Foto: Marcelo Costa Braga

Por Eduardo Sá

Neste ano completou quarenta anos de idade e hoje, sexta-feira (16/08), lança seu primeiro DVD, Passatempo, no Clube Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro (veja aqui o evento). As datas comemorativas não param por aí, pois o músico Moyseis Marques comemora vinte anos de carreira nesse trabalho. Traz no currículo seis CDs, músicas em novelas, shows em diversos estados do Brasil e países mundo afora. Tem parcerias com renomados artistas nacionais, como é o caso de Chico Buarque, que faz parte também desta sua mais recente realização em parceria com a gravadora Biscoito Fino.

Moyseis Tiago Leite é mineiro de Juiz de Fora (MG), mas passou seus primeiros vinte anos no Largo do Bicão, na Penha, subúrbio do Rio. Versátil, dedica-se há anos aos ritmos brasileiros, em especial o samba de raiz, o forró pé de serra e a MPB. Começou com sua viola nos bares e hoje já carrega duas indicações ao Prêmio da Música Brasileira, como melhor disco e melhor cantor. Sua arte pode ser vista em várias plataformas digitais: Itunes, Deezer, Spotify, etc.

Na entrevista à NINJA, ele reflete sobre sua trajetória musical e como o músico profissional não é levado a sério em nosso país. Mesmo com uma carreira consolidada, os desafios para produzir e divulgar seus trabalhos são enormes, além das dificuldades financeiras. Por sermos do terceiro mundo, segundo ele, tudo chega depois e há um desinteresse tanto do público quanto do mercado pela música de qualidade. Inquieto, também faz uma análise crítica do atual governo e dos tratamentos à cultura nacional.

Você fez quarenta anos num show com vários artistas e completa 20 de carreira com a produção de um DVD, o que representa esse momento na sua vida?

Essa aventura de viver de música começou espontânea, as pessoas foram gostando e aglomerando até me tornar um músico profissional. Demora para se dar conta que ser músico é uma coisa e artista outra. Meu compromisso lá atrás se resumia a cantar, tocar e compor, que já é bastante coisa, e ser artista tem entrevistas, ir à televisão, elaborar projetos, etc. É tipo um casamento, vai renovando votos e buscando fôlego.

Sou eclético, muito inquieto, então tenho meu trio de forró, minha roda de samba, meu show com Chico Buarque, outro dia cantei com o Monobloco, já toquei com o Rio Maracatu. Sou muito interessado, adoro jazz, um capítulo que ainda não mergulhei mas tenho muita vontade. Inclusive de estudar nos EUA, que é um país que tenho certa relação.

É legal ver o que me tornei, aonde posso chegar e me posicionar no tempo e espaço. As expectativas que no início são apenas suas passam a ser de quem torce por você, te apoia, é teu fã, compra seu disco, te ouve e vai aos teus shows. São também as minhas expectativas e frustrações dos outros. Às vezes querem me ver ao lado de artistas muito famosos, num programa de horário nobre com uma audiência incrível.

Mas ao lado do Chico Buarque, um dos artistas mais famosos do país, não atende?

Pois é, mas mais famoso para quem? Para nós da classe média, infelizmente o que se vê de mídia de massa não é isso. Não estamos na era dos festivais, sabe? As pessoas não estão interessadas no novo disco do Edu Lobo ou do Dori Caymmi, inclusive se passarem na rua ninguém conhece. E é o que eu quero ser quando crescer, são dos músicos mais geniais desse Brasil. Então, em 20 anos tem desejos que tinha e não tenho mais, em compensação tenho outros. O Aldir Blanc fala que poucos compositores conseguem desfrutar a glória do anonimato, que é estar num lugar e todo mundo cantando sua música sem ninguém saber quem é você.

Paulo César Pinheiro é o maior ícone nesse sentido, muita gente não o conhece.

Inclusive músicos. Eles fazem parte do meu quarteto de super-heróis: Paulo César Pinheiro, Nei Lopes, Aldir Blanc e Chico Buarque. O último é famoso porque foi artista na década de 60, mas não faz shows. Lança um disco, faz turnê, vai à Europa e desaparece. Não é igual ao Gil e o Caetano, que estão em todas e sempre pegando fôlego. É um bicho de palco, eu também tenho uma coisa do teatro, gosto de manipular o sentimento e conduzir. Meus ídolos são esses mais ali naquela coisa de camarim, mas existem várias formas de participar sem estar no centro do espetáculo.

Música tem o cara que compõe, o que escreve o roteiro, o dos arranjos, todo mundo está contribuindo, e tem o bobo da corte principal que conduz. Sem essa estrutura não faz nada. Então é o tempo de analisar essa trajetória e traçar um novo começo com mais consciência de onde se quer chegar. Para o leigo ou você é muito famoso tipo Ivete Sangalo e Anitta ou um João ninguém. Entre eles tem uma gama enorme, o Cartola foi gravar o primeiro disco com 60 anos. Jackson do Pandeiro, que está fazendo cem anos, é uma das minhas maiores referências morreu e não tinha nenhum ícone da MPB no seu enterro. Não dá para todo mundo ser Chico ou Caetano. Na própria tropicália, quantos estiveram ali sem projeção? Torquato Neto, o próprio Tom Zé…

O Tom Zé você acha que não é conhecido?

Hoje em dia né irmão, que se impõe mais pela subversão que pelo tocar e cantar. É outro tipo de genialidade. Falam em Bossa Nova e João Gilberto, mas não em Johnny Alf, que esteve antes disso tudo. Tem essa ausência de expectativa por um lado, certo ceticismo que vamos adquirindo, você cria uma proteção diante do vivemos.

Agora vai ter o lançamento do meu DVD, cheguei a ver alguns teatros, eles até têm data, mas a condição é uma conta que nunca vai fechar. Tem até uma piada: lançou o disco, eaê vendeu muito? Vendi um Peugeot 206, uma televisão 42’’ e uma bicicleta. Não existe mais aquele empresário, antigamente o mercado e a mídia queriam saber das mentes criativas, o artista era medido pela sua capacidade intelectual e técnica. Agora se interessam pelo artista que lota as casas.

O que mudou nessa estrutura fonográfica? Isso dava dinheiro, né?

Na crise as pessoas não querem mais pagar por música, ainda somos terceiro mundo e tudo chega depois. O brasileiro está aprendendo agora a comprar com cartão de crédito, então antes de baixar seu disco no Itunes tenta de toda maneira baixar de graça. Se não consegue, talvez pague de 15 a 20 reais. A minha geração ficou no meio desse limbo, ainda peguei esse resquício.

Se assinasse um contrato com a gravadora estourava um champagne, se ela quisesse gravar um disco comprava um carro. Se gravasse um disco com Zeca Pagodinho já levava R$ 50 mil pra casa. Hoje você pega o disco, e o que vou fazer agora? Tem uma minoria que compra, mas não é uma coisa de massa. Você vai ao meu show no Circo cheio e acha que tô bombando, mas só em certo contexto e nicho.

Foto: Marcelo Costa Braga

Mas você é um artista que já tem certa visibilidade, tanto é que deu entrevistas a várias mídias nesta semana.

Sim, mas quem lê O Globo ou o Correio Braziliense? Eu compro o jornal, tiro a foto da matéria e posto nas minhas mídias sociais, impulsiono no meu cartão de crédito, que faz com que isso chegue às pessoas. Acham foda ter saído no jornal, a gravadora foda, só que é o meu cartão. No meu primeiro disco em 2007 eu era capa do Segundo Caderno, fui à Hebe, ao Jô, tive duas músicas em novela, todo mundo falava que depois que eu botasse uma música em novela ia estourar.

Não estou criticando as plataformas digitais, só dizendo que estamos atrasados. A geração depois da minha já tem outro esquema de trabalhar com singles. Mas claro que essas ferramentas dão possibilidade, mesmo sem o respaldo de uma gravadora. Se viajo o Brasil todo, cantei na maior casa de jazz da Europa, vou todo ano aos EUA, não é porque minha música entrou na novela. Foi por causa da mídia social, mas capitalizar isso a ponto de ficar tranquilo e não preocupar com dinheiro? Não. Tenho 20 anos de carreira e continuo indo ao Mundial fazer compras, parcelo coisas, devo, entende?

Você acha que essa dificuldade de sustentabilidade do músico é por falta de incentivo dos poderes públicos e do mercado?

Quem está interessado nisso? Essa é a questão. A música tem uma coisa muito cruel, qualquer outra profissão se você é foda cresce, é promovido, remunerado. Na música você pode cantar e tocar pra caralho e as pessoas não estarem nem aí pra você.

Tenho percebido que há uma diferenciação não só do pagode pro samba, mas dentro do próprio samba em definir qual é a linha de raiz ou não.

É uma discussão velha, porque pagode significa festa. O rei do samba é Pagodinho, ele mesmo não explica a diferença porque não tem. Conheço bons pagodes e outros ruins. No samba tem uma galera nova que gosta do mais antigo, busca os primórdios: Ismael, Cartola, Noel, etc. Tudo é samba no final das contas. O de 1917 era mais maxixado, como o Pelo Telefone. Em 30 e 40 tem uma coisa de cronista, como Noel, já em 50 tem os sambas carnavalescos. Depois tem samba de partido alto, breque, gafieira, canção, choro, terreiro, quadra e enredo. Em 80 vem Fundo de Quintal e por aí vai, tudo samba.

Tem a galera da zona sul estudada, a Leila Pinheiro dizia que o Tom ficava puto com essa história de Bossa Nova: Samba de uma nota só, de Orly, do Avião, é tudo samba. Então há subdivisão, assim como no forró: xote, baião, rojão, arrasta pé, etc. Tudo faz parte de um oceano muito profundo e vasto. Minha geração bebeu tudo isso, tem o João Martins que faz assim, o Mosquito que faz assado, eu mais com violão, o João Cavalcanti mais crânio, o Alfredo Del-Penho um baita instrumentista. Todos fazem parte da mesma coisa, cada um à sua maneira.

Amo Paulo César Pinheiro, Almir Guineto, Chico Buarque, mas cresci ouvindo Raça Negra e Só pra Contrariar, junto com Leci, Jovelina, tudo junto e misturado. O problema é quando entra la plata. Neguei atalhos, recebi muito convite para cantar pagode na década de 90. Você faz o que quer do seu talento.

São escolhas e renúncias e muitas vezes você deve ter se sacrificado por isso, mas acredito que ao mesmo tempo é muito gratificante também.

Me sacrifico até hoje, meu caminho é de formiguinha. Sigo uma linha que acredito e sei fazer, gosto e sou mais eu. Você vai educando o público também, acabei de fazer um show com Del-Penho e o Pedro Miranda só de músicas nossas. Duas horas com as pessoas lá chorando, embevecidas, aplaudindo. E o mercado quer me convencer que as pessoas não estão interessadas.

A cultura é tratada como sobremesa, quando devia ser tratada como arroz e feijão.

Tenho um produtor, mas não é nenhum grande empresário. Ele quer alguém para investir, atualizar o site, me dar tranquilidade de ficar um pouco mais em casa. Tenho 40 anos, e quando tiver 70? Hoje estou adorando tocar 19h da noite e 23h estar em casa de cueca tomando minha cerveja vendo televisão. Gosto da boemia porque minha inspiração maior é as pessoas, mas tem um paradoxo muito grande na minha profissão: me orgulho muito de viver de música, mas a pior coisa é depender da bilheteria para pagar o colégio da sua filha. Cai uma chuva e tu chora, ou tem um Paulinho da Viola no Circo Voador. As pessoas estão duras também, vão onde quiserem e o dia que eu precisar ficar implorando para me ver a arte perde sentido.

Dá a impressão pelo seu trabalho que a cultura popular nacional te encanta profundamente, o que você pensa sobre ela?

É raiz, ancestralidade, o que brota do chão, do barro, que dá essa sensação de pertencimento. Quando estou numa roda de capoeira em Padre Miguel me arrepio. Acredito nas forças da natureza, estou afastado do Candomblé mas acredito no mar, no vento, no céu, no movimento da terra e dos astros. Tudo isso brota de um lamento, um refúgio e isso permanece. O blues é um canto de lamento, uma ladainha de capoeira também, o forró é feito dentro de uma seca, tudo isso fica. Quando você reproduz aquilo se conecta, é o que faz você ser brasileiro e dá sustância à sua carreira.

A música vem a partir disso, se hoje acerto no repertório mais do que erro é por ver o que as pessoas querem. Acompanho essa produção de perto, e a cultura popular é um dos maiores tesouros que a gente tem. O Brasil é uma potência lá fora não pela sua arquitetura, nem engenharia ou medicina, é por causa da sua cultura e arte. São 519 anos de exploração convertidos numa arte indígena, negra, africana, europeia, americana. Tudo isso gerou essa música forte, rica, diversificada, inclusiva e com tantas texturas, ramificações. Tantas possibilidades harmônicas, melódicas, líricas, etc.

Foto: Marcelo Costa Braga

Mas para além do sentimento, como você vê o tratamento à cultura?

A cultura é tratada como sobremesa, quando devia ser tratada como arroz e feijão. A Beth Carvalho morreu dizendo que o samba devia ser ensinado nas escolas. Quando cantamos falamos de forças da natureza, escravidão, amores não respondidos, política, ditadura, tudo. É a história do país traduzida através de arte, só que uma das funções da música é entreter. Além disso emociona, transforma, acessa lugares nas pessoas que nenhuma outra arte acessa.

Num momento como hoje, onde os artistas são inimigos do país, as autoridades não estão nem aí, o entretenimento tomou a poesia. As poucas políticas públicas estão sendo dizimadas, até a possiblidade de fazer festa na rua está encontrando dificuldade. Estamos no terceiro mundo.

Segunda vez que você cita isso, didaticamente o que quer dizer?

Nos EUA, por exemplo, as pessoas se interessam. Aqui falo sou músico, aí perguntam: e o seu trabalho? Não é levado a sério, se você não tiver num Domingão do Faustão ou ter a cara no outdoor. Vejo isso quando tenho que alugar um apartamento, comprar um carro, estou numa imobiliária, um crediário ou coisa que o valha. Hoje sou inquilino do Luiz Antônio Simas, um baita gênio, pela primeira vez uma pessoa me respeita pelo que construí. Estudo pra caralho harmonia, teoria musical, rítmica, técnica vocal, violão, tanto quanto um médico, engenheiro, advogado, dentista. Estudei na federal de química, meus amigos são nutricionistas, farmacêuticos e parece que a música é menos. Apesar dos 60 mil seguidores ainda sou minoria. A maioria quer saber de outras coisas.

Isso é sintoma de uma alienação geral, que inclusive teve ressonância política gerando o cenário atual?

O Brasil é uma republiqueta com uma jovem democracia, uma corrupção sistemática, endêmica e estrutural. Criado nesta base desde que os portugueses chegaram, e parecia que estávamos caminhando para um lugar com mais diversidade, por mais que ainda se tenha muito a caminhar. Aí vem um e fala: tem que botar ator negro. Hoje botam 3 negros e 15 brancos, mas e o diretor e o escritor? Só com ator ele vai continuar fazendo papel de subalterno. Aquela música do Moacyr Luz: estranhou o quê, o preto pode ter o mesmo que você. Dignidade, alimentação, moradia, é o básico, ele está falando: o carro, morar no seu prédio, ser presidente, senador, chefe de empresa. Esquecemos que Machado de Assis era negro. Tudo isso vem através de golpes, seja militar ou parlamentar, como foi o último. O cara que autorizou o impeachment está preso. Mas também acho que o petista doente é tanto quanto o bolsonarista, a esquerda festiva é tão maléfica quanto o pobre de direita.

Minha discussão política com os amigos mais íntimos termina quando pergunto o preço da passagem de ônibus. Nunca foram ao hospital público, vivo sem plano de saúde há mais de cinco anos. Minha filha nasceu em hospital público, quando teve pneumonia foi tratada, está no colégio Minas Gerais, que é referência em escola pública. Com sete anos está estudando espanhol. Então existe, mas tem que democratizar.

Como tirar aqueles sexagenários brancos do congresso nacional de uma vez? Essa pessoa que foi eleita, a maneira como chegou ao poder, é o que mais me irrita. Não só porque é homofóbico, idolatra torturador, xenófobo: isso é um retrato do Brasil. Por ser um cara completamente despreparado e desqualificado para exercer aquela função. E o brasileiro bota ele lá dessa maneira: facada, whatsapp, fugindo do debate, prendendo o Lula e o tirando da eleição, etc.

Me preocupa porque essas pessoas são desequilibradas. Imagina do que é capaz quando a casa começar a cair, como já está acontecendo? Zavascki ninguém fala mais, não estou nem falando de Marielle, que quanto mais abafam mais ela se reverbera. Carisma ninguém compra. Espero que esta merda que está acontecendo sirva para prestarmos atenção como as coisas acontecem, pensar mais nos deputados, senadores e vereadores que votamos, não só no executivo.

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