Encontro entre poderes: Quando a política dialoga com o ancestral
Na Casa Ancestral, majés conduziram processos de cura; Sônia Guajajara foi até lá para participar de ritual
Ana Carolina Muccari e Catu Fernandes, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30
Em um dos momentos mais emblemáticos da COP30, a Casa Ancestral, idealizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), foi palco de um encontro entre dois poderes. O poder institucional, representado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e o poder ancestral, do qual são imbuídas as majés, que são guardiãs da floresta e lideranças espirituais de diferentes povos.
Isso ocorreu no dia 20 de novembro, marcando o encerramento simbólico das atividades da casa e que ainda, sintetizou a mensagem que mulheres indígenas vêm afirmando em diferentes arenas: não existe política climática sem espiritualidade, sem cura, sem território e sem ancestralidade. À ocasião foram realizadas rodas de partilha e agradecimento entre as majés, mulheres terras e convidadas, além de ritual com círculo de rezas, cânticos, defumação e bênção final das majés.
A Casa Ancestral como território político-espiritual
Longe dos auditórios formais e das mesas de negociação, a Casa Ancestral funcionou durante toda a COP30 como um território de cura, conduzido pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). No discurso de encerramento da Aldeia COP, a ministra Sônia Guajajara comenta a criação desta grande aldeia, para receber indígenas do Brasil inteiro, como também, para sediar painéis, palestras, feiras de artesanato, shows.
Ali, as Majés realizaram benzimentos, defumações, rezas tradicionais, rodas de cura, escutas espirituais, massagens, atendimentos energéticos e terapias com ervas.
A casa não era apenas um espaço cultural — era um sistema político ancestral, que revela como o cuidado, a cura e o equilíbrio com o território são métodos de governança e proteção da floresta.

O momento em que o Estado entra no território do sagrado
No último dia da programação da Casa Ancestral, a ministra Sonia Guajajara adentrou o espaço, não só como autoridade do Estado brasileiro, mas como mulher indígena que reverencia e reconhece o poder espiritual das majés.
Sua presença teve dois sentidos: político – agradecer à ANMIGA pela condução da casa, reconhecer a força das mulheres indígenas na COP30; e ancestral – participar do ritual, receber benzimento e limpeza espiritual, e se colocar diante das majés como alguém que também precisa de cura e proteção.
Essa inversão – o Estado se aproximando do território ancestral, e não o contrário – deu ao momento uma força inédita. Ervas, defumação, cantos de encantaria. Esse gesto é profundamente político: significa que o Estado reconhece que o cuidado espiritual e territorial pertencem às mulheres indígenas e que o poder delas não se subordina ao poder institucional — se soma, se cruza, se tenciona. É um outro modo de fazer política.

A entrega do documento: a ancestralidade exige ação do Estado
Ao final, a majé Iracema, liderança espiritual do sul do Brasil, entregou à ministra um documento sobre a regularização de seu território, a qualificação e análise de reivindicação fundiária indígena denominada “Morro Santana” (Porto Alegre-RS), que encontrava-se pendente de análise.
A entrega tem significado profundo. Não é burocracia, é pedido ancestral dos povos indígenas Kaingang e Xokleng que ocupam a área do Morro Santana. Mas também é a garantia de preservação da floresta, já que 80% da biodiversidade mundial encontra-se em terras indígenas.
Esse momento sintetiza uma verdade que a COP 30 talvez ainda não esteja pronta para ouvir completamente: O poder institucional legisla, o poder ancestral legitima. Um cria normas. O outro cria sentido. Um opera na esfera da política pública. O outro, na esfera da continuidade da vida.
E, durante o encerramento na Casa Ancestral, esses dois poderes se encontraram: não em situação de conflito, não em posição de hierarquia, mas num estado de reciprocidade.
Encerramento
A Casa Ancestral encerrou sua participação na COP30 com a força de quem não negociou espaço, mas criou território. Pela primeira vez na história, ocorreu a Aldeia COP, promovendo a maior participação indígena da história das COPs.
A presença da ministra Sônia Guajajara, o benzimento, a entrega do documento e o reconhecimento público da ANMIGA mostraram que a luta climática não se faz apenas com acordos internacionais, mas também com rituais, ancestralidade, cura e espiritualidade.
Porque, no fim das contas, proteger a floresta é proteger o que é visível – e o que é invisível.




