Por Kaio Phelipe

Conhecido por trabalhos como a série Boca a boca e os filmes Verlust, Alguma Coisa Assim e Os Famosos e os Duendes da Morte, atualmente Esmir Filho está em cartaz nos cinemas com o filme Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso. 

O filme conta como Ney Matogrosso agiu em momentos decisivos para o país, como a ditadura militar e a epidemia da aids. Também podemos assistir a relação dele com Cazuza e outros de seus amores. Estrelado por Jesuíta Barbosa, Homem com H narra a história de um dos maiores cantores do Brasil e mostra como tudo o que viveu constitui também a sua arte. A cinebiografia dirigida por Esmir não é apenas um retrato cronológico da vida do cantor, mas uma investigação estética e emocional sobre sua potência cênica, suas rupturas e o impacto de sua existência nos imaginários de várias gerações.

Nesta entrevista, Esmir compartilha como o fascínio por Ney nasceu ainda na infância, a partir da escuta ao lado da mãe, e foi se transformando em um encantamento pela expressividade corporal e vocal do artista. Ele descreve o processo de pesquisa e criação do filme como um mergulho sensorial em sua discografia e trajetória, revelando como os números musicais se tornaram o eixo central da narrativa cinematográfica. Para Esmir, Ney é mais do que um personagem: é um símbolo da liberdade de ser, de dançar, de desejar – algo que reverbera com força em sua obra como cineasta.

Confira a entrevista completa:

Foto: Sergio Santoian

Quando começou seu interesse na arte do Ney?

    Feito muitas pessoas, conheci o Ney através da minha mãe. Acho que muita gente tem essa história: a mãe escutava muito, e aí naturalmente você começa a gostar.

    Inicialmente, ouvir o Ney me causava um assombro. Um lugar que não era de estranheza, mas é como se o Ney estivesse se comunicando intimamente comigo sobre coisas que eu ainda descobriria em relação a mim. Então lembro que o Ney representava o assombro de um mistério que me envolvia.

    A primeira vez que vi o Ney no palco foi cantando Cartola. Lembro que as pessoas ficavam gritando e pedindo pra ele dançar, porque o Ney não estava dançando. Era só violão. No palco, eu o conheci dessa maneira.

    Mas lembro também de um show que me marcou muito. Ele já estava na casa dos setenta anos, na turnê Inclassificáveis, e dançava e pulava muito. Isso me causou uma euforia: um homem de setenta anos cantando, dançando, cheio de movimento.

    O Ney sempre foi uma expressão corporal muita viva, alguém que me encantava e enchia meus olhos com a arte.

    Sempre gostei de muitas músicas dele, mas realmente conheci sua obra inteira com o filme e mergulhei na discografia. Para se ter uma ideia, a primeira coisa que fiz quando recebi o convite da Paris Filmes e falei que iria escrever e dirigir o filme, foi ouvir toda a discografia do Ney Matogrosso em ordem cronológica. Eu queria conhecer o artista, ver o que ele escolheu cantar conforme sua trajetória ia evoluindo. Foi maravilhoso! Eu ficava ouvindo as músicas e fazendo uma pré-seleção. A música dele fundou o filme. Os números musicais são a coluna vertebral do filme. 

    O Ney é um artista de palco. Diferentemente de outros artistas que entram em turnê depois de lançar um álbum, ele testa a música no palco. Ele canta, faz turnê, depois faz o álbum. O palco é muito importante pro Ney. Ele sempre foi um artista dramático. A pesquisa para o filme começou por esse viés.

    Como foi receber o convite da Paris Filmes?

      O convite veio de uma produtora chamada Renata Rezende, ela trabalhava na Paris Filmes na época. E eu acho que o lance é que a Renata tinha visto filmes meus e achava que a história do Ney dialogava com a minha abordagem no cinema.

      E ela tinha razão, porque quando recebi o convite, e comecei a pensar e a me debruçar em quem é o Ney Matogrosso, eu via que a trajetória dele discutia temas que eu já trabalhava no audiovisual: pulsão de cor, desejo, expressividade, luta contra figuras autoritárias. Também trabalhei bastante relações afetivas, possibilidades, pais e filhos. Muitas dessas questões estão presentes na vida do Ney. É como se essa história fosse um presente para eu contar. Eu precisava fazer esse filme porque foi um presente que chegou em minhas mãos.

      Foto: Sergio Santoian

      O cinema é uma ferramenta importante para discutir sobre sexualidade?

        É importante trabalhar esse assunto com naturalidade. Nós somos seres que convivem um com os outros, e convivemos com as diferenças que temos. Não há território específico para cada tipo de pessoa. O Brasil é um país plural em classe, raça, gênero, sexualidade, e precisamos entender que é natural a convivência entre pessoas. 

        A beleza de Homem com H é mostrar que estamos juntos e precisamos de acolhimento mútuo. A mesma figura de autoridade, no caso do filme é a figura paterna, em uma das primeiras falas, diz ao filho para aprender a ser homem. O que isso quer dizer? O que é aprender a ser homem? A gente sabe que a masculinidade pode ser opressora a muitos corpos, porque invoca padrões a ser seguidos, indica um manual de comportamento pra ser homem. É bonito retratar o Ney, e também a outras figuras que já trabalhei no cinema, que é avesso a essa coreografia do senso comum.

        O Ney vem cantar Homem com H, porque mesmo com todo o deboche da interpretação, mesmo satirizando a coreografia do masculino do senso comum, ele vem dizer “Olha, eu sou homem com H também, e eu canto dessa forma, eu danço dessa forma, eu rebolo dessa forma, eu desejo dessa forma, eu existo dessa forma”. 

        Então, para mim, é importante discutir sobre sexualidade enquanto existência, enquanto convívio.

        Quando coloco pai e filho se entendendo, mostro um arco afetivo muito bonito na história, que começa com “você tem que aprender a ser homem” e termina com o pai reconhecendo que o filho é um grande artista. É isso o que me interessa: o acolhimento dos corpos.

        Como chegou ao nome do Jesuíta Barbosa para interpretar o Ney Matogrosso?

          Na minha cabeça, o Jesuíta era o óbvio. Quando eu falava que estava escrevendo a cinebiografia do Ney Matogrosso, muitas pessoas perguntavam se seria o Jesuíta. Já estava no imaginário coletivo. Interessante, né? 

          Eles exalam o mesmo perfume. São dois seres muito reservados na vida íntima, e ao mesmo tempo explosivos em cena e no palco.

          O Jesuíta é muito íntegro e muito franco, o Ney também. Eles não possuem papas na língua e se expressam de uma maneira muito objetiva. Acho que é franqueza mesmo. Os dois possuem uma sinceridade muito grande na forma como encaram a vida.

          A construção do personagem mesmo se deu quando a gente começou a moldar o Jesuíta através de voz, canto, corpo, ensaio e nutrição – ele perdeu doze quilos para interpretar o papel. Foi todo um processo antes de chegar ao set, mas que começou com esse perfume que os dois exalam.

          Não tinha como não ser o Jesuíta, o papel era pra ele. 

          Foto: Sergio Santoian

          Existe diferença entre fazer um filme de ficção e uma cinebiografia?

            Normalmente, se vou fazer um roteiro original, procuro desenhar um arco dramático que conte a trajetória desse personagem. Mas, nesse caso, existe alguém que viveu essas situações. Tive que fazer o arco dramático a partir de fatos vividos pelo Ney.

            Fui muito sincero com o Ney ao dizer que levaríamos em consideração todos os eventos que ele viveu, mas que eu precisaria construir um roteiro preenchendo lacunas. Como em um filme a gente trata de imagem e som, existe um diálogo sendo desenhado e personagens em determinadas situações. Muitas das coisas que ele me contava ou encontrava em pesquisas, eu tentava construir narrativamente. Recebi permissão do Ney para que eu preenchesse essas lacunas com simbolismo ou com cenas construídas a partir da minha compreensão sobre o universo dele.

            Deixei muito claro ao Ney que existia a interferência do meu olhar sobre a vida dele, e disse que eu queria que ele estivesse junto para colaborar e trazer textura. Foi exatamente isso o que ele fez. Ele deu textura para a narrativa, deu muitos detalhes preciosos. Conforme eu ia construindo, ia mostrando a ele, e ele sempre voltava com coisas lindas, que colaboraram muito. E também passou longe do crivo, porque ele não estava aprovando ou desaprovando nada. Ele estava jogando junto. E foi muito generoso. A melhor coisa que poderia ter acontecido foi ter o Ney tão perto de mim. Estar próximo do Ney Matogrosso só me ajudou nesse desafio.