Ex-presidente Lula cumpre pena em regime de exceção
Pouco mais de um mês após sua detenção, petista tem visitas restritas e expõe problemas na legislação e no sistema prisional.
Por Amanda Miranda e Lívia Vieira
Desde o dia 7 de abril de 2018, Luiz Inácio Lula da Silva está encarcerado na sede da Polícia Federal em Curitiba (PR), cidade onde corre o processo do triplex do Guarujá, que o condenou a 12 anos e um mês de reclusão. Se não fosse ex-presidente e ex-chefe das forças armadas, Lula poderia estar em uma penitenciária, em uma ala com réus primários e com condenados de baixa periculosidade, recebendo visitas dentro do regimento da sua unidade prisional, tal como indica a Lei de Execução Penal.
Por conta de sua projeção e notoriedade, o sistema foi obrigado a se readequar, criando uma série de exceções que, embora possam ser vistas como privilégios, sonegam direitos ao ex-presidente. Na avaliação do advogado criminalista Diego Eduardo Koprowski, especialista em execução penal, Lula não poderia cumprir pena em uma penitenciária comum, por questões de segurança. “O sistema não consegue garantir a integridade de uma pessoa comum, imagina de um ex-presidente. Podemos pegar como exemplo o sistema carcerário de Joinville: só este ano, seis pessoas foram mortas, mesmo com o monitoramento ostensivo dos agentes prisionais, sem contar casos de maus tratos e torturas que não são divulgados”, indica.
Esta é só uma primeira exceção em um processo que tem sido seguido de perto pela opinião pública, revelando mais sobre o judiciário do que sobre o condenado. “O que aconteceu com o ex-presidente é uma prova da seletividade do sistema de justiça penal. O sistema sempre seleciona quais crimes e quais atores serão investigados e punidos”, destaca Felipe Athayde Lins de Melo, doutorando e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Pesquisas sobre Violência e Administração de Conflitos.
O pesquisador, que também é membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília, acredita que não há como analisar questões relativas ao cumprimento da pena de Lula sem questionar todo o processo que resultou na sua condenação. “Houve um processo de perseguição política desde o início. A prisão é um espaço de confinamento de pessoas selecionadas para irem para aquele ambiente. Foi o que aconteceu com ele”, sintetiza.
Uma vez condenado, no entanto, ainda que se levantem argumentos acerca de uma possível perseguição política, o ex-presidente continua a ter direitos, comuns a todos os apenados, que pouco diferem dos direitos dos cidadãos, exceto pela restrição à liberdade. Entre esses direitos, estão o acesso à saúde, educação, amigos e familiares, possibilitando condições para sua ressocialização. O não cumprimento desses direitos pode ser encarado como um problema do sistema, mas também como uma excepcionalidade, dentre as tantas que marcam sua condenação.
Individualização ou exceção?
De acordo com Melo, ainda que o Direito se baseie numa igualdade formal entre as pessoas, a legislação prevê a individualização da execução penal, que distinguiria os condenados a partir de gênero, faixa etária e até do tipo de crime cometido. Isso faria com que cada apenado tivesse condições específicas para cumprir sua pena. “Mas esse princípio também não é respeitado, então você vê pessoas que cometeram crimes hediondos junto de pessoas que cometeram crimes mais leves”, pontua.
A contextualização é necessária para se afirmar que um ex-presidente teria direito a determinadas condições especiais no cumprimento de uma pena. “Mas nenhuma prisão é apropriada. Dizer que existe um local apropriado para isso é um equívoco”, garante, alertando que Lula estaria em um regime disciplinar diferenciado, sem convívio com demais detentos, com visitas e banhos de sol restritos.
O regime disciplinar diferenciado é mais uma exceção dentro da LEP e está previsto para presos que apresentem alto risco à ordem ou à segurança da unidade prisional ou, ainda, que estejam envolvidos com facções criminosas.
“Um regime de exceção não pode ser, nunca, um regime de cumprimento de pena. No caso de Lula, o que para muitos pode caracterizar um privilégio, uma condição especial, é um regime de exceção”.
O advogado criminalista Diego Koprowski, pós-graduado em Ciências Criminais, lembra que esse também é um problema que expõe a falta de estrutura do sistema prisional. “Qualquer prisão expõe os problemas do nosso sistema. Há uma falta de estrutura geral, e também de preparação e de aparelhamento para receber os chamados criminosos de colarinho branco”.
Em meio a este debate, a Superintendência da Polícia Federal, que também é um prédio administrativo, acabou ganhando ares de unidade prisional, a partir do mandato expedido pelo juiz Sergio Moro. Lá, o ex-presidente cumpre pena em um quarto de 15 metros quadrados, com banheiro. Há movimentos que reivindicam a remoção de Lula, alegando o alto custo de sua manutenção. A defesa do ex-presidente, por outro lado, pede que ele fique no local ou seja transferido para instalações militares nos arredores de São Paulo.
“Por que ele está custodiado lá? Porque não existe local adequado para ele ficar. Esta é a grande questão”.
“Não há condições mínimas para ele ir para um presídio ou penitenciária”, destaca Koprowski. A carceragem da PF legalmente não é uma unidade de cumprimento de pena. Essa é mais uma exceção imposta a todo esse processo, que criou uma série de dispositivos que só poderiam ter resultado na prisão de Lula”, afirma Melo.
Sistema não comporta ex-presidente
O debate sobre o local de cumprimento de pena do Lula traz à tona outras nuances do sistema prisional, dentre os quais parece existir um único consenso: o Estado não cumpre a lei que determina como as penas deverão ser efetivadas. Se cumprisse, na opinião de Koprowski, as penitenciárias poderiam seguir o padrão das penitenciárias federais, que no sistema brasileiro é formado por quatro unidades em funcionamento. Mas para Melo, elas são uma exceção. “Foram concebidas para ser o regime disciplinar diferenciado e, portanto, não podem ser o modelo, mas a exceção e o regime mais duro de cumprimento de pena”, pontua.
Essas penitenciárias foram criadas para receber lideranças de facções criminosas, detentos cumprindo pena por prática reiterada de crimes violentos ou ainda que tenham cometido ato de indisciplina na prisão. O site do Ministério da Justiça também indica que o sistema pode receber réus colaboradores presos ou delatores premiados. De acordo com Koprowski, a penitenciária federal segue à risca a LEP, com ala individual e arsenal de sobrevivência. “Fora ela, usada para presos específicos, o sistema é caótico. Há presos que são, inclusive, esquecidos no sistema mesmo com pena já cumprida”.
O ex-ministro José Dirceu chegou a cumprir um ano e nove meses da pena em uma outra unidade em Curitiba, o Complexo Médico Penal, onde também estão Eduardo Cunha, Sérgio Cabral e João Vaccari Neto. Em entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha de São Paulo, ele falou sobre o período de detenção: “Lá tá todo mundo na mesma m., entendeu? Há uma solidariedade. ‘Vamos evitar que o velhinho pegue sarna, vamos limpar a cela dele, vamos levar ele para tomar banho’. Se contamina uma cela, pode contaminar todas as 32 celas da galeria, com sarna, com pulga. Temos que cuidar para que todo mundo ferva a água”.
Para Melo, é inquestionável que um ex-presidente precisa de uma condição especial, que já estaria prevista pela legislação caso ela fosse cumprida, com suas alas separadas de acordo com o tipo de crime cometido, por exemplo. Essa condição, entretanto, não pode ser tratada como exceção ou tende a comprometer determinados direitos.
“É direito do preso receber a visita de familiares, cônjuge e amigos. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) confirma essa legislação, mas diz que esse direito será regulamentado pelas unidades administrativas”.
Segundo Melo, como não há, no Brasil, um modelo de gestão prisional nacional jurisdicionalizado, a Administração Penitenciária, que é de responsabilidade do poder executivo estadual, fica na dependência dos interesses e da visão de cada governante. Ele explica que essa mesma situação se repete, por analogia, ao caso do Lula: uma vez que não há regramento previsto para cumprimento de pena num prédio administrativo da PF, as decisões ficam sempre submetidas à interpretação da Vara de Execução Penal. “Ou seja, nesse balaio de gato, não há previsibilidade sobre o que pode ou não ocorrer. A única coisa que permanece e que pode ser observada em todo o país são as violações de direitos”, argumenta.
Essa condição promoveu mais uma exceção ao caso de Lula: como ele está em um local que não tem status de unidade prisional, quem faz a gestão da pena é a juíza de execução, responsável pela proibição da visita de amigos do ex-presidente com o argumento de manter a ordem no prédio da superintendência. “Trata-se de um regime de exceção, travestido pelo argumento de que Lula é uma pessoa pública”, diz Melo. “A juíza pegou uma prática da administração penitenciária e aplicou no caso do ex-presidente”.
Durante 27 dias, Lula recebeu visitas semanais apenas de sua família. Entre 10 e 30 de abril, a juíza substituta da 12ª Vara Federal de Curitiba Carolina Moura Lebbos emitiu sete despachos negando todos os pedidos de visita de amigos ao ex-presidente. A exceção foi a autorização à diligência da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, realizada em 17 do mesmo mês. Tiveram visitas negadas diversos políticos, parlamentares e representantes de centrais sindicais, tais como Eduardo Suplicy, Ciro Gomes, Luiz Marinho, Carlos Lupi, Paulo Pimenta e a ex-presidenta Dilma Rousseff, além do teólogo Leonardo Boff e do ganhador do prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel.
Quase um mês após ser detido, porém, Lula foi autorizado a receber duas pessoas que não sejam da sua família por semana, em horários fracionados. A magistrada decidiu que os pedidos de visita passariam a ser encaminhados à Polícia Federal, passando por análise judicial caso fossem negados, como ocorre com outros apenados.
“A decisão de restrição das visitas afrontou a Constituição e a LEP, que prevê o tratamento humanitário e o direito à visita em dia determinado. O juiz ou diretor da unidade podem limitar ou restringir a visita, mas tem de haver um fato específico para isso. Nesse caso, a restrição não é por conta de um fato, mas da pessoa do ex-presidente”, salienta Koprowski.
Ainda assim, no último dia 7 de maio, a juíza Carolina Lebbos negou a visita da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos do Parlamento do MERCOSUL (veja aqui o despacho).
Condenado ou provisório?
Uma outra polêmica com relação à detenção do ex-presidente diz respeito à sua prisão em segunda instância. Em debate exaustivo promovido no Supremo Tribunal Federal, os ministros decidiram, por 6 votos a 5, que condenados em segunda instância poderiam ser detidos, o que levou à quase imediata prisão do ex-presidente.
Para o advogado criminalista, trata-se de uma decisão que foi justificada pelos ministros como uma possibilidade de reduzir a impunidade para criminosos de colarinho branco. “Quiseram passar para a sociedade uma espécie de respaldo quanto à essa sensação de impunidade, pois já havia uma espécie de clamor social disseminado entre os juízes”, contextualiza.
De acordo com Koprowski esse novo entendimento engatilha uma outra polêmica. Isso porque, mesmo que os recursos não tenham sido esgotados, Lula já cumpre pena. Mas, para ele, em uma condição de preso provisório. “A regra do sistema processual penal brasileiro é a prisão após declarada a culpa em sentença transitado em julgado. A exceção aplica-se à prisão preventiva, portanto, a regra é a liberdade”, argumenta.
Segundo Melo, no entanto, uma vez que o STF decidiu pela prisão em segunda instância, Lula já é considerado condenado, ainda que não se tenha esgotado a fase de recursos. “Foi um ato a mais de seletividade, já que há mais de 40% de presos provisórios no país e um índice sequer calculado de presos em primeira instância. Essa decisão força a revisão dos processos dos mais de 700 mil presos no país”, afirma. Ainda de acordo com ele, o argumento de que as detenções em segunda instância diminuem a impunidade é falacioso. “Esta decisão tende a contribuir com a seletividade penal e com o encarceramento abusivo”.
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