Desde 28 de fevereiro deste ano, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) tem realizado uma série de ações controversas para viabilizar a realização da corrida Stock Car nos arredores do Mineirão, na Pampulha (MG). Sem consulta prévia aos moradores e enfrentando forte resistência de parlamentares e organizações da sociedade civil, as medidas tomadas pelo poder público geraram um intenso debate sobre os impactos ambientais e sociais do evento na capital mineira.

O corte de árvores na Pampulha

O estopim da controvérsia foi o corte de 63 árvores na região da Pampulha, uma área icônica de Belo Horizonte. Árvores nativas, como pau-ferro, ipê-rosa e ipê-roxo; E exóticas, como flamboyant e tipuana, foram derrubadas para abrir espaço para o circuito da corrida. O corte aconteceu enquanto o tema ainda estava em discussão na Câmara Municipal, no Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam) e em diversas organizações da sociedade civil. O PSOL chegou a protocolar um pedido ao Ministério Público para barrar a ação, mas não obteve sucesso.

Entre as árvores derrubadas estavam exemplares de espécies importantes para a biodiversidade local, como alecrim de campinas, paineira e macaúba. Essas espécies desempenham um papel essencial na manutenção do equilíbrio ecológico da região, e sua remoção gerou indignação entre ambientalistas e moradores.

A reação de parlamentares e organizações

Desde o início das intervenções, parlamentares do campo progressista têm lutado pela mudança do local do evento com o argumento e apoio popular de que a realização da corrida na Pampulha representa um risco para o meio ambiente e para a qualidade de vida dos moradores da região. Além disso, desde o início, a proximidade do circuito com o Hospital Veterinário da UFMG levantou preocupações sobre os impactos do barulho nas atividades do hospital e na saúde dos animais atendidos.

Beatriz Cerqueira chegou a questionar: “Nós aceitaríamos uma corrida de carro ao lado do Hospital João XXIII?” A parlamentar alertou para os riscos que o empreendimento traz para a saúde dos animais atendidos pelo hospital veterinário e para os projetos de pesquisa desenvolvidos na instituição. A deputada chegou a realizar visitas na UFMG, diversos debates públicos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e a protocolar ações contra a realização da Stock Car na Pampulha.

Em entrevista coletiva nesta quarta-feira, 14 de agosto, a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), ao lado da reitora da Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), Sandra Goulart, anunciou uma nova ação popular, ajuizada na terceira vara da Fazenda Pública estadual, para impedir a realização do empreendimento Stock Car na Pampulha.

“A legislação determina que empreendimentos como a Stock Car precisam ter prévio licenciamento. Ou seja, a Stock Car vai acontecer em Belo Horizonte à revelia da legislação. Então, de forma ilegal. Isso nós demonstramos ao Judiciário e pedimos liminarmente que esse evento, esse empreendimento, seja suspenso naquele local. E demonstramos, através do trabalho técnico da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, todos os prejuízos que não podem ser mitigados, que não podem ser reparados com a manutenção da Stock Car ao lado de um hospital veterinário. E quais são os argumentos de por que é ilegal? É ilegal porque precisa de ter prévio licenciamento. Um empreendimento do porte da Stock Car precisa ter prévio licenciamento pela sua complexidade. E a Prefeitura optou por tratá-lo como um mero evento, desconsiderando toda a necessidade de prévio licenciamento por todos os impactos que tecnicamente foram apresentados durante essa entrevista coletiva”, disse Beatriz Cerqueira.

O envolvimento família Noman e a Stock Car

Com mais de 40 anos de existência, a Stock Car foi fundada pela Chevrolet, cuja marca é a principal do evento. Dos onze modelos com mais participações na corrida, seis são da Chevrolet, com destaque para o Opala.

Até os dias atuais, a montadora é a principal financiadora e organizadora da Stock Car, que conta este ano com a japonesa Toyota como convidada.

A ligação do prefeito com a empresa vem da família. Seu filho, Paulo Henrique Lage Noman, é administrador da GM Financial, banco de financiamento das montadoras General Motors e Chevrolet, além de presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (Anef). A associação já se aventurou no universo das corridas, sendo organizadora de diversas edições do evento Fórmula 3 Brasil, uma categoria de automobilismo voltada para a formação de novos pilotos.

Em 2019, Paulo Noman assumiu a presidência da Chevrolet Serviços Financeiros, banco que pertence à corporação General Motors. Atualmente o administrador também se apresenta como Superintendente Comercial Consórcio Chevrolet Experiência. 

No lançamento oficial do BH Stock Festival, que teve a presença dos pilotos Felipe Massa e Cacá Bueno, os organizadores apresentaram o circuito com cerca de 3.200 metros. Sem citar o corte de árvores, o prefeito Fuad Noman fez seu discurso: “Nós estamos aqui para dar estrutura e a condição mínima para que vocês possam realizar esse grande evento”, destacou o político mineiro. “Toda a nossa estrutura está voltada para permitir que vocês possam fazer um grande espetáculo”.

Problemas com a compensação ambiental

A compensação ambiental pelas árvores cortadas na Pampulha também se mostrou ineficaz. O projeto Pomar BH, dedicado à preservação das áreas verdes urbanas, denunciou que muitas das mudas plantadas como compensação estão morrendo devido à falta de cuidados adequados. As imagens divulgadas pela ONG mostram árvores secas e sem vida, evidenciando a falha na preparação do solo e na irrigação necessária para a sobrevivência das novas mudas.

Esse problema reflete um desafio comum em projetos de compensação ambiental: a falta de acompanhamento pós-plantio. Sem os cuidados necessários, as mudas têm pouca chance de sobreviver, especialmente em ambientes urbanos com condições adversas.

O impacto no hospital veterinário da UFMG

Outro ponto de tensão é o impacto da corrida no Hospital Veterinário da UFMG, que atende mais de 3 mil animais, incluindo cães, gatos e equinos. Profissionais da UFMG relataram que eventos de teste no circuito, realizados sem aviso prévio, causaram intensa agitação e taquicardia em animais internados.

Na quarta-feira passada, dia 7 de agosto, por volta das 21h, os organizadores, sem qualquer aviso e antes mesmo da instalação das barreiras acústicas, realizaram eventos de teste no circuito que, segundo profissionais do Hospital Veterinário da UFMG, causaram impactos nos animais internados ou em atendimento ambulatorial. Foram verificadas alterações nos comportamentos dos pacientes em razão dos ruídos, mesmo quando causados por apenas um veículo em baixa velocidade. 

A barreira acústica prometida pelos organizadores da Stock Car, composta por colchonetes grampeados, foi considerada insuficiente para mitigar os impactos sonoros na área. O impacto estimado de 73,6 decibéis excede o limite máximo permitido por lei, que é de 55 decibéis, causando ainda mais preocupação entre os defensores dos direitos dos animais.

Na ação ajuizada na última sexta-feira, 9 de agosto, o MPF argumenta que os organizadores apresentaram estudo sobre barreira acústica considerado insuficiente para mitigar os impactos sobre animais atendidos, projetos de pesquisa e serviços prestados pela UFMG. O pedido é reforçado pelo fato de que a proposta de instalação das cortinas acústicas apresentada pelos organizadores não será suficiente para evitar impacto sonoro acima do permitido pela legislação municipal em todas as estruturas biologicamente sensíveis da UFMG. 

Além disso, há uma preocupação estratégica com a interdição da entrada principal do campus. “Vamos fechar a entrada principal. Não há como chegar caminhões de alimentos para os grandes animais, medicamentos para o Hospital Veterinário, e muito menos os próprios animais. Imagine um cavalo com cólica, precisando de atendimento emergencial, não tem como chegar”, exemplificou a vice-diretora da Escola de Veterinária, Eliane Gonçalves de Melo, durante entrevista ao apresentador do programa Expresso 104,5 da Rádio UFMG Educativa.

Prejuízos e transferência de animais

Dos 3 mil, 30 animais do Hospital Veterinário e da Escola de Veterinária da UFMG foram transferidos para outras localidades da Grande BH em razão das corridas da Stock Car. A transferência é feita para proteger os animais do estresse provocado pelo barulho dos automóveis e de eventuais acidentes que possam acontecer no evento. Eles ficarão provisoriamente numa fazenda da faculdade em Igarapé, na Grande BH, em outras escolas e hospitais e no sítio de um aluno do Hospital Veterinário.

Alguns animais sem condições de sair do campus continuarão na Pampulha durante as corridas. É o caso de um grupo de cabras que pariram recentemente ou que ainda estão grávidas e, também, de 45 bezerros que participam de um experimento e precisam permanecer num espaço controlado.

Segundo o Hospital Veterinário da UFMG, até 400 animais poderão deixar de ser atendidos já que o espaço ficará fechado durante os quatro dias da Stock Car. Os animais que residem no campus e que não puderam ser transferidos serão assistidos por uma equipe de plantão, composta de clínico, cirurgião e anestesista.

Stock Car gera revolta e conflito com comerciantes locais

Moradores, comerciantes e defensores do meio ambiente têm manifestado suas insatisfações com a forma como a competição tem sido organizada, alegando não só transtornos para a população, mas também danos ambientais e prejuízos econômicos.

A situação ficou ainda mais crítica nos últimos dias, quando o acesso aos restaurantes e comércios do entorno foi bloqueado, impedindo que os proprietários conseguissem entrar em seus estabelecimentos. Um dos episódios mais chocantes foi registrado em vídeo e compartilhado nas redes sociais, mostrando a proprietária do restaurante Farroupilha, Aline, sendo agredida enquanto tentava acessar seu próprio comércio. Geraldo, que tentou defendê-la, também foi contido de maneira agressiva.

A indignação da população é palpável, com muitos acusando o prefeito Fuad Noman e sua gestão de ignorar os interesses dos cidadãos em prol de eventos que favorecem grandes empresas e patrocinadores. 

As ruas que cercam o evento se transformaram em um caos, com trânsito interrompido e prejuízos diretos para os comerciantes que dependem do movimento diário para sobreviver.

A realização da Stock Car em Belo Horizonte, que deveria ser um evento de entretenimento e promoção esportiva, acabou se tornando um símbolo de descontentamento popular. A falta de diálogo com a população, os danos ao meio ambiente e a violência contra os trabalhadores locais destacam uma crise que vai muito além das pistas de corrida.

Os próximos dias devem ser decisivos para entender como a gestão da cidade irá responder a esses episódios. 

Visita técnica vai apontar prejuízos provocados pela Stock Car

Na segunda-feira, 19 de agosto, às 10h, a Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia de Minas realiza visita técnica à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para verificar os danos e prejuízos provocados pela realização do empreendimento Stock Car no entorno do Mineirão e ao lado do campus universitário. O ponto de encontro será no Hospital Veterinário da UFMG. O requerimento para realização da visita é de autoria da deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), que é a presidenta desta Comissão, e na última segunda-feira protocolou mais uma ação na Justiça contra a realização da Stock Car na Pampulha.

A deputada explicou as motivações da visita. “Nossas novas ações pela Comissão de Educação serão uma visita à universidade para, exatamente, identificar todos os danos causados por esse empreendimento. Nós faremos a visita na próxima segunda-feira, às 10 horas. Outra ação da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia será a realização de uma nova audiência pública, convidando mais uma vez os empreendedores e a Prefeitura, porque eles são convidados e nunca aparecem, além dos movimentos e da própria universidade. É importante dizer que a Stock Car é um empreendimento para os próximos cinco anos e outros empreendimentos podem surgir naquele mesmo circuito que eles fizeram. Então é muito trabalho na defesa da universidade e na defesa da população de Belo Horizonte”.