Por Hyader Epaminondas

Em Thunderbolts, Jake Schreier desenvolve um drama em que o heroísmo não é uma resposta, mas uma pergunta sem resolução, refletida em um espelho trincado onde cada fragmento revela traumas, culpas e angústias, numa luxuosa sessão de terapia. O uso de efeitos práticos não é um mero capricho estético, mas um recurso calculado para ancorar o realismo e manter os personagens conectados à sua humanidade.

Esses heróis não sabem ao certo se estão salvando o mundo ou apenas tentando escapar de si mesmos. Ao som de uma versão perversamente otimista de “Where Is My Mind”, o filme mergulha ainda mais fundo na dor do não pertencimento, abordando a depressão e o vazio que acompanham a sensação de inutilidade em uma sociedade que exige produtividade a qualquer custo.

É justamente no contraste entre a melancolia poética da trilha sonora e a estética sombria de um labirinto emocional que Thunderbolts encontra sua maior força. Essa dualidade ecoa também na estética visual: tons desbotados, cenários áridos e uma câmera fechada nos rostos dos personagens intensificam a sensação de aprisionamento interior.

Fé em monstros

Sebastian Stan entrega um Bucky Barnes perdido no emaranhado político da burocracia. Já não carrega ideais, apenas a si mesmo ou o que restou dele. Já foi uma arma humana; agora é só um resquício. Seu braço metálico, antes instrumento de guerra, hoje é um símbolo oco, um lembrete físico de um papel que perdeu o sentido. Ele tenta se reconstruir em um mundo que deixou de fazer sentido assim que deixou de ser o Soldado Invernal.

Yelena Belova, a impetuosa personagem de Florence Pugh, atua como uma presença provocadora não só nas ações, mas também nos diálogos afiados e cínicos, que constantemente expõem a fragilidade dos outros membros do grupo. Seu confronto com John Walker, vivido por Wyatt Russell, é carregado de tensão verbal: dois personagens que espelham versões distorcidas de heróis maiores (Viúva Negra e Capitão América), tentando justificar suas existências a partir do que representam e não do que realmente são.

Russell e o Guardião Vermelho de David Harbour surgem como reflexos trincados de um ideal corrompido, versões falhas e desbotadas daquilo que o símbolo do Capitão América um dia pretendeu representar. Ambos encarnam não a glória do soro do supersoldado, mas o vazio que ele deixou: os efeitos colaterais emocionais, éticos e identitários de um experimento que prometia força, mas entregou fraturas.

Harbour projeta um Guardião Vermelho falho e caricato, uma figura paterna desajustada, que alivia a tensão sem esvaziar sua carga. Em suas vulnerabilidades expostas, há tanto ironia quanto ternura: são alívios cômicos não por zombarem da dor, mas por humanizarem os escombros do heroísmo.

Pugh é o coração do filme, ancorando emocionalmente a narrativa com uma performance hipnotizante que equilibra vulnerabilidade e força, reafirmando, com a mesma intensidade que consagrou na A24, seu lugar como uma das atrizes mais versáteis de sua geração.

Justiça, como um relâmpago

A estética do filme reflete essa ambiguidade emocional, como um espelho das perturbações psíquicas e da vulnerabilidade mental que atravessam a trama. Schreier aposta em uma ambientação de cores frias, mas pontua o cenário quase todo de um cinza concreto, com tons saturados de amarelo-dourado. Esse contraste cromático, que em teoria deveria sugerir conforto ou heroísmo, acaba gerando uma sensação desconfortável e plástica, como se os personagens estivessem presos em uma versão distorcida de si mesmos.

Essa inversão simbólica ganha força no tom maquiavelicamente cômico de Julia Louis-Dreyfus: sua versão de Valentina Allegra de Fontaine domina o filme como uma mestra de marionetes, jamais pega de surpresa. Mesmo quando seu plano falha, ela imediatamente recalcula a rota, fingindo que a falha fazia parte de sua estratégia o tempo todo, manipulando todos ao seu redor com um carisma de mil sóis.

O dourado, em vez de irradiar glória, transforma-se em um verniz opaco que encobre ruínas morais, uma alegoria direta ao antagonista Bob, o Sentinela, vivido por Lewis Pullman. Sua presença evoca os arquétipos clássicos dos super-heróis, figuras que os demais personagens tentam desesperadamente emular. No entanto, o reflexo que ele projeta é distorcido, rachado, como um espelho antigo que já não sustenta a ilusão.

O Sentinela não se impõe como ameaça externa, mas como o ápice simbólico das fraturas internas dos protagonistas. Ele é moldado, ou talvez revelado, por essas rachaduras: cada personagem o projeta como uma resposta possível ao seu próprio vazio. O inimigo maior não é ele, mas o reflexo da dor, do abandono e da sensação inescapável do peso invisível de existir como náufrago no próprio corpo. Em certos momentos, tudo o que resta é ter coragem para aceitar a mão estendida e isso já é um ato de heroísmo.

Essa dinâmica entre os personagens não é arbitrária: Schreier constrói o grupo como um sistema de projeções. Cada personagem funciona como o “espelho do outro”, refletindo aquilo que o outro recusa em si mesmo, um jogo de duplos e lacunas que remete diretamente à noção lacaniana de que o sujeito se constitui no olhar do Outro. A união entre eles é movida mais pela necessidade de pertencimento do que por objetivos morais, uma aliança forjada na falta, no deslocamento e na tentativa de preencher um buraco que não cessa de retornar.

O momento de autocrítica

O último filme da Fase 5 torna-se também um reflexo da própria Marvel Studios que, após o fim da saga do Infinito, parece atravessar uma crise identitária semelhante à de seus personagens. Com mudanças bruscas de direção, inserções apressadas de ícones como o Doutor Destino e reescritas de última hora, o estúdio revela-se como um corpo simbólico à procura de coesão, tentando resgatar um sentido que se perdeu no excesso de bifurcações.

Thunderbolts se impõe como um metacomentário sutil e talvez desconfortavelmente lúcido sobre o estado atual do MCU: uma franquia que, ao perder seus pilares simbólicos, tenta se reconstruir com figuras antes periféricas, agora lançadas ao centro de uma narrativa que não sabe mais o que é foco, apenas sujeitos tentando existir entre os escombros de uma moralidade ruída. O protagonismo, aqui, é instável, disputado e mutante.

Jake Schreier, longe de camuflar esse colapso, o transforma em linguagem. Sua direção não busca restaurar a antiga ordem heroica: ela expõe a fratura, a cicatriz, o ruído entre o que se espera e o que se é. E, por isso mesmo, essa jornada fragmentada merece ser vista na maior tela possível, não por causa dos efeitos, mas pela brutalidade humana que respira, silenciosa, por trás de cada traje em ruínas.