Por Hyader Epaminondas

Em “Como Fotografar um Fantasma”, Charlie Kaufman parece finalmente filmar aquilo que sempre perseguiu: a falha entre o pensamento e o sentir. A sua parceria com os roteiros de Eva H.D. se mostra crucial para conseguir capturar esse instante mais singular que qualquer singularidade. Esse espaço de suspensão é o verdadeiro “intervalo” de sua filmografia, o momento em que o sujeito percebe que está vivo, mas não sabe mais o que fazer com a vida.

Aqui, aquele vazio que existe entre o que sentimos e o que conseguimos dizer se manifesta como um vão impossível de ser representado, a ferida aberta entre desejo e linguagem. O fantasma se torna a própria metáfora do Real: aquilo que insiste, retorna e escapa de toda tentativa de captura. Filmá-lo é tentar dar forma a algo sem corpo, sentido ou contorno.

O Simbólico aparece como o mecanismo que estrutura o luto. As palavras, as fotografias, os rituais, tudo o que os personagens constroem e tentam, sem sucesso, reconstruir é uma tentativa de reordenar o caos, de inscrever a perda em alguma narrativa. Kaufman, contudo, demonstra que toda simbolização é um fracasso: a tradução da ausência jamais preenche o que se foi.

O curta se move no impasse entre significar e aceitar o silêncio, enquanto a narração da própria Eva indica o percurso. O tradutor vive nesse território: ele traduz, mas nunca diz, gesto lacaniano por excelência, a consciência de que o sentido é sempre um desvio e de que o sujeito só existe no intervalo entre o que diz e o que sente.

O Imaginário se revela no modo como Kaufman compõe o amor como projeção, como reflexo do próprio desamparo. Em “Anomalisa”, Michael Stone encontra Lisa e acredita que ela é a exceção. Kaufman literaliza essa monotonia, fazendo com que todos os personagens, homens e mulheres, compartilhem a mesma voz.

A entrada de Lisa rompe a monotonia, seu timbre é um rasgo sonoro, quase uma epifania, o som do desejo tentando escapar da repetição. Mas esse instante é apenas um delírio momentâneo. Michael não se apaixona por ela, e sim pela anomalia que ela representa. O verdadeiro drama é que ele já não sabe se conectar com ninguém, perdeu a capacidade de ver o outro fora de si mesmo.

O amor, em Kaufman, é um espelho rachado que devolve o desejo de viver, mas lembra que nunca tocaremos o outro de fato. “Como Fotografar um Fantasma” é o desdobramento dessa ferida: é o amor sem corpo, o espelho depois da quebra.

Se pensarmos ambos os filmes como dois estágios da mesma neurose, “Anomalisa” como o sonho e “Como Fotografar um Fantasma” como o despertar, percebemos que Kaufman reconfigura o cinema como análise. Ele nos coloca diante de nossos próprios fantasmas e nos obriga a confrontar a repetição do desejo.

O tédio de Michael Stone é o mesmo que a fotógrafa sente como condenação: a impossibilidade de viver o presente porque o sujeito está preso ao circuito de significantes que o precedem.

O gesto de Kaufman é profundamente ético: ele não oferece cura, mas escuta. Sua câmera se recusa a exorcizar o fantasma, prefere deixá-lo existir, respirando entre as imagens até seu momento de compreensão, em direção à cura de forma orgânica. O cinema se torna um consultório, e o público, o analisante que tenta dar forma ao seu próprio vazio.

Filmando fantasmas, Kaufman filma a falta, a estrutura invisível que sustenta o desejo humano. E é nesse ponto que sua obra atinge o sublime: ao revelar que a arte, assim como a vida, é sempre ensaio de algo que não se completa, um eco que insiste em permanecer mesmo depois do silêncio.

No curta, Kaufman transforma o cotidiano em exercício de ontologia. A fotógrafa, indagadora e curiosa, tenta registrar o agora pelas lentes, mas falha em viver o momento. Seu gesto é o da consciência pura: observa tudo, registra tudo, mas não participa. O tradutor introvertido carrega um amor não realizado, preso em um idioma emocional que já perdeu o sentido. Entre eles, há um silêncio que não é ausência de som, mas excesso de consciência.

Essa dualidade compõe o coração simbólico do curta: ela traduz o Imaginário, a ilusão de controle pela imagem; ele encarna o Simbólico, sujeito prisioneiro da linguagem e do passado. Ambos orbitam o Real, lugar inominável onde desejo e perda se confundem. A câmera de Kaufman não tenta aproximá-los, observa o espaço entre eles, o intervalo que impede o toque e, ao mesmo tempo, o torna necessário.

Ao fotografar uns fantasmas, ela busca provar que o instante existe. Ele, ao traduzir o indizível, tenta dar forma ao que já não pode ser dito. São dois modos de lutar contra o esquecimento, dois rituais de resistência diante da morte simbólica do presente. No entanto, ambos fracassam, e é nesse fracasso que Kaufman encontra a beleza. O que está em jogo não é o sucesso da captura, mas o reconhecimento de que toda tentativa de apreender o real é, em essência, um ato de amor condenado.

A fotógrafa olha para fora para compreender o dentro, enquanto o tradutor olha para dentro para compreender o fora. Entre eles flui o que Lacan chamaria de furo do simbólico, o buraco em torno do qual a linguagem gira, impotente, tentando costurar o que o desejo rasga. O fantasma não é o outro nem o passado, e sim o próprio sujeito tentando existir diante daquilo que não pode entender.

O Cinema da Falha e do Intervalo

Kaufman, em sua maturidade, filma não a vida, mas a impossibilidade de estar plenamente nela. Seus personagens habitam o limiar entre presença e ausência, entre o “foi” e o “ainda é”. Como em “Anomalisa”, o cinema se torna dispositivo de transferência: a tela é o divã e o público é quem sonha acordado no escurinho do cinema, tentando reconhecer nos gestos dos personagens o eco de uma falta que também é sua.

No encontro simbólico entre a fotógrafa e o tradutor, Kaufman revela que existir é sempre habitar o intervalo entre desejo e impossibilidade. O Real se impõe como fantasma que não se deixa capturar; o Simbólico, como linguagem que organiza e fracassa; o Imaginário, como projeção de uma completude que jamais chega. “Como Fotografar um Fantasma” e “Anomalisa” se complementam nesse duplo: um mostra o que seria da solidão sem o outro; o outro, o que se torna possível quando se permite conhecer alguém que rompe a repetição, o que, na animação, nunca acontece com Michael.

No cinema de Kaufman, o presente é simultaneamente vivido, registrado e perdido; o instante é impossível de reter, mas sua captura, ainda que falha, é o gesto mais profundo de resistência e amor que podemos oferecer. Entre fantasmas e anomalias, aprendemos, inconscientemente de forma consciente, que a vida nunca se resume ao que se vê ou entende, mas ao espaço que deixamos para o silêncio, para o outro e para aquilo que nunca teremos coragem de tocar.