Espero que esta te encontre e que estejas bem contra um país entristecido
Um filme de amor, primeiro longa-metragem de Natara Ney chega às salas de cinema para nos aliviar das durezas do Brasil.
Um filme de amor, primeiro longa-metragem de Natara Ney chega às salas de cinema para nos aliviar das durezas do Brasil.
Por Juliana Gusman para a Cine NINJA
Espero que esta te encontre e que estejas bem (2022), primeiro longa documental de Natara Ney, revela que nem só morte brota da terra vermelha de poeira e sangue do Mato Grosso do Sul. Filmes tão distintos quanto Madalena (Madiano Marcheti, 2021), Martírio (Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, 2017) e Tekoha (Carlos Adriano 2022), denunciaram a política da bala e porrada do reacionário Centro-Oeste do Brasil. Mas da aspereza do cerrado abrolhou o amor de Oswaldo e Lúcia, registrado em mais de uma centena de cartas datadas do começo dos anos 1950, encontradas por acaso pela diretora pernambucana na feira da Praça XV, no Rio de Janeiro, em 2011.
Esteja dito que esta obra que transcende geografias não se esquiva de escavar atravancos coletivos. Afinal, não há ternura que nos safe das nossas desigualdades de gênero mais evidentes. De qualquer maneira, Espero que esta te encontre…aposta em uma via distinta de mobilizações. Num país entristecido, a raiva e a indignação não bastam para energizar revoltas. Outros afetos, como a paixão de Oswaldo e Lúcia, também conseguem cativar revoluções.
O filme de Natara Ney se soma a uma forte tendência do documentarismo nacional, robustecida, em grande medida, pelo esforço e empenho de realizadoras mulheres. Diário de uma busca (Flávia Castro, 2011), Elena (Petra Costa, 2012), Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013), Morada (Joana Oliveira, 2013), Uma longa viagem (Lúcia Murat, 2012), Travessia (Safira Moreira, 2017) e os mais recentes Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2020) e Êxtase (Moara Passoni, 2020) são alguns exemplos ressoantes que exploram aflições particulares para reflexionar sobre questões sociais mais amplas. Não raro, empreendem investigações para sanar lacunas das realidades – às vezes autobiográficas – que almejam retratar, reparando, como sugere a pesquisadora Karla Holanda, as próprias omissões de representatividade da nossa cultura audiovisual, historicamente masculinizada e embranquecida.
Nesta toada, Espero que esta te encontre…ambiciona superar, em partes, o abismo de quase seis décadas que aparta a redação e a redescoberta das cartas de um casal desconhecido, a quem a diretora pretendia, com sorte, devolvê-las. A correspondência, na verdade, é uma textualidade bastante recorrente nesta filmografia diversamente feminina (e feminista). Ela foi uma forma primeira de expressão de mulheres com pretensões autorais, que constituíam, por meio dessas escrituras, tramas de compartilhamento e identificação mútua. A caligrafia caprichada de Lúcia exprime bem mais que as saudades que sentia de Oswaldo à época. Com uma qualidade arquivística, ela cravou em letra os resquícios de um tempo em que a economia do desejo era devagar e ruminante, e as angústias em torno de possíveis reciprocidades eram proporcionais à demora dos Correios.
A montagem fragmentada de Karen Akerman e Mair Tavares tenta figurar o trabalho tortuoso da memória e logra, como sugere Jean-Louis Comolli, fazer de vestígios indefiníveis “o vestígio de algo que nos dirá alguma coisa”. Às cartas, somam-se diferentes matérias de expressão – fotografias, películas, imagens de ruínas urbanas – alinhavadas por depoimentos de gente comum. Nem todas as personagens auxiliam Natara na sua procura por Lúcia e Oswaldo, mas ninguém exatamente a desvia desse encontro. Com um dispositivo relativamente simples – partilhar as relíquias do casal com outras pessoas –, Natara engorda afabilidades e coleciona as vírgulas que adiam, positivamente, o arremate do filme, já que, das leituras, ramificam-se novas histórias de amor. Com um gesto ensaístico, a diretora também mergulha nessas afluências, trazendo para a urdidura da obra entraves ora íntimos, ora cinematográficos.
Natara opta por não identificar os entrevistados e entrevistadas que preenchem (insuficientemente) as brechas do documentário com seus próprios relatos, uma escolha feliz que amplifica capacidade metonímica – e completamente apaixonante – da narrativa. Natara traça uma bonita paisagem humana, que não nos deixa esmaecer diante das atuais adversidades. Há de se acreditar no poder restaurador de uma caneta em punho e no poder curativo de uma câmera na mão. Estávamos carecendo desse acalento.
Espero que esta te encontre e que estejas bem estreou na tela grande neste mês de junho, em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre, Manaus, Campo Grande, Brasília, Belo Horizonte, Balneário Camboriú e Aracaju. É um filme para se ver com a sala cheia e a brandura aquinhoada. Afinal, o cinema sempre fertilizou aconchegos, não podemos esquecer. Mais do que nunca, para estarmos bem, precisamos estar juntos.