À espera infinita pela demarcação de suas terras, que originalmente eram habitadas por eles e hoje são ocupadas por produtores rurais – estes sim, invasores – um grupo com cerca de 30 indígenas Guarani Kaiowá, de Amambai (MS) decidiu retomar o território ancestral Guapoy.

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) explica que “Guapoy é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai”. Com a retomada (termo utilizado pelos indígenas), entre quinta (23) e sexta, os policiais foram acionados e alegaram terem ido à propriedade para “coibir o crime contra o patrimônio”.

A ação policial resultou na morte de Vitor Fernandes, de 42 anos. Na ofensiva com armas letais e não letais, ao menos dez indígenas ficaram feridos. Destes, o caso mais grave é de uma menina de 12 anos, cujos disparos lesionaram o fígado. Para que a mãe dela pudesse acompanha-la no hospital, foi necessário que a Defensoria Pública interviesse.

A ocupação começou na quinta-feira (23). Na sexta-feira (24), equipes do Batalhão de Choque foram enviadas à área que hoje “pertence” ao grupo VT Brasil.

Centenas de policiais permanecem no local para fazer a segurança patrimonial e o enfrentamento aos indígenas que reivindicam o território. Vale ressaltar, a violência contra os Guarani Kaiowá ocorreu no mesmo dia do enterro do indigenista Bruno Pereira. Ele e o jornalista Dom Phillips foram mortos em uma emboscada, por defender a proteção à Terra Indígena Vale do Javari.

Criminalização

Uma liderança indígena Guarani Kaiowá, disse à reportagem da Mídia NINJA, que a polícia tem usado falsas narrativas para criminalizar a retomada do território, dizendo inicialmente, que se tratava de uma ação contra o narcotráfico, ainda que não haja qualquer apreensão de drogas.

“Não é verdade. Os vídeos que circulam pelas redes sociais são prova. Tinham crianças e idosos e eles chegaram atirando. Não houve diálogo. O Vitor foi atingido, colocado na viatura e chegou morto ao hospital”. O indígena não quis se identificar por temer represálias.

Ele informa que os Guarani Kaiowá pretendem sepultar o corpo de Vitor na terra ancestral, onde ele foi assassinado. “Deu a vida na luta pela terra”. Defensores das causas indígenas temem novo conflito.

A liderança alerta ainda para o histórico de ataques e violações aos direitos indígenas. É tão grave, que há casos em que territórios que outrora tinham 12 mil hectares, hoje foram reduzidos a 45 hectares. “Isso dói muito”.

Segundo ele, levantamentos das terras demarcadas em 1924 apontam que todos os territórios foram diminuídos ou totalmente extintos, obrigando os indígenas a viverem em situação de vulnerabilidade, em acampamentos na beira de estradas, por exemplo.

Enquanto isso, os ruralistas expandem os limites de suas fazendas. “Além de tirar nossa terra, tiram nossas vidas. Para se ter uma ideia, em 1924 tínhamos 10% de território no Estado, do rio Brilhante ao rio Paraná e hoje, já não temos mais nem os 0,2% que dizem que temos”.

Conivência e omissão

Em comunicado oficial, a associação que que representa os Guarani Kaiowá, a Aty Guasu reclama que o ataque teve também a colaboração de servidores da Funai em MS nos ataques que sofreram e a inércia do Ministério Público Federal no estado.

“O MPF de Ponta Porã, que tem se mostrado lento em compreender a realidade imposta”. Eles pedem que o MPF assuma seu dever em defender os direitos imediatamente, sob o risco de ser conivente com todos estes atos de violência contra nosso povo.

Massacre

“Esse ataque já está sendo chamado em todos os nossos territórios de massacre de Guapoy. É mais uma ação ilegal da PM que tem agido como como cão de guarda do ruralismo e da corja política ruralista no estado. Foram atacadas crianças, jovens, idosos, famílias que decidiram depois de muito tempo de espera sem alcançar seu direito, retomar o território que sempre foi deles e que foi roubado no passado. As imagens do massacre falam por si e são de fazer doer a alma do mais duro dos seres humanos”.

No mesmo dia do ataque armado da polícia de Amambaí (MS) contra os indígenas, houve outra tentativa de massacre contra a comunidade de Kurupi/Santiago Kue. “A PM, junto com fazendeiros, abriu fogo contra as famílias e por pouco não causam o mesmo estrago”.

Vulnerabilidade social

O pesquisador da Universidade de Brasília (UNB), Tedney Moreira da Silva, que investiga a violência contra a população Guarani Kaiowá, destaca que o Mato Grosso do Sul, ao lado do Rio Grande do Sul, é um dos estados que mais encarceram indígenas no Brasil. “E o Mato Grosso do Sul tem o maior número de conflitos de disputas por terras indígenas. Parte desse resultado vem da expulsão dos indígenas de seus territórios e da tentativa de retomada de suas terras”, explica. O encarceramento indígena dos Guarani Kaiowá tem enfoque em suas pesquisas.

“Boa parte das prisões ocorrem em áreas de conflitos”. Eles são aprisionados, uma outra maneira de silencia-los. “Grande parte das prisões se devem a casos de crimes patrimoniais [patrimônio ruralista, mas terra originária], furto e tráfico”. Estes últimos, reflexo da situação de vulnerabilidade em decorrência das desigualdades sociais.

“São vítimas dessa colonização que não se encerra”. Há pesquisadores, como Débora Diniz, que denominam a região como a Faixa de Gaza brasileira. “E há ainda a situação desoladora do alto número de suicídios, que na cosmovisão, é resultado de eles não suportarem a vida aqui”.

O retrocesso na demarcação e terras e o impasse no julgamento do Marco Temporal, aliado ao discurso genocida do governo Bolsonaro, legitimam os casos de violência contra os povos indígenas.

“Os Guarani Kaiowá têm uma ligação muito forte com os Tekoha, seus territórios sagrados. Eles sofrem em vê-los explorados pelo agro, dominados por plantações de soja, pastagens. Territórios sagrados sendo usurpados. E então, tentam retomar a área”. Tendo o estado virado as constas para eles, eles tentam retomar essas áreas por conta própria. Mas o estado está armado. Eles são criminalizados e massacrados à luz do dia. “Resistem o quanto podem”, diz o pesquisador.

Vítimas do preconceito

Em manifestação por meio de nota, o Cimi também destacou que nos últimos anos, o Mato Grosso do Sul reuniu um amplo histórico de uso de forças de segurança pública, em especial a PM, em despejos ilegais e invariavelmente violentos contra indígenas. A desastrosa ação contra o Tekoha Guapo’y acrescenta mais um capítulo a esta triste história.

A nota destaca que a justificativa apresentada pela Secretaria de Segurança Pública do estado, em entrevista coletiva sobre o caso, reproduz uma série de preconceitos contra os povos indígenas e não encontra respaldo na realidade dos fatos.

“Ao contrário do que diz o estado, não se tratou de uma ação de combate ao tráfico de drogas, mas de uma ação de despejo contra uma retomada do povo Guarani e Kaiowá que não poderia ter ocorrido – porque não havia mandado judicial e porque disputas possessórias envolvendo povos indígenas são tema de competência federal, e não estadual”.

Retomada

Segundo o Cimi, “o movimento pela retomada do tekoha Guapo’y, área contígua à Reserva Indígena de Amambai, iniciou-se no final de maio, quando o também Guarani Kaiowá Alex Lopes, de 17 anos, foi covardemente assassinado numa área que, segundo os Kaiowá e Guarani, pertencia à Reserva Indígena de Taquaperi, em Coronel Sapucaia (MS), mas foi apropriada por fazendeiros”.

Na Reserva de Amambai encontra-se grande parte da família de Alex, que, sensibilizada pela dor da perda e pela necessidade de reaver áreas de ocupação tradicional do povo, decidiram retomar o tekoha Guapo’y, dois dias depois do assassinato. Acabaram inicialmente sendo expulsos por ação policial e de fazendeiros, mas retornaram, no dia 24 de junho, dispostos a ocupar a sede da fazenda.

Segundo os Kaiowá e Guarani, a área retomada foi subtraída da demarcação original da Reserva Indígena de Amambai – ela própria, fruto da política de redução, confinamento e colonização implementada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no início do século XX.

Ao longo das décadas, estas pequenas áreas – insuficientes para a sobrevivência física e cultural dos indígenas – foram sistematicamente invadidas e dilapidadas. Além de terem sido alijados de seu território de ocupação tradicional em nome de uma política de desenvolvimento lastreada na monocultura, mesmo as diminutas áreas reservadas aos Guarani e Kaiowá pelo SPI foram posteriormente reduzidas e transformadas em áreas sob disputa.

Na reserva de Amambai, mais de dez mil Kaiowá e Guarani vivem em apenas 2,4 mil hectares. A situação é um exemplo deste contexto de desrespeito à Constituição Federal, que garante aos povos originários o direito à existência e à regularização e proteção dos seus territórios.

Os povos indígenas, conscientes dos seus direitos, têm lutado para efetivá-los em processo permanente de diálogo com os poderes da República, em especial o Executivo e o Legislativo, o que tem sido negado, esvaziando, assim, o legado constituinte de 1988.

Em todo o Brasil, os povos indígenas têm se mobilizado e denunciado todo esse processo de violência incentivado pelo próprio Estado brasileiro, que vitima a eles e seus aliados, como no caso recente ocorrido com o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. A tragédia ocorrida no Mato Grosso do Sul contra os Kaiowá e Guarani corrobora essa denúncia.

O caso de Guapo’y também reforça a necessidade de o STF retomar o julgamento do Recurso Extraordinário de repercussão geral, em que se discute a tese nefasta e inconstitucional do marco temporal, defendida pelos invasores e patrocinadores da violência contra os povos originários e suas lutas.

O Cimi manifesta-se contra qualquer tentativa de criminalização das vítimas deste ataque e conclama as autoridades e o Ministério Público Federal a tomar ações urgentes e efetivas para salvaguardar a vida das comunidades Guarani e Kaiowá. É necessário que a Polícia Federal assuma as investigações sobre o caso, com a atuação de um corpo de delegados e peritos federais de fora do estado, para garantir maior isenção.

Os clamores de justiça por Vitor Fernandes somam-se agora aos por Alex, Bruno e Dom, bem como por dezenas de lideranças Guarani e Kaiowá assassinadas desde Marçal Tupã’i.