Por Hyader Epaminondas

O vermelho é a cor que pulsa em cada plano de “Enterre Seus Mortos”. Marco Dutra dirige essa adaptação do livro de Ana Paula Maia aos trancos e barrancos, não só pelos corpos que se acumulam, mas pela atmosfera que se contamina de dentro para fora com um elenco forte que acredita de verdade na profundidade dessa história. Há algo febril na forma como a cor invade a tela, como se o sangue já tivesse transbordado para o próprio ar. O vermelho não é apenas cor, mas estado espiritual, prenúncio do fim e matéria simbólica de um mundo à beira do juízo final.

A cidade de Abalurdes, onde se passa a história, parece existir entre dois tempos: o da carne que apodrece e o da alma que espera julgamento. Em ambos, o vermelho domina. É uma cor que não repousa, que vive em agonia. Dutra faz dela uma presença onipresente, como se a película tivesse sido mergulhada em sangue antes de ser projetada.

O vermelho também funciona como um aviso, um código emocional que anuncia a ruína. É o fogo do Apocalipse e, ao mesmo tempo, o sangue que insiste em circular, a prova de que ainda há vida onde só resta desespero. Essa duplicidade é o que move o filme: a cor como limite entre o fim e a persistência. Quando o sangue cobre o asfalto ou escorre das paredes, há algo de ritualístico na forma como Dutra enquadra o horror.

Nesse cenário tingido de ferrugem, o vermelho que tinge o céu, as margens da estrada, se insinua nas roupas, nos objetos e, sobretudo, no olhar cansado de Edgar Wilson, um removedor de animais mortos pela estrada. É ali que emerge um Selton Mello de poucas palavras, mas de presença magnética. Sua atuação é contida e, ao mesmo tempo, arrebatadora, um silêncio que pesa mais do que qualquer fala.

Mello encarna esse desespero com uma contenção: ele parece propositalmente travado emocionalmente. Seu Edgar Wilson, um nome composto com um significado escondido, repetido diversas vezes até o final, é um homem em transe. A cada animal que recolhe, parece aproximar-se do próprio destino, enquanto a paisagem se tinge de um vermelho mais denso, como se a natureza estivesse reagindo à presença do homem. Há algo de bíblico nesse percurso: o trabalhador que cava sepulturas sem perceber que o solo já está tomado pelo inferno.

Ao lado dele, Marjorie Estiano surge como Nete, administrando o caos com uma serenidade que beira o delírio religioso. Mesmo com dois pés atrás, segue a loucura alheia como se fosse fé, mas a atmosfera não ajuda na atuação dela, que vai consecutivamente se tornando cada vez mais caricata. A fotografia evita o contraste tradicional e se aproxima de um vermelho sujo, terroso, orgânico, que parece brotar da paisagem. A cada novo capítulo, o vermelho ganha nova função simbólica: primeiro como advertência, depois como febre e, por fim, como totalidade, quando já não há outra cor possível.

A narrativa em sete partes se transforma, e a cor age como um marcador espiritual dessa jornada, onde o horror não vem apenas das mutilações, mas da sensação de que a decomposição se espalha pelo ar, pelos corpos e até pelas crenças. O apocalipse, aqui, não é espetáculo: é rotina. O vermelho se torna o corriqueiro, a cor do cotidiano, a prova de que o inferno não começou agora, ele apenas foi naturalizado.

É um filme denso, por vezes excessivamente contemplativo, que se perde no próprio ritmo. Há momentos em que nada parece acontecer, e o silêncio não avança a trama, apenas a suspende. Marco Dutra parece mais interessado em nos fazer habitar aquele purgatório do que sair dele, e esse gesto é tão perceptível quanto arriscado. A lentidão se torna parte da experiência, mas também o seu peso.

O filme prefere a imersão ao movimento, a observação à ação. É um pessimismo crônico que afeta até a boa vontade de quem está assistindo. É uma narrativa que se arrasta como um corpo ferido, respirando com dificuldade, esperando um milagre que talvez nunca venha. Ainda assim, há algo de honesto nessa hesitação, como se Dutra aceitasse que o próprio fim do mundo não acontece de forma grandiosa, mas se arrasta, devorando aos poucos o que resta. É um filme com boas ideias em sua concepção, mas que, diante da má execução, se perde no caminho e acaba sendo apenas mais um título esquecível.

A ausência de ritmo é o espelho da paralisia moral dos personagens, e o que poderia ser um defeito formal acaba ecoando como uma escolha de sentido, apesar das inconsistências que se acumulam a cada episódio. “Enterre Seus Mortos” é um filme que desafia a paciência e espanta o olhar. Sua força está menos na história e mais na textura que ela cria, nesse vermelho que nunca se apaga, nesse estado de febre que atravessa tudo.