos: O ponto de partida foi um momento em que eu e um grupo de talentos estávamos bastante perdidos durante a pandemia. Justamente naquela fase em que não tinha trabalho, não tinha perspectiva, sabe-se lá o que ia acontecer com a gente. Nós demos vazão a esse momento escrevendo e construindo um projeto.
Esse projeto foi o ‘Mundo Novo’, que reuniu a galera do Nós do Morro, com quem eu já queria trabalhar há muito tempo, e talentos que já trabalhava, como a Rita Albano, o Rodrigo Cellos e todo mundo que foi chegando junto para fazer uma obra que fosse relevante para gente, que pudesse ser filmada naquelas condições, mas que também nos tocasse pessoalmente e usufruísse dessa liberdade que de certa forma o momento entregava.
Eu venho do circuito comercial, onde existem várias etapas de aprovação e às vezes a integridade do projeto se perde um pouco, e aqui não. Nós conseguimos dar vazão a todas as complexidades que nós queríamos, que era discutir preconceito geográfico, racismo e luta de classes dentro da ótica do Rio de Janeiro e no jogo entre Vidigal e Leblon.
CN: Pode nos contar um pouco sobre o trabalho do grupo Nós do Morro nesse processo?
AC: A princípio, nós íamos fazer uma peça de teatro online com esse recurso limitado que nós tínhamos. Então eu posso falar com toda gratidão do mundo pela Lei Aldir Blanc, que foi fundamental, pelo Projeto Paradiso, pela VideoFilmes e todos os outros apoiadores.
Mas o mais importante, sem dúvidas, é ressaltar o espírito de cooperação de todos os talentos que chegaram para escrever, produzir, pós-produzir e finalizar esse projeto. Todos sabiam das condições complicadas, todo mundo ganhou um cachê muito menor do que está acostumado no mercado, mas fizeram pelo amor ao cinema, por estar produzindo naquele momento tão difícil e por estar produzindo alguma coisa que fosse de fato relevante. Por causa das condições extremas, tivemos a oportunidade de trabalhar com uma liberdade que não é comum e com um espírito colaborativo que não é comum.
Nós assinamos o roteiro juntos, eu e o elenco, porque o roteiro foi todo reconstruído a partir dos ensaios e durante as filmagens. Quase que um quarto do filme foi criado durante as filmagens. Enquanto todos viviam a história, ideias iam surgindo e construímos juntos.
CN: Incorporar os comportamentos pandêmicos – evitar cumprimentos físicos, trocar o calçado, o uso de álcool em gel, foi uma maneira de abordar os desafios da quarentena durante a produção do filme? Também foi uma forma de mostrar o comportamento racista do Charles?
AC: Primeiro, era isso. Pensamos em como poderíamos fundir a dramaturgia com o sistema de proteção e controle que estávamos fazendo com o elenco e produção. As máscaras que eles usam no filme são as que eles usavam nos bastidores. Então, nós incorporamos da forma mais natural possível.
E sim, o controle dos sapatos, o uso da máscara, a higiene com a mão, a ameaça que vem de fora para dentro da casa também é trabalhada como alegoria política. Foi inescapável também, porque filmamos 95% dentro do Vidigal, e vimos esse contraste. Nós tínhamos um sistema de proteção para a equipe e para o elenco, mas a comunidade, a 2 metros de distância da gente, subia e descia sem máscara, porque a capacidade de se proteger era uma privilégio. Quem podia ficar em casa, ficava. Quem podia ir para o mundo protegido, ia. Mas o grosso da população não podia, e isso era um sinal claro muito perto da gente. Então não tinha como não fazer um comentário político com a realidade tão óbvia na nossa cara.
CN: A escolha de filmar “Mundo Novo” em preto e branco parece desempenhar um papel fundamental na representação do racismo. Você poderia compartilhar mais sobre como essa decisão afetou a narrativa e a estética do filme?
AC: Essa ideia começou, porque o mote do filme é ‘o passado é um presente sem presença’. Isso é uma alegoria para as questões raciais. Quando falamos sobre racismo, estamos falando da justiça histórica que não pagamos, não recuperamos e estamos discutindo só agora a dívida com a escravidão. É um passado muito presente na composição da sociedade brasileira como um todo.
O preto e branco dá um clima atemporal para a história. Por coincidência, eu estava assistindo Terra Estrangeira há pouco tempo. É um filme que tem referência a Era Collor no começo, mas passado isso, aquela narrativa pode estar presente em qualquer momento da história. Poderia ser filmado em 2024 tranquilamente.
A pandemia nos leva para aquela época de 2020, mas no efeito estético, essa é uma história que poderia se passar há 20 anos atrás. Então a decisão do efeito preto e branco é a de tirar a temporalidade da história para dizer: “isso está acontecendo e não é de agora”. É a mensagem que queríamos passar.
No preto e branco também é possível criar unidade entre locações. O filme trata muito sobre preconceito geográfico. As casas que estão ao redor da comunidade ganham a mesma cara.
E também não é um preto e branco qualquer, na verdade, é um trabalho de pesquisa do Glauco Guigon, finalizador de cor, que há muito tempo pesquisa o preto e branco. Filmamos tudo na estética que ele desenhou para nós. Quando eu filmava com a Rita Albano, a diretora de fotografia, já tínhamos o filtro no monitor desse preto e branco especial para destacar os cenários e os personagens.
CN: Logo no início do filme, quando o casal chega na casa de Charles, a Conceição e o Carlinhos conversam sobre o isolamento. Ela diz como está difícil e ele responde “é, imagina sair dele…”. Eu fiquei pensando bastante nessa reflexão: agora, no pós-pandemia, o que o acesso a um filme como Mundo Novo representa para o Brasil de 2024?
AC: Falamos muito sobre progresso e evolução, mas qual é a natureza desse progresso?
A palavra chave do nosso filme é ‘sinceridade’, porque não tinha como não ser um filme sincero, devido às limitações da produção e da pandemia. Então, quando o personagem diz “imagina sair dele…” é porque aquele era um momento de paralisação. Aqueles que estavam sem perspectiva, ou com medo do futuro, se sentiam um pouco protegidos, porque tinham uma autorização social para ficar congelados no tempo. Mas assim que termina a pandemia, o mundo volta. E agora?
‘Mundo Novo’ foi escrito, em primeira instância, no começo da pandemia, naquele momento em que as pessoas tinham uma fé muito grande que o mundo depois disso tudo seria diferente e que entenderíamos, com muita sinceridade, que todas as diferenças sociais eram descabidas, que o planeta está morrendo, que não importa quanto dinheiro o sujeito tem, ele precisa ter cuidado para que epidemias não aconteçam. Tínhamos a esperança de que isso fosse um trauma que aceleraria certos processos de distribuição de renda. E isso não aconteceu. Estamos vendo o quão rápido esquecemos da pandemia, à medida que nos sentimos saudáveis e seguros. E o quão rápido descuidamos uns dos outros. Olha o Rio Grande do Sul. O quão rápido se descuidou do meio ambiente, culminando em outra calamidade pública.
Continuamos caminhando rápido para um movimento conservador de extrema direita e precisamos nos debruçar em cima disso e entender o porquê, mesmo depois de um trauma coletivo tão forte.
Existe uma dificuldade em revisitar com realismo o período da pandemia, porque isso gera gatilhos. Ao mesmo tempo, tenho a sensação de que não fizemos a posteriori da pandemia. Não sentamos para falar “atravessamos isso, perdemos muitas vidas, como fazemos para evitar daqui para frente?”. Parece que esse assunto saiu de debate e quando acontece de novo parece uma grande surpresa.
CN: De que forma o desmonte do setor cultural, feito pelo governo Bolsonaro, afetou a produção de cinema, na sua opinião? Quais são as perspectivas do setor nos próximos tempos?
AC: Acho um debate lindo para todo mundo, porque estamos vivendo um momento histórico. Eu devo a minha carreira inteira à Lei do Audiovisual, que regulou a TV a cabo. De lá pra cá, a tecnologia mudou, exigindo uma nova regulamentação e o governo anterior não regulamentou absolutamente nada dos players dos streamings. Hoje estamos no Congresso e na Câmara debatendo sobre como precisamos de uma regulamentação. Aparentemente vai sair, e o que estamos discutindo é qual é o caráter dessa regulamentação.
Isso é fundamental para que nós possamos escolher as nossas histórias e também escolher o volume de investimento, para que também não concentre toda a renda em poucos produtores que vão produzir mais para exportação do que importação.
E tem a ver com o nosso filme, porque quando filmamos em 2021, era o reverso disso. Não tinha recurso para absolutamente nada e é fácil fazer essa analogia: as pessoas literalmente arriscaram a vida para fazer o filme. E fizeram porque era uma necessidade fazer e era uma necessidade continuar atuando e comunicando. E agora que essa necessidade seja espelhada na regulamentação que está vindo, e aí sim, pode ser que venha uma nova Era de Ouro, que se for bem pensada, podemos ter um futuro mais interessante.
CN: Falando sobre referências, o filme ‘Adivinhe quem vem para jantar’, do diretor Stanley Kramer, foi lançado em uma época em que o movimento dos direitos civis estava ganhando força nos Estados Unidos. Em Mundo Novo, somos confrontados com a reflexão de que ‘o passado é um presente sem presença’. Pensando nisso, qual é a relação entre o filme de 67 com a narrativa de Conceição e Presto?
AC: Para mim é muito interessante, porque esse é o terceiro projeto seguido sobre racismo no qual eu faço parte. Eu tinha tido uma experiência muito rica na mesa de roteiro de ‘Spider’, série da Paramount, que era, com a minha exceção, uma sala 100% negra. Eu tenho um trabalho já de muita pesquisa e letramento, mas é engraçado como no nosso audiovisual, até poucos anos atrás, o racismo era registrado de forma americana, onde tudo é explicitado. Os americanos nos anos 60 não tinham medo de explicitar o racismo. E o Brasil vive essa falácia da democracia racial e de que não há racismo no Brasil, e há.
Nós precisamos fazer uma autocrítica da branquitude sobre como praticamos o racismo, que é dantesco, mas dentro de um micro lugar e que a gente insiste em ignorar.
Quando eu assisti ‘Adivinhe quem vem para jantar’, era tudo falado na cara. O personagem negro precisava ser um herói para ser respeitado. Ele era um médico que operava um monte de pessoas ao mesmo tempo, um gênio, como se para ter um lugar na mesa ele tinha que ser perfeito. O dono do jornal era de esquerda, mas expunha o racismo na cara. Tinha uma temperatura, que na minha visão de quem nasceu nos anos 80, parecia irreal. E como fazemos esse debate no Brasil?
Aí que foi importante o trabalho com o grupo Nós do Morro e o elenco maravilhoso que tivemos, porque muito desse roteiro é a mão das atrizes. Os relacionamentos afetivos e as ocupações de espaço foram trazidos e debatidos por elas durante os ensaios e as filmagens.
Acho que a negação do racismo passa por isso ao sempre fazer referência ao racismo caricato da novela e do cinema americano. Isso faz com que a autocrítica da classe média branca do Brasil seja meio preguiçosa, no sentido de que olhar para a criação que tiveram nos anos 80, 90 e 2000 te obriga a repensar seu gesto diário, porque você está carregando, sabendo ou não, um grau de preconceito muito grande nas relações afetivas, políticas e diárias. E é um processo que precisa ser discutido.
Para falar sobre racismo é necessário ter muita sinceridade, ter autocrítica e estar disposto a entender. Tem uma frase da Eliana Alves Cruz, que diz “o branco costuma se educar muito pelo constrangimento”, então esse constrangimento que nós criamos no filme é quase um “vamos abaixar a bola”, porque é um filme que pega mais no pé da classe média de esquerda progressista do que da direita. É fácil bater na direita, mas na esquerda é mais difícil por ter pouca autocrítica nesse lugar.
CN: Como foi pensada a construção das histórias individuais dos personagens, desde Conceição e Presto até seus irmãos que eventualmente se encontram em determinado momento do filme e demonstram um contraponto de personalidades?
AC: Muito trabalho de carpintaria nos ensaios. Para mim, era muito importante que ninguém fosse herói ou vilão, que todo mundo fosse um pouco dos dois e que a nossa capacidade de dialogar fosse explícita, porque carregamos muita coisa. Então tentamos trazer esses personagens para perto.
Existe essa mistura natural, de pautas, agendas, ressentimento. Era isso que interessava também. Como criamos um ambiente de muita segurança durante os ensaios, nós assumimos todas as nossas chagas que carregamos com a gente e acabamos misturando isso.
Os atores também colocaram muito das próprias relações ali. Eu, o elenco, nós tivemos relações interraciais. A galera do Vidigal também tem essa dicotomia muito clara do que é ocupar o morro e o asfalto. Eles têm uma clareza muito grande de que o sujeito que eles estão trabalhando pode ser alguém muito legal e ao mesmo tempo complicado, porque ele não tem o convívio com uma galera que não seja da própria bolha. Tudo isso foi colocado no texto.
Acho que dentro da autocritica da branquitude não existe apenas uma opinião de senso comum e no movimento negro não existe apenas uma voz. São milhares de vozes nesse espectro e que bom que seja assim, porque isso traz debate e conflito e trouxemos tudo isso. Não é para ser um filme necessariamente panfletário, é para ser um filme sincero.