Serei a primeira a admitir: não estava lá tão animada por mais um filme de super-herói em 2023. Não estou só falando da óbvia exaustão do gênero, mas também pelo fato de que o filme em questão era da DC. E não, não estou entrando no coro da chacota que “marvetes” cegos fazem, mas sim, expressando o sentimento de uma decepcionada fã do Flash/Barry Allen e com todo o caos que foi a campanha da película – e o próprio filme em si.

Tem também outro pequeno problema: eu não costumo sentir muita coisa quando vejo um filme da DC.

Como o homem de lata do “Mágico de Oz”, a DC caminha com uma armadura brilhante, tendo “The Batman” (2022) e “Coringa” (2019) para ostentar, mas sem coração. Entre as partes amassadas pelo morcego milionário e os baits feministas de Diana (“Mulher-Maravilha”), eu sempre senti falta de algo que me fizesse me importar com esses personagens.

E, para a surpresa de ninguém, quem é capaz de corrigir isso é justamente quem Hollywood mais tentou esconder, destratar e deturpar nas histórias que escolhem contar: os latinos.

Em “Besouro Azul”, novo lançamento da DC/Warner Bros. Pictures, o sangue mexicano de George Lopez, Belissa Escobedo, Damián Alcázar, Adriana Barraza, Elpidia Carrillo, Raoul Trujillo, Harvey Guillén, Becky G, se une a Xolo Maridueña (também descendente de cubanos e equatorianos) e é o que salva o estúdio do desfibrilador. Atores, cantores, dançarinos, poetas, saberes originários e séculos de opressão foram necessários para furar a barreira que ter um herói perfeito, tipo o Super-Homem, como garoto propaganda causa. Eu não me importo com a kryptonita de Clark Kent, mas eu quero muito que o recém formado Jaime arranje um emprego.

Lembrando também que Hollywood é um distrito de Los Angeles, uma cidade que poucos lembram, mas carrega um nome em espanhol. Habitada por mais de 30 etnias indígenas antes da chegada dos colonizadores, LA foi uma cidade espanhola até 1821, quando México se torna independente da Coroa e Califórnia passa a fazer parte da sua nação. Em 1846, o americano John C. Fremont toma Los Angeles dos mexicanos. A Califórnia passa a ser definitivamente parte dos Estados Unidos em 1848, com o Tratado de Guadalupe Hidalgo.

Veja o diretor Angel Manuel Soto contando à família de Xolo que ele foi escalado como Jaime:

Parece que estou divagando, mas a vida dos latinos em terras (norte) americanas é constantemente explorada durante o filme. Seja pelo medo da polícia chegar à parte da família Reys “sem papeles”, o subemprego aos quais essas pessoas são submetidas, ou mesmo como a vilã explora a dor de um guatemalteco contra os heróis mexicanos.

Falando nisso, é uma delicia ver menções muito bem feitas da cultura pop tradicional da América Latina. Os adornos encontrados na casa da família, as citações à “Chapolin Colorado” e o paralelo do plot romântico com minha novela mexicana favorita, “Maria do Bairro”, foram toques de mestre. Algo que só um diretor latino (porto-riquenho) como Angel Manuel Soto podia trazer pras telas de forma orgânica.

Já que o assunto é esse, é preciso pontuar que Xolo e Bruna Marquezine têm uma química absurda. Romário (Xolo) tem um carisma que transcende as telas e a independência que Bruna representa desde o primeiro segundo que a conhecemos (manspreading naquele sofá com aquela calça? chef kiss), fazem deles um casal crível. Fico aqui na torcida para que eles voltem a interpretar estes papéis no futuro misterioso da DC Comics sob a batuta de James Gunn.

E sim, sei que eu sou uma espectadora não muito confiável – eu compraria um ingresso desse filme puramente pela Bruna Marquezine. Se o jogo do capitalismo aqui se mede pela bilheteria, então prefiro que o motivo do sucesso sejamos nós, brasileiros lelés da cuca que superam traumas na base do meme – da colonização aos 2% da Larissa Manoela, tudo por aqui é resolvido com um print, uma fonte pixelada e uma edição baseada na estética do paint. Depois de ver o filme, continuo recomendando-o pelo mesmo motivo:

Bruna brilha num contexto onde há várias distrações, fala português numa cena importante e é a pessoa que chora mais bonita da história mundial.

Voltando ao coração: o ápice emocional para mim é quando os agentes invadem a casa dos Reyes em busca de Jaime e a armadura. Existe um tipo de dor específica em ver uma família inteira encolhida no canto de um cômodo, acuados por uma força policial que não os veem como humanos. O gatilho que eu não sei se ganhei ao ler as notícias sobre gente da minha cor, ao ouvir histórias do meu bairro, ao consumir entretenimento feito por brancos ou simplesmente na minha carga genética, é puxado a cada vez que vejo alguém ficar de joelhos na mira de uma arma. Eu comecei a chorar e me lembro de só parar quando a abuela me disse que “vamos ter momentos para chorar e não é agora”.

Depois disso, eu fico levemente distraída como sempre, quando temos cenas de ações sequenciais com todo aquele CGI, mas sei que têm uma parcela grande de pessoas que se importa quase que exclusivamente com isso, então, quero comentar que a armadura prática, aquela realmente vestida por Xolo, é muito bem feita, assim como outros (alguns) efeitos especiais durante o filme. Pra não dizer que terminei sem trazer a tona a rentável rivalidade DC x Marvel, pra mim, ficou praticamente impossível não lembrar do Chicote Negro (“Iron Man 2”), quando Conrad Carapax usa um fio de energia pra dar umas lapadas por aí, fora que ambos tem tecnologia fundidas ao corpo, dai já viu…

Além disso, quero comentar que às vezes o roteiro entregava piadas bobas demais forçando um timing cômico ao elenco que nem sempre chegava. Por outro lado, quero acrescentar pontos a mais pela decisão de envelhecer Milagros, a irmã caçula que tem um papel importante no desenrolar do filme. Ela e a vovó guerrilheira se tornaram minhas personagens favoritas.

Por essas e outras, assistir ao “Besouro Azul” vale a pena, não só porque propõe uma cor para limpar nosso paladar após a overdose de rosa, mas também como investimento nos criadores latinos. É também um movimento para dizer que estamos de olho, para que as histórias que vêm deste lado do continente sejam mais do que personagens memoráveis como os de “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”, ou trama multidimensional de “Pantera Negra: Wakanda Para Sempre”.

Queremos ser mais que o coração, queremos cérebro, pele, corpo inteiro. Queremos México, mas também Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haití, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Nossas histórias sob nossos termos. Latinos somos muitos e duas horas de filme não dá conta.

E dona DC, estou esperando, mesmo que sentada, por filmes com Fogo, Miragem, Allegra Garcia, Jaguar II, Scandal Savage e Wanderer, as personagens brasileiras do estúdio, ok? Ok.

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