Foto: Marcelo Costa Braga

A rapaziada da antiga, vários novos artistas e os pesquisadores apontam João Martins como um fenômeno da nova geração do samba. Cria da zona sul, do bairro do Catete, aos 35 anos já passou por todos os bairros do subúrbio carioca levando sua poesia. Subiu no palco com a nata do samba em todas as casas da cidade, e anda percorrendo o país fazendo shows. Chegou a fazer turnê nos Estados Unidos e na Europa nos últimos anos.

A partir da Lapa, coração da boemia no Rio de Janeiro, foi trilhando sua carreira. Passou pelas tradicionais rodas do Clube Renascença e do Cacique de Ramos, dentre outras, e hoje tem sua própria banda. Gravou no DVD do Samba Social Clube, iniciativa da então rádio MPB e hoje da rádio Tupi, que dá voz à nova geração. Participou recentemente do Rock In Rio com o coletivo Festa da Raça, que envolve um time de respeito da turma que tem se destacado nas rodas cariocas, com a benção da matriarca Leci Brandão. Tocaram no Palco Favela para milhares de pessoas entre os grandes artistas do mundo.

João Martins se destaca pelo seu talento com o banjo e pelas suas belas composições. As músicas dos discos Juízo que dá samba (2009) e Receita para amar (2012) estão nas plataformas digitais (Spotfy, Deezer, etc) e fazem parte dos repertórios das rodas de samba da cidade. Lançará em dezembro pela Deckdisc seu disco Suspiro com quatorze músicas autorais, contando com a participação de Diogo Nogueira, Sombrinha e Reinaldo, que faleceu no mês seguinte a gravação. Tem tudo para ocupar o espaço dos grandes nomes do samba que, infelizmente, a cada ano vão nos deixando.

Ne entrevista à NINJA, ele conta um pouco da sua história e dos seus trabalhos atuais. Fala também sobre a renovação do samba e a importância deste gênero para a cultura popular, além de elogiar o aumento da participação das mulheres neste movimento. Por outro lado, critica a falta de profissionalismo no meio e as dificuldades do artista viver da música. Não poupa críticas também ao cenário político atual, e não só ao governo mas também à classe média que, segundo ele, não tem consciência do que é o Brasil para além do sudeste e das grandes cidades.

Você se meteu no samba através do seu pai, né?

Meu pai [Wanderson Mantins] também é músico de formação, toca com o Martinho da Vila há 25 anos, tocou com a Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, Dona Ivone Lara, viajou o mundo todo, tocou com o Paulo Moura. Então, desde pequeno em casa estive próximo de produção. Meu pai produzia muitos discos, não a ponto de ficar rico mas era um mercado mais justo para quem queria viver disso. Vi dentro da minha casa que era possível, além de me interessar pela música em si.

Sempre brinquei em casa com instrumento, arranhava um tantãnzinho, e depois adolescente comecei a me dedicar mais. Eu toco toda a percussão, mas profissionalmente é cavaquinho e banjo, além da composição. Agora me chamam também para cantar e eu vou sem instrumento. Canto as minhas músicas e as pessoas estão gostando, já é um reconhecimento.

Foto: Marcelo Costa Braga

Como você vê o samba de raiz hoje?

O foco do meu trabalho na verdade não seria um “samba de raiz”, porque raiz é uma coisa profunda e conota os antigos e as coisas antigas. Claro que durante muito tempo pesquisei os antigos, por curiosidade e demanda de trabalho, de repertório, para buscar inspiração. Ouvi muito Nelson Cavaquinho, Cartola, a velha guarda do Império Serrano, Dona Ivone Lara, Almir Guineto e Fundo de Quintal, Candeia, tive que ouvir isso tudo. Mas hoje em dia o meu trabalho não é reprodução desses grandes mestres: é a criação, não é nem renovação, é a continuidade do que eles ensinaram. Então tem toda uma responsabilidade poética, melódica e temática. Estou em lugares com tradição de ser berço da cultura mostrando uma coisa nova. Meu trabalho é movimentar o cenário.

Você está lançando seu terceiro disco neste mês, por que agora? Quais são as participações e qual é a pegada?

Desde o DVD do Samba Social Clube não gravava nada oficial, e esse disco faz uma releitura de quatorze músicas que pela primeira vez estou me permitindo trabalhar com outras pessoas. Os outros discos fiz com meu pai, produção dele, arranjos, mas agora é com o Leandro Sapucay, que possibilitou trazer outros arranjadores, como o J. Moraes, além de convidados. O produtor faz a concepção do disco, convida os músicos e vai reger o estúdio. O arranjador escreve os arranjos pra música, as introduções, o que o violão e a percussão vão fazer, que vem por trás do cantor. Dessas minhas quatorze músicas algumas já foram gravadas por outras pessoas, mas não por mim. Aí tem alguns parceiros como o Moacyr Luz, Fred Camacho, Leandro Fregonesi, Inácio Rios, Raul Dicaprio, Moreno, um monte de gente boa pra caramba. Reinaldo e Sombrinha também.

Muitos pesquisadores, músicos antigos e novos te apontam como um dos ícones da nova geração. Como você vê o samba atual e teu papel neste contexto?

Fico muito feliz pelas pessoas comentarem e estar vendo as coisas. Esse negócio do Rock In Rio, do alto escalão do samba a Leci Brandão foi crucial no processo, a única que falou alguma coisa fora os nossos amigos da nossa geração que torcem por nós. Nem as casas de samba onde a gente toca, parceiros com quem já cantamos, nenhuma citação do pessoal do samba. A gente achou que teria uma visibilidade. Talvez também a gente não tinha clareza do que queria que acontecesse. Aparecemos lá no Canal Bis com Nelson Sargento, foi legal mas o baile segue.

Na entrevista que fiz com o Moyseis Marques ele falou que teve música tocando em novelas, passou por programas de auditório, tocou em grandes casas na Europa e até hoje não tem um conforto financeiro e um maior reconhecimento pelo seu trabalho.

Exatamente. O nosso mercado, desses artistas que participam desse fomento, é foda porque as rodas de samba empregam muita gente, várias famílias tiram seu sustento nesses eventos. É um grande mercado, e às vezes nos indignamos passionalmente porque o samba merecia estar melhor. Nem me preocupo com outros gêneros que se destacam mais, o problema é que somos muito boicotados. Melhorou muito, mas é importante avançar também artisticamente nossas carreiras individuais, porque o músico hoje tem que fazer diversas atividades que não são da música exclusivamente.

Nem me preocupo com outros gêneros que se destacam mais, o problema é que somos muito boicotados.

O Rubem Confete, que já é um ancião, falou exatamente sobre essa falta de organização e profissionalização no meio do samba.

Não é culpa dos novos artistas. Tinha que ter uma organização melhor, a galera da antiga não tá ali vibrando com a gente, não tem aquele sentimento de torcida pelo nosso trabalho. E não soa como frustração não, acho que todo mundo podia participar daquela festa ali da forma que fosse… É um festival, de estrutura, de cachê exorbitantes, não é uma esmola para o samba, foi uma conquista que deveria ser vibrada, mais repercutida. Obviamente que seu Nelson Sargento terá mais holofote desse processo, porque é um senhor de 95 anos com uma história do caralho participando de um festival de rock. Mas nossa rapaziada também estava ali segurando a bandeira.

O que te comove e inspira para compor? O que é compor pra você?

Penso muito que compor é uma oportunidade, assim como se pode dizer que a inspiração é não sei quantos por cento de transpiração, mas o que gera a composição é o mote, o tema. Quando você vê naquilo uma oportunidade se empenha e faz. Buscar um tema já é uma coisa mais sofrida, mas se você força rola. Não é o recomendável né, melhor é você se sentir à vontade e sentir aquele momento, transmitir aquela mensagem com sentimento. O que me move para compor são os momentos, as próximas coisas que vão aparecer.

Em geral suas composições são crônicas então?

Pode dizer que sim, né? Do que acontece, do que a gente imagina, são os momentos. Em relação aos assuntos, faço letra e melodia, mas essas coisas nem sempre andam juntas. São dois caminhos, o com a melodia ou a letra separados, e tem com eles simultâneos com a música toda junta. Gosto de todos os processos: fazer melodia para letra e letra para melodia, ou os dois juntos. Ao fazer a letra de uma música você pode viajar, já na música você tem umas pistas para letra, como se a música já tivesse feita e você vai traduzindo ou tentando dizer.

Foto: Marcelo Costa Braga

Na história do samba tem várias linhas musicais, como o partido alto, o samba canção, dentre muitos outros. É possível caracterizar o estilo contemporâneo?

Essas correntes do samba é um assunto meio foda, vejo o samba como uma família: alguns brigam, alguns não se falam, uns brigam por heranças, outros são primos e só se veem uma vez por mês, ano ou década, tem quem não se veja nunca, aqueles que têm primo noutro estado, aquele (a) que sempre arruma problema, o que é ruim de dinheiro ou o que dá volta nos outros, etc. Toda família tem problema, tem de tudo ali dentro, o galinha, a mulher desimpedida, o viciado, o homossexual, etc. E nessa diversidade, as pessoas se assimilam com o seu gosto musical, sua afinidade de amizade, e por isso tem vários grupos. Não sei se tenho por essa ausência de fala, de chamar pra conversar, aquela coisa de poder, que as pessoas se aproximem dos mais novos, não sei como funciona para você ser um cara que tenha um livre trânsito para qualquer corrente dessa. Tem pessoas que têm, mas definir plenamente quais são essas correntes, onde elas ficam e como são, é difícil porque são como as correntes marítimas: é como no oceano, as correntes se misturam.

Você acha que a tradição se reinventa, no sentido que a rapaziada hoje tem outro jeito de se vestir, tatuagens, falar, comportar, mas ainda bebe ali na música de raiz?

A tradição se reinventa, mas por que o pessoal tem que andar de linho ou coisa parecida? Não tem uma objetividade, e te digo mais: a gente não tem nada de transgressor, é tudo pai de família. Não é mais um movimento de jovens; estou entre os mais novos com 35 anos. Se quem quiser vir depois se vestir de chapéu de palha ou linho que se vista, cada um tem sua identidade e não tem por que datar por estas vistas rasas. Em relação à mistura de músicas deve realmente incomodar, pela novidade do tipo de som que é emitido. Às vezes o barulho incomoda quem trata o samba como uma coisa muito sacra, como se só o popular antigo fosse bonito e o novo não. Aí já acham que vira um pagode, mas a gente mesmo às vezes se remete a alguns que não gostamos como “pagodeiro”. Então a gente é alvo e faz isso, temos preconceito com nós mesmos. (risos)

As mulheres têm ocupado muitos espaços no samba, há um movimento crescente com muitas novas musicistas e cantoras. Como você avalia essa ascensão?

O Brasil sempre foi o país das cantoras, as mulheres no samba sempre tiveram este específico papel, seja como grande artista ou pastora. Tem também a contação da feijoada da Tia Surica, que mistura a música com a comida e a mulher não quer mais estar só na cozinha. Mas desses anos para cá, o que é legal pra caramba e está fortalecendo, são as mulheres compondo e tocando também na roda que era um espaço tendencioso ao masculino. Talvez porque houvesse um imaginário de que precisava de um esforço físico maior ou uma adequação de tradição que seja, mas agora elas estão fazendo tudo. Acho ótimo, na minha banda tem a Jéssica Lany, uma percussionista fera demais.

Como é no mercado a relação do artista com as casas tradicionais de samba? Dá para viver profissionalmente com os acordos feitos, é justo?

Varia muito, depende de bairro, de evento, de um monte de coisa. Todos são meio que bares ou botequins, o que faz essas casas prosperarem temporariamente são as programações musicais. A comida não é melhor que outros lugares, a bebida não é a mais gelada, não tem nada de mais a não ser a qualidade das músicas, que temporariamente leva um público maior e depois aquilo flui por outros rumos e tendências da moda. Acontece que todos esses donos dessas casas chamadas tradicionais, porque tem clubes, quadras de samba e bares, esses caras que trabalham com evento não são tão justos. O que importa é você chegar com uma estrutura e fazer ou não.

Durante muito tempo fui um músico pegando o cachê acompanhando um cantor ou uma roda de samba. Fiz parte de um grupo, onde o dono dividia o dinheiro da forma que ele queria e a negociação era diretamente dele com o contratante. Depois virei artista e comecei a vender participação em outros sambas, que o contratante tratava direto comigo me pagando um valor diferente de outros músicos da roda que ele organizava. Agora estou começando a ter um contato com empresário e produtor que fecham meus shows, que é diferente, esses mesmos contratantes donos das casas tratam diferente com empresário de artista.

Em que nível de profissionalização se encontra o seu trabalho, você hoje tem uma produtora, um marketing terceirizado, etc?

Antes eu vendia meus shows, então tinha contato direto com quem queria que eu fosse cantar. Agora estou com o Pedro Vieira me ajudando e fizemos uma produtora nossa, que é a Quiabo Produções, atrelada a Muller, um escritório estabilizado por onde grandes artistas passaram. Então estamos com essa nova parceria com a produtora nova atrelada a um manager mais experiente e com mais atalhos. A partir deste nosso terceiro disco e com mais estrutura vai ajudar a chegar melhor numa rádio, cuidar das redes sociais, estruturar melhor a carreira.

O que você pensa sobre o direito autoral?

Mudou, não pegamos dinheiro com venda de disco ao gravar música porque não há venda. Agora, em relação a arrecadação é muito dinheiro que os caras pegam, entende? A editora come ¼ do que você recebe de direito autoral, e se você negociar adiantamento esse dinheiro não abate na tua conta. Ou seja, comem 25% do seu direito autoral, isso com ninguém gravando ou vendendo disco.

Foto: Marcelo Costa Braga

O samba representa algum papel no campo da política através da cultura?

A política que a gente acredita é a da inserção, não a excludente, autoritária ou que visa os interesses dos grandes. O samba é político, mas você tem que ver a política na ótica de como você acredita na política como um todo. Se você quiser aplicar a do opressor, do safado, do cara que tem muito dinheiro e explora os outros, é uma política, mas quando você vê a inclusão e olha esse Brasil… Tenho viajado muito, Cuiabá, por exemplo, terra de fazendeiro no Mato Grosso, você vai na periferia e vê toda uma resistência do pagode. O Pagode do Bilão, que é do caralho, uma resistência tremenda no Pará. Às vezes eu vou a Ananindeua, a quarta cidade pior em saneamento básico do país, um contratante que me leva com sacrifício para fazer show lá.

Uma cidade periférica, cujo público vê o meu trabalho e admira, e é um público da quebrada, da periferia, de classe média baixa, que me relata que teve uma ascensão social um pouquinho de um tempo para cá com um governo da forma que a gente acredita. De poder pagar uma passagem de avião, ter acesso a internet, não é só o ter e sim estar num ambiente melhor do que se viveu nos anos anteriores. Viajo e vejo que é foda, o cara que me contratou mora no condomínio do Minha Casa Minha Vida, e tem um montão aí que critica mas nunca entrou num lugar desse. São esses programas, como o Luz para todos, dentre outros, então quem não conhece o Brasil não pode dar pitaco. Se achar que o país se limita ao Leblon, Rio de Janeiro ou sudeste, está errado. São polos de visibilidade muito diferentes, tem que andar esse Brasil, e tenho andado e visto.

O samba perdeu a religiosidade e a negritude?

Não acho. Enquanto estiver todo mundo na sintonia e com o  mesmo sentimento, onde o samba é a espinha dorsal, são matrizes africanas, o negro é o principal agente das coisas que a gente faz. Às vezes nas redes sociais o cara fica aflito para dar uma opinião sobre tudo, que ele esquece de ler e ouvir algo que está muito próximo a ele sem ter muita noção da realidade do outro. A nossa luta nunca pode afagar a luta dos outros, mas invés de falar talvez seja a hora das pessoas escutarem quem está sofrendo com as mazelas sociais.

Se você não está pronto para ouvir, acha que em treze anos do governo do PT o Brasil foi quebrado, está sendo leviano. A gente fica reproduzindo pela proximidade ou pela cultura, um discurso próximo de amigos nossos, de gente que mora na zona sul. Muitos são inteligentes, tiveram acesso a um estudo de qualidade, mas estão passando um atestado de mal caratismo. Está faltando um pouco de Brasil para esses caras, que estão iludidos achando que a salvação será entregar o país nas mãos de perigosos e, afinal, despreparados.

Fizemos uma entrevista em 2013 quando estavam estourando as manifestações. De lá para cá você se informou mais e politizou bastante, como avalia o cenário atual?

Vejo um ataque às coisas que são brasileiras de verdade. E as mídias de comunicação são muito bem entrelaçadas na forma de polarizar. Os grandes conglomerados midiáticos ficaram muito tempo com esse coronelismo na mão, ganhando muito dinheiro e movimentando as coisas do seu jeito. Agora estão assustados com os evangélicos, tomando postura de botar pautas nas programações e até hoje sustentando que Lula tem que ser preso e acabou. Endeusaram o Sérgio Moro e agora estão com o cu na mão porque a Record está vindo pesada, e quando essa coisa do Moro estourar vão refletir sobre a propaganda que fizeram e o império vai desandar. O poder é tendencioso e abrange muitas coisas, mas eu chego em casa cansado e boto numa novela, um jornal, o que eu vou fazer? É cultural. É uma vida do cão, é o dinheiro amassando nossa vontade de viver, nosso tempo e nosso talento.

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