Por Nathália Shizuka

Marilyn Monroe dos detentos, anormal,  invertido sexual, famigerado travesti. Era assim que a polícia e a imprensa se referiam a Cintura Fina, percursora na luta pelos direitos LGBTQIAP+ em Belo Horizonte.

Nascida em 1933, em Fortaleza, Ceará, Cintura Fina mudou-se para Belo Horizonte aos 20 anos, em 1953. Negra e travesti, ela rapidamente se destacou na cidade. Seu apelido, inspirado nos versos da canção de Luiz Gonzaga, foi conquistado quando ainda morava no Nordeste: em 1950, fazia sucesso o baião composto por Zé Dantas e Luiz Gonzaga e popularizado na voz do próprio Gonzaga: “Vem cá, cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá meu coração”. Os versos combinavam com a jovem “negra, magra, quadril acinturado, 1,74 metro de altura, olhos e cabelos castanhos”. Em um documentário, Cintura Fina chega a afirmar que havia inspirado o baião, algo que Gonzagão negou.

Na adolescência, entrou no seminário e se apaixonou por dois colegas, que eram primos, Provavelmente “descoberta e envergonhada”, Cintura Fina evitou voltar para a casa das tias e passou a morar na zona de meretrício de Fortaleza, conhecida como Curral das Éguas. Em seguida, mudou-se para Natal (RN), onde também se fixou em uma área de prostituição, enfrentando perseguição e violência policial. Depois, passou por Recife e Salvador antes de se estabelecer em Belo Horizonte, onde viveu de 1953 a 1980, maior parte da sua vida, circulando também pelo Rio de Janeiro e Uberaba, no Triângulo Mineiro. Em Uberaba, viveu por 15 anos até seu falecimento em 18 de fevereiro de 1995, aos 62 anos.

Odiada por uns, defensora de outros

Cintura Fina desempenhou diversos papéis na sociedade, incluindo cozinheira, faxineira, lavadeira, gerente de pensão, profissional do sexo, alfaiate, cabeleireira e gari. Trabalhou e trabalhou muito, mas virou figurinha carimbada pela polícia porque sua existência incomodava. 

Em uma época em que a homofobia era ainda mais cruel, Cintura Fina precisava se defender e defender os seus, e o fez. Ficou conhecida por sua habilidade em manejar uma navalha, que carregava na cintura como ferramenta de autodefesa. Ela não apenas se protegia, mas também defendia pessoas marginalizadas, muitas vezes intervindo em situações de violência e abuso.

Cintura Fina – JM 08-08-1972 / Reprodução

Luta contra a violência 

Além de enfrentar a violência da polícia e da sociedade, Cintura Fina também lidava com as dificuldades do cotidiano das travestis na época. Frequentemente, ela era detida por desacato ou envolvimento em brigas, sempre tentando proteger a si mesma e aos outros. Ela enfrentou frequentes ataques da polícia e, em autodefesa, habilmente usava uma navalha, resultando em 11 inquéritos policiais por furto e lesão corporal.

Por isso, se tornou uma figura temida e respeitada, acumulando histórias de coragem que se tornaram parte do folclore urbano de Belo Horizonte.

Sua presença nas ruas de Belo Horizonte, com maquiagem, seios postiços, brincos, pulseiras e calças justas, foi o que ficou no imaginário da população, uma constante lembrança de que as pessoas LGBTQIA+ existiam e resistiam, mesmo diante da violência e do preconceito.

Série de passagens pela polícia e múltiplas profissões marcaram a história de Cintura Fina. Foto: Divugação

Reconhecimento na sociedade

Em 2021, Cintura Fina foi homenageada com o reconhecimento oficial como cidadã honorária de Belo Horizonte. Foi um marco significativo, celebrando sua luta e impacto social. Sua história virou livro, com a biografia “Enverga, Mas Não Quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”, escrita pelo pesquisador Luiz Morando. O livro oferece uma narrativa rica e detalhada de sua vida, desmistificando vários aspectos de sua trajetória e finalmente humanizando uma personalidade que foi tão marginalizada pela sociedade.

Capa do Livro “Enverga Mas Não Quebra”, Foto: Divulgação

Além disso, um pouco da história de Cintura Fina se popularizou através da minissérie “Hilda Furacão”, baseada no romance de Roberto Drummond. Na série, um personagem inspirado nela foi interpretado por Matheus Nachtergaele, trazendo maior visibilidade à sua história e destacando as dificuldades enfrentadas pelas travestis na época.

Últimos Anos 

Depois de deixar Belo Horizonte no início dos anos 1980, Cintura Fina se mudou para Uberaba, onde viveu até sua morte em 1995. Sua vida foi marcada por inúmeras batalhas pessoais e sociais, mas sua força continua a inspirar.