Escritora Kiusam de Oliveira afirma: “A abolição da escravidão no Brasil é uma farsa”
Doutora em Educação e Mestre em Psicologia Escolar pela USP examina as consequências do fim da escravidão para a população afro-brasileira.
“Ao traçar uma linha do tempo pensando nos negros que chegaram no Brasil a força, violentamente escravizados, conseguimos perceber que existe uma sistemática em termos de ações em que os grilhões, as máscaras de flandes, os chicotes, as balas, as espingardas, as garruchas e os revólveres sempre estiveram apontados para negros e negras e assim continua sendo com novas roupagens e cada vez mais estilizadas, mas sempre fundamentados em suas bases racistas” é assim que começa a análise da escritora Kiusam de Oliveira sobre um dos capítulos de terror da história do Brasil, os 350 anos de escravidão. Para ela, esta data é um engodo, e não há como não fazer uma leitura extremamente crítica, porque ele nos jogou diretamente ao precipício.
Kiusam de Oliveira autora dos livros Omo-Oba: Histórias de Princesas (Mazza Edições, 2009) com ilustrações de Josias Marinho, O mundo no Black Power de Tayó (Editora Peiropolis, 2013) e O mar que Banha a Ilha de Goré (Editora Peiropolis, 2015) ambos com ilustrações de Taisa Borges e O Black Power de Akin (Editora de Cultura, 2020) com ilustrações de Rodrigo Andrade, realizou uma análise histórica em que disseca os fatores políticos e sociais daquele período no qual resultou na conjuntura em que vivemos.
A Lei Áurea é também conhecida tecnicamente como Lei Imperial n.º 3.353 em que culminou com a extinção da escravidão no Brasil em 1888. Este diploma legal após 132 anos ainda produz debates sob a luz das decisões políticas em que envolviam milhões de negros e negras residindo no país e as consequências destas escolhas. O Estado brasileiro daquele período tratou 350 anos de escravidão com apenas dois artigos, o que demonstra a falta de diligência quanto a população alforriada, como por exemplo, no primeiro artigo da Lei Áurea em que diz “Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil” e como no segundo artigo em que diz “Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.”
Para a escritora, Doutora em Educação na área de concentração Cultura, Organização e Educação pela USP o ato em que encerrou o período escravista no Brasil tem sentido desumano, pois assim os negros eram entendidos, mas não só: o caráter político desta ação está também, no extermínio da população negra, por não pensar políticas públicas voltadas ao acolhimento de tantos negros e negras de diversas idades. O que torna a decisão de abolir a escravidão no Brasil da maneira que fora posta, mais que perversidade, a além de um tipo de política que hoje conhecemos conceitualmente como necropolítica. “Eu especificamente afirmo que a abolição tal e qual ela se deu também deveria ser considerada um crime de lesa-humanidade, porque nos jogou no abismo que nos encontramos até hoje, em que há um descaso total com negros e negras que constituem esse país. A abolição do jeito em que ela se deu, pode ser considerada uma outra etapa da necropolítica, isto é, política em que o Estado decide quem deve e pode morrer em uma sociedade: a abolição pautada em apenas dois artigos jogou a população negra da época, no abismo da loucura e da miséria, pensando exatamente em seu extermínio”.
Tratar três séculos e meio de escravidão com uma lei abolicionista em que em seu rolamento não há um conjunto de normas e diretrizes, em que pensem políticas públicas de inserção ou uma rede de proteção, a milhões de negros e negras que só conheciam até aquele momento, a vida em cativeiro confirma o diagnóstico da literata. A partir deste cenário, podemos constatar que os representantes políticos da época também desenvolveram políticas de Estado voltadas à mudança da fotografia demográfica do país. O Brasil além de literalmente dar um pedaço de terra, depois de cinco anos de trabalho nas fazendas, a imigrantes europeus, incentivou o embranquecimento da população por meio de uma educação eugenista.
Podemos observar traços da perspectiva eugênica na sociedade daquele período, como por exemplo em trecho de um texto publicado em 1911 pelo antropólogo brasileiro João Baptista Lacerda em que diz o seguinte: “A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro.”
Para Kiusam, as políticas de subvenção em que incentivaram os imigrantes europeus, inclusive a terem filhos em território brasileiro, são face de um regime de extermínio em que contribuiu com a política de embranquecimento do país, enquanto para negros e negras, não haviam estas políticas de auxílio. “Os descendentes de africanos no Brasil não tiveram a oportunidade de se integrarem ao novo modelo econômico estabelecido: deram duro e construíram esse país por três séculos e meio sem a menor possibilidade de receberem, em troca, um pedaço de terra nos territórios onde trabalharam arando e cultivando o solo, dotando as infâncias brancas de dengos e muita sensibilidade, revolucionando as tecnologias no país, uma vez que estamos falando de pessoas oriundas do continente africano, O Berço da Humanidade. Portanto, os africanos aqui chegaram dominando técnicas que fundamentam, até hoje, as engenharias civil, elétrica, de produção, ambiental e muito mais”.
Em 1933 é lançado o livro Casagrande e Senzala, em que este teve alcance positivo na sociedade daquele período, pautando e intensificando a narrativa de democracia racial. No livro é apresentado um modelo de Brasil como uma espécie de harmonia entre povos. Florestan Fernandes, sociólogo, em seus estudos em São Paulo, mostrou que na verdade o brasileiro tinha um tipo muito particular de racismo, “o preconceito de ter preconceito”, o que significa um estado de negação, em que o indivíduo tem dificuldade de reconhecer, a reprodução de um discurso ou de um comportamento preconceituoso.
Perguntado à Kiusam como o Estado brasileiro poderia desenvolver estratégias e políticas públicas em que seja fomentada a mudança de mentalidade racial no país, a escritora é enfática em sua resposta: “Eu não acredito em mudanças que venham de cima para baixo, deslegitimando os conhecimentos e os anseios da população. As mudanças devem se dar num processo dialógico, de trocas entre os governos municipal, estadual e federal e quando isso não acontece, as mudanças deverão se dar de baixo para cima, isto é, através das manifestações populares. O povo… sempre o povo! Todos os processos de conquistas no campo da política se deram a partir da mobilização da população, não o contrário”.
Então, se a transformação do ideário social brasileiro depende de uma mobilização coletiva, todas as esferas da sociedade têm a responsabilidade de contribuir para com a mudança da mentalidade quanto às relações raciais no país. A escritora busca por meio de sua produção literária colaborar com um novo Brasil menos preconceituoso e mais igualitário.
Em seu novo livro O Black Power de Akin (Editora de Cultura, 2020) com ilustrações de Rodrigo Andrade, Kiusam conta a história em que qualquer negro ou negra poderá se identificar. O livro traz a narrativa da influência da ancestralidade na vida de um jovem negro ou de uma jovem negra, para a autoafirmação enquanto indivíduo. E a pertinência desta temática, não se dá somente pela importância constitutiva do assunto, mas também por fazer parte, de maneira inerente da vida de Kiusam, a começar por seu nome de origem Iorubá, idioma da família linguística nígero-congolesa e que significa Rainha da Noite.