Por Juliana Gomes

Há filmes que atravessam o tempo não apenas por sobrevivência, mas por metamorfose. “O Beijo da Mulher-Aranha” é um desses — um feitiço que muda de corpo, mas mantém a alma. Em 1985, Héctor Babenco filmou o amor, o medo e a resistência dentro de uma cela úmida e sombria. Quase quarenta anos depois, Bill Condon reacende esse mesmo feitiço, mas com brilho de musical, voz de Jennifer Lopez.

O filme de 1985: o cárcere e o consolo da imaginação

Dirigido por Babenco e adaptado do romance de Manuel Puig, “O Beijo da Mulher-Aranha” nasce no coração da ditadura militar brasileira.

A história se passa dentro de uma prisão, onde dois homens compartilham o mesmo espaço e o mesmo vazio: Valentín Arregui, um revolucionário de esquerda interpretado por Raul Júlia, e Luis Molina, um homem gay e apolítico vivido por William Hurt.

O encontro entre eles é, antes de tudo, um embate entre mundos. Valentín carrega as feridas de um corpo torturado pelo regime; Molina carrega a leveza de quem sobrevive pela fantasia. Para escapar da dureza da prisão, Molina reconstrói na mente os filmes que ama — melodramas românticos e propagandistas, estrelados por uma diva misteriosa, uma mulher-aranha que enfeitiça e mata com o mesmo gesto.

Essa mulher imaginária é Sônia Braga, que, sem falar inglês (na época), decorou cada fala foneticamente, num exercício de pura entrega. A atuação de Sônia é puro encantamento. Sua mulher-aranha não canta: ela existe entre silêncios e desejo. O magnetismo dela nasce do olhar e da expressão. Babenco filma tudo com sobriedade: corpos exaustos, diálogos longos, luz filtrada por grades. E é nessa contenção que o filme encontra seu poder.

O longa foi rodado em São Paulo entre 1983 e 1984, produzido de forma independente. Estreou em Cannes em 1985, onde William Hurt venceu o prêmio de Melhor Ator e depois repetiu o feito no Oscar.

Mas, mais do que prêmios, o que permanece é o gesto: um filme sobre amor e liberdade dentro do inferno. Molina e Valentín, no fundo, representam duas formas de resistência — a do corpo político e a da alma sonhadora.

A adaptação de 2025: a cela que vira palco

Quase quatro décadas depois, “O Beijo da Mulher-Aranha” ganha nova vida. A versão de 2025, dirigida por Bill Condon, parte da adaptação musical da Broadway e traz Jennifer Lopez, Diego Luna e Tonatiuh nos papéis principais. A história continua situada na Argentina de 1983, às vésperas do fim da ditadura militar, mas agora a brutalidade do cárcere se mistura à grandiosidade dos números musicais.

O núcleo permanece o mesmo: dois prisioneiros, um revolucionário e um sonhador, entrelaçados pela solidão e pelo desejo. Mas aqui, a imaginação ganha outra textura. As fantasias de Molina se materializam em cenas de dança, figurinos exuberantes e canções que atravessam a parede da prisão.

A mulher-aranha de Jennifer Lopez é puro espetáculo — não mais uma miragem, mas uma entidade viva, dona do palco e do olhar. E essa escolha é, ao mesmo tempo, ousada e simbólica. Jennifer Lopez, mulher latina, cantora e ícone pop, carrega consigo a herança do corpo que dança, do som que liberta, do glamour que desafia o peso da cela.

Sônia foi a mulher-aranha que brotou da dor; Jennifer é a mulher-aranha que nasce da criação — e ambas, cada uma à sua maneira, representam o poder do imaginário como refúgio e resistência.

Do cárcere à catarse

Os dois filmes, separados por gerações, continuam orbitando o mesmo tema: o poder da imaginação como forma de liberdade. Em 1985, sonhar era sobreviver. Em 2025, sonhar é reivindicar o direito de existir com voz, cor e movimento. A nova versão abraça o formato musical e expande o que antes era subtexto — a homossexualidade, o desejo, a sensibilidade. Onde o filme de Babenco sussurrava, Condon canta.

E se há quem sinta falta da densidade silenciosa do original, há também quem se encante com a ousadia de transformar dor em espetáculo. Mas, no fundo, o gesto é o mesmo: Molina continua inventando beleza onde só há cinza.

E é por isso que “O Beijo da Mulher-Aranha”, seja em 1985, seja em 2025, é um filme sobre o poder de criar mundos quando o nosso se torna insuportável.

Entre Sônia e Jennifer, o mesmo feitiço

Comparar Sônia Braga e Jennifer Lopez é comparar duas eras do feminino no cinema. Ambas são, de formas diferentes, o símbolo de uma arte que resiste — uma que se faz no escuro e fumaça, e a outra sob o holofote.

No fim, o “beijo” da mulher-aranha continua o mesmo: é o beijo entre real e sonho, entre o corpo preso e a alma livre, entre a arte e a vida. E talvez seja esse o segredo de sua permanência: ele muda de rosto, mas nunca de intenção.