Engajamento e urgência nos documentários indicados ao Oscar 2022
Os cinco longas indicados ao prêmio de Melhor Documentário são filmes que articulam qualidade técnica com vocação política. Ascensão e Escrevendo com Fogo já estão disponíveis no streaming
Por Juliana Gusman*
Apesar de ser o mais midiático prêmio da indústria cinematográfica estadunidense – que reflete, em alguma medida, imperialismos culturais do entretenimento – o Oscar tem se configurado como terreno de disputas. Reivindica-se, com justiça, o alargamento deste espaço de aparecimento, capaz de projetar os discursos audiovisuais que nele são admitidos. Não sem adversidades, os trabalhos de mulheres, de pessoas LGBTQIA+, de realizadoras e realizadores negros e negras, dos sujeitos terceiro-mundistas, latino-americanos e de outros grupos subalternizados têm conquistado esta cena de visibilidade, inclusive em categorias prestigiadas: o destaque desta edição dos Academy Awards, por exemplo, é Ataque dos Cães, de Jane Campion, favorita à estatueta de direção. No âmbito do cinema documentário, também podemos observar, não por acaso, rupturas significativas.
O documentário, como campo, não só foi historicamente elaborado a partir de seu engajamento social e de seu comprometimento político, como tornou-se um território progressivamente acessível e penetrável. Segundo o pesquisador Robert Stam, o documentário sempre foi uma forma menos dependente de amplas estruturas produtivas: pode-se fazer muito com poucos recursos. E precisamente por causa do seu baixo apelo mercadológico – ele raramente é alvo de grandes investimentos – pôde prosperar como um “laboratório de fórmulas raras e um centro de invenções”, nas palavras do autor.
Os filmes indicados, neste ano, ao Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem honram esta vocação aguerrida, oferecendo ao público narrativas de primeira importância que articulam o apuro técnico com a urgência de quem, diante de nossas atribulações latentes, não tem tempo a perder.
Attica, de Traci Curry e Stanley Nelson – diretor de Os Panteras Negras: Vanguarda da Revolução (2015) – aproxima-se de outra obra maiúscula reconhecida pela Academia, o inarredável 13ª Emenda de Ava DuVernay (2016), ao explorar os desdobramentos da violência não-declarada do Estado norte-americano contra a população negra, compulsoriamente aprisionada. O filme relata os momentos de absoluta tensão no presídio que lhe deu o nome, quando, em setembro de 1971, irrompe uma insurreição contra os abusos do encarceramento.
Summer of Soul (…ou Quando a Revolução Não Pôde ser Televisionada), do multiartista Questlove, recupera as gravações, até então negligenciadas nos becos do esquecimento, do 3º Harlem Cultural Festival, evento de grandes proporções colocado de pé por artistas negras e negros, eclipsado pelo rebuliço em torno da contracultura (mais embranquecida) de Woodstock.
Flee, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, se aprofunda nos dramas pregressos do seu protagonista, o afegão Amin Nawabi, que se viu alijado no próprio país por causa de sua homossexualidade. O animadoc concorre, de forma inédita, nas categorias de Melhor Documentário, Melhor Animação e Melhor Filme Estrangeiro.
Já em Ascensão, a sino-americana Jessica Kingdom elabora uma contundente análise da racionalidade neoliberal que se arvora colericamente na China contemporânea, enquanto em Escrevendo com Fogo os documentaristas indianos Rintu Thomas e Shushmit Gosh elevam os esforços das repórteres do jornal independente Khabar Lahariya, sediado na hostil região de Uttar Pradesh. A equipe é formada inteiramente por mulheres dalit, a mais baixa das castas sociais.
Estes filmes são vinculados a distribuidoras e produtoras menores, que desbancaram títulos afortunados com orçamentos robustos e capitaneados pelos gigantes do mercado, como a Netflix, que havia apostado suas fichas em Procession, de Robert Greene. Qualquer que seja a obra vitoriosa, o Oscar reconhecerá, neste ano, um longa que confirma o que há de melhor na tradição combativa do documentarismo (ao contrário do que fez na edição anterior ao laurear, a despeito dos mais substantivos O Agente Duplo, Crip Camp, Time e o memorável Collective, o morno Professor Polvo). Dentre concorrentes de 2022, Ascensão e Escrevendo com o Fogo já estão disponíveis ao público brasileiro em plataformas de streaming.
Ascensão se ancora na força estética de sua fotografia para desvelar as dinâmicas do trabalho produtivo no ápice do capitalismo global. A beleza no mínimo contraditória das imagens, imponentes, que nos convoca hipnoticamente a embarcar no ritmo incessante das máquinas e das fábricas, também denuncia a coreografia dura e complicada da qual o proletariado é impelido a participar. Guardadas as devidas proporções, a obra remete ao pernambucano Estou me guardando para quando o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019), sobre os esforços ininterruptos dos moradores de Toritama na indústria têxtil local. Em Ascensão, no entanto, não há qualquer tipo de narração. É na montagem (dialética) que se garante o engendramento do argumento fílmico, que busca explicitar o fosso de penúria que separa classes populares e elites ocidentalizadas, empenhadas em mimetizar os piores hábitos da burguesia estrangeira.
Há momentos notáveis que ilustram esses tensionamentos. Não há como não se incomodar com um menino, provavelmente filho do patrão, que toma um sorvete enquanto assiste, como se entretimento fosse, a labuta dos empregados e empregadas de seu pai através de câmeras de vigilância – reality show do capital. Revoltamo-nos, ainda, com uma blogueira que reclama do calor durante uma relativamente breve sessão de fotos num hotel de luxo. Ela é observada por um jardineiro, estrategicamente enquadrado no mesmo plano, sem a liberdade de fugir do sol. Em outra sequência, tão perturbadora quanto intrigante, observamos a fabricação de bonecas eróticas, encabeçada sobretudo por mulheres, que as modelam a partir de um padrão de feminilidade hipersexualizada e caucasiana. Há algo de queer e de contranormativo na revelação (absurda, risível?) da artificialidade das fantasias e dos desejos heterocentrados.
Por vezes, falas esporádicas das personagens acabam corroborando a crítica edificada na sucessão de paisagens, desde as exaltações do espírito empreendedor e meritocrático proferidas por coaches de aspirantes a milionários, às instruções que são dadas para mordomos em formação, uma demanda recente das famílias abastadas da China. Diz a professora, entre as aulas de inglês e etiqueta: “Como um canivete suíço, o mordomo deve se desdobrar e ser usado como uma ferramenta”. E acrescenta: “Nossos clientes são em sua maioria gente rica. Costumam fazer o que eles bem entenderem. Descontam o mau humor deles em vocês. Sendo parte do ramo de serviços, vocês devem agir profissionalmente” – o que, não raramente, significa agir com resignação.
Até os momentos de lazer, capturados pelos mesmos planos abertos das rotinas laborais, parecem integrar processos de exploração e alienação. Em Ascensão, não há escapatória para as massas, já que o descanso é apenas a outra face do trabalho penoso. É o que evoca o poema homônimo de Zheng Ze, avô da diretora, que em 1912, quando da formação da República da China, escreveu: “Subo e contemplo ao longe, com um coração limpo, somente para descobrir, que todos os lugares já foram destruídos.”. No capitalismo neoliberal, não há vitória no horizonte.
Escrevendo com o Fogo, em outra chave, nos devolve à boa teimosia utópica. Não por tangenciar realidade brandas, mas por mostrar que mesmo nas condições menos favoráveis é possível resistir. O documentário sobre as repórteres do Khabar Lahariya assume uma postura ativista e não se exime de tentar intervir, no melhor dos sentidos, nos enfrentamentos impostos a elas. Numa clara aliança, intenta-se alçar a iniciativa das mulheres dalit a outro nível de proeminência – e mesmo com seus limites, o Oscar consegue operar como uma catapulta política nada desprezável.
O filme encontra seu vigor em sua riqueza humana, notabilizando figuras de imensa consciência democrática como Meera, Suneeta e Shyamkale, que nos lembram que o jornalismo pode estar, sim, a serviço do povo. Utilizam-no como arma de combate contra as agruras infligidas pela máfia do minério e contra as brutalidades da cultura do estupro. Revezando-se entre uma abordagem observativa (embora sempre implicada) e o uso de entrevistas, Escrevendo com Fogo também aspira, positivamente, ao didatismo. Letterings conduzem o desenrolar dos acontecimentos no decorrer de cinco anos. Entre 2015 e 2020, Rintu Thomas e Shushmit Gosh ambicionaram registar a transição do periódico feminino (e feminista) para o mundo digital, só mais uma das obstacularizações intercedentes, muito menos grave do que a misoginia transbordada até mesmo por homens cujas pautas as repórteres almejam defender. Em verdade, malgrado as manifestações sexistas que não passam desapercebidas, neste filme as figuras masculinas ocupam a improvável zona da desimportância – não é neles, apassivados, que o andamento narrativo se sustenta.
Se Escrevendo com Fogo logra reverenciar o legado militante de parte do documentarismo, ele viola outra herança, bem menos auspiciosa. Nosso imaginário coletivo, fartado por representações apequenadas dos países terceiro-mundistas, já se acostumou a encarar mulheres como Meera, Suneeta e Shyamkale como vítimas, emolduramentos bastante reiterados pelo cinema de não-ficção. Não faltam exemplos de realizadores brancos, vindos do Norte Global, que se autoproclamam salvadores de suas personagens “incivilizadas” – como se as desigualdades que as afligem não tivessem sido provocadas por séculos de colonialismo perpetrados pelas nações dominantes. Meera, Suneeta e Shyamkale não precisam de heróis. Elas têm umas às outras.
Ascensão está disponível no Prime Video e Escrevendo com Fogo, no Google Play, no YouTube e na Apple TV.
Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. É colaboradora do blog Piracema, da plataforma de cinema artesanal Cardume Curtas.
Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA