Por Cley Medeiros

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve em Salvador no início de maio, e nessa ocasião, mãe e filha, Rose e Franciele, viram a chance de finalmente entregar em mãos uma carta que há muito tempo aguarda resposta do governo federal.

A carta de oito páginas detalha as violações de direitos humanos que assolam a comunidade quilombola Rio dos Macacos, que luta para sobreviver, com 150 famílias em 104 hectares no município de Simões Filho (BA). A comunidade vive em uma área tomada pela Marinha do Brasil. O documento mostra a urgência em obter ajuda após seguidos casos de torturas, mortes e violações.

Enquanto o evento ocorria, com Lula assinando o decreto de regulamentação da Lei Paulo Gustavo, um grito desesperado ecoou pelas fileiras. Era a voz de Rose: “Lula, pelo amor de Deus! Estamos sem água, sem esgoto, sem escola. Socorro!”. Ela desejava chamar a atenção do presidente para o desespero vivenciado diariamente por sua comunidade.Finalmente, Rose foi autorizada a subir ao palco, onde ajoelhou-se emocionada:

“Lula, nosso povo está morrendo. Pelo amor de Deus”.

Na carta entregue ao presidente, Rose e Franciele pediram por políticas públicas urgentes para garantir os direitos básicos e a sobrevivência da comunidade. Infelizmente, apesar de já ter conhecimento da carta, o governo federal nunca havia respondido aos apelos da comunidade, o que tornava ainda mais crucial a entrega pessoal durante a visita de Lula a Salvador.

Foto: Arquivo Pessoal

Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos

Franciele, filha da coordenadora da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos, Rose Meire dos Santos Silva, revelou em entrevista à NINJA a dura realidade vivida pela comunidade. Há mais de 50 anos, enfrentam violações constantes de direitos básicos pela Marinha, que construiu a Base de Aratu nas proximidades.

O muro  da Marinha que condena o Rio dos Macacos

Como se não bastasse o acúmulo de violações, a comunidade está apreensiva diante da possibilidade da construção de um muro que pode bloquear completamente o acesso às águas do Rio dos Macacos. Essa medida seria devastadora para o povo quilombola, representando uma sentença de morte para sua sobrevivência.  O rio, símbolo de vida, tornou-se objeto de disputa e opressão.

“A Marinha quer construir um muro que retira todas as fontes de água do nosso território, incluindo o Rio que dá nome à nossa comunidade. Rio esse que é fonte de subsistência e cultura em nosso território”, disse Francieli à NINJA.

Os militares impedem o acesso ao rio, um santuário para a comunidade, que é tratado como um recurso vital desde os tempos ancestrais. Francieli explica que precisam desesperadamente compartilhar o uso do rio, pois são obrigados a percorrer longas distâncias com baldes para obter água. O fornecimento insuficiente por parte das autoridades não supre as necessidades básicas.

Foto: Arquivo Pessoal

“Nosso povo foi criado aí nessas águas, pescando, cuidando do corpo, do espírito. Não tem como a gente sobreviver sem água. O que eu coloquei naquela carta foi pedindo as políticas públicas”.

Além da falta de água, a comunidade também sofre com a ausência de serviços essenciais. Não há iluminação pública, posto de saúde adequado ou escola para as crianças da comunidade. O acesso à educação é particularmente difícil, pois as crianças precisam caminhar cerca de 14 quilômetros para chegar à escola mais próxima.

Foto: reprodução/Google Earth/The Intercept

Outra questão alarmante é a falta de transporte e acesso independente à comunidade. Os moradores são forçados a atravessar uma área militar para chegar em suas próprias casas, o que dificulta ainda mais o acesso a serviços básicos, incluindo cuidados de saúde emergenciais.

Foto: Arquivo Pessoal

Chegar em casa, um desafio diário

O governo do estado começou as obras de uma estrada independente na localidade. “Porém a empresa contratada é muito lenta”, afirmou Francieli.  De acordo com ela, a obra deveria ser entregue em sete meses e não tem nem 30% concluído ainda.

“A comunidade é dividida em duas glebas devido à invasão da Marinha (invasão essa que expulsou diversos moradores), na gleba dois, a obra nem foi iniciada ainda. A empresa está retirando todas as máquinas de dentro do território e estamos muito preocupados”, disse Francieli.

Sem opção de deslocamento seguro, os moradores da comunidade são obrigados a passar por uma estrada, que é a única forma de entrada e saída por dentro da Vila Naval da Barragem. A carta entregue denuncia e detalha que a população do Rio dos Macacos já sofreu uma série de violações ao transitar por este território, administrado pela Marinha.

Foto: Arquivo Pessoal

“Nossa única entrada e saída é por dentro da Vila Naval da Barragem, local esse que já sofremos diversos tipos de violência: estupros, agressões físicas e psicológicas”, afirmou Francieli.

Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em 2014, quando um grupo de moradores do quilombo foi torturado por policiais militares. As cenas chocantes foram registras por uma câmera de segurança. A reportagem apurou que o caso foi arquivado pela Polícia Militar da Bahia, apesar de posição contrária da Defensoria Pública.

“Muitas vezes ficamos na portaria e ainda assim não liberam a nossa entrada… Essa só foi uma das violências que já ocorreu, a única filmada foi essa e, ainda assim, porque alguns órgãos foram imediatamente para a base naval”, disse Francieli.

Defesa do território, defesa da vida

Francieli é a primeira da comunidade a chegar a uma faculdade. Conseguiu ingressar no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFB). Para ir todos os dias às aulas, sai da comunidade às 16h e chega perto das 19h no campus. Mas o esforço é com alegria.

“Eu resolvi, na verdade, estudar Direito porque venho de uma comunidade quilombola que não tem nenhum tipo de política pública. Já sofreu diversas violências e ameaças. A Marinha invadiu nossas terras há mais de 50 anos e a partir daí a gente vem sofrendo inúmeras violações de direitos”, disse.

A palavra quilombo vem do Quimbundo, língua banta falada em Angola, e significa união, acampamento, arraial, povoação.

Uma série de documentários, disponíveis no Youtube, como o “Quilombo Rio do Macaco”, lançado em 2011, narra as violações desde a década de 60 no Quilombo Rio dos Macacos.

E também o longa Quilombo Rio dos Macacos (lançado em 2017).

 

Apesar da entrega da carta, ainda não houve uma resposta efetiva por parte do governo federal ou das Forças Armadas que apontem um caminho de paz para os quilombolas de Rio dos Macacos. A resistência segue.