Por Alexandre Cunha

O fio invisível entre a câmera e o personagem filmado. Neste espaço imaginário da feitura cinematográfica documental, onde sons e imagens se eternizam em discursos, houve – no Brasil – um intermediador máximo, um virtuoso ouvinte de narrativas da realidade: Eduardo Coutinho. Documentarista de maior renome na história do país, o cineasta é dono de uma obra esplêndida, na qual a figura humana é registrada, despida e, por que não, compreendida. Neste Dia Nacional do Documentário Brasileiro (7 de agosto), relembramos a trajetória de um dos principais artistas do nosso audiovisual. 

Nascido em São Paulo em 1933, Eduardo Coutinho teve seu primeiro contato com o cinema na década de 1950. Em 1957, venceu um concurso de televisão respondendo a perguntas sobre Charles Chaplin; com o dinheiro do prêmio, foi à França estudar direção e montagem no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), onde realizou seus primeiros documentários. Retornou ao Brasil em 1960 e começou a trabalhar em filmes que retratavam a realidade brasileira sob uma nova perspectiva. Foi gerente de produção de Cinco vezes favela (1962), um dos marcos fundamentais do Cinema Novo.

Em 1964, iniciou as filmagens da sua obra-prima, Cabra Marcado para Morrer: interrompida pelo golpe militar, as filmagens da produção só seriam retomadas em 1980. Antes disso, Coutinho enveredou pelos caminhos dos filmes de ficção: dirigiu “O pacto”, episódio do longa-metragem ABC do amor (1966), e obras como O homem que comprou o mundo (1968) e Faustão (1970). Formado em jornalismo, reaproximou-se da sua formação com a direção de documentários para o Globo Repórter, entre eles Teodorico, o imperador do sertão (1978) e Exu, uma tragédia sertaneja (1979).

O cinema de Coutinho é um exercício permanente da alteridade. Com equipe de filmagem mínima, o cineasta buscava horizontalizar toda a interação com seus personagens, numa relação de igual para igual, sem a tola hierarquia que costuma acompanhar a etiqueta de “diretor de cinema”. No documentário de Coutinho, a equipe aparece e o diretor passa em frente à câmera; a concepção metalinguística está presente, porque não há intenção de iludir o espectador. Expondo-se com seu corpo e sua voz, Eduardo Coutinho se tornava também personagem de seus filmes, numa simbiose profunda entre diretor e narrativa.

Cabra Marcado e outras obras inesquecíveis

Cabra Marcado Para Morrer (1984) fez impressionante carreira em festivais mundo afora: entre os louros, conquistou o Prêmio da Crítica Internacional do Festival de Berlim. Um resumo perfeito para a obra máxima de Coutinho está no texto de Roberto Mello para o Jornal do Brasil, publicado em 1985: 

“As filmagens começaram em fevereiro de 1964. Coutinho pretendia contar a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado em 1962. Não queria atores profissionais: que os personagens fossem interpretados pelos próprios camponeses. Dezessete anos depois, Coutinho volta à região, consegue encontrar Elizabeth e, através do filho mais velho, Abraão, investiga o destino dos outros dez filhos e de todos os envolvidos no projeto. Ele exibe os originais filmados há tanto tempo, os camponeses se alegram com seus rostos, mais jovens, vivem a emoção do reconhecimento e o jogo de identificações. Vinte anos depois, Coutinho conclui seu filme, um épico contado com clareza, paciência e perseverança, por alguém que confia no trabalho e nos dias. Uma experiência original na cinematografia brasileira”. 

No ranking dos melhores 100 filmes nacionais, elaborado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Cabra… está em 4º lugar. Outros dois filmes do cineasta compõem a lista: Edifício Master (2001) e Jogo de Cena (2007). O primeiro é um afetivo olhar sobre os moradores de um tradicional edifício em Copacabana: ao longo de uma semana, a equipe de filmagem conversou com 27 moradores do local. Um casal de meia-idade que se conheceu pelos classificados de um jornal, uma garota de programa, um ex-jogador de futebol. Vidas geograficamente entrelaçadas, registradas em um dos filmes mais lindos de Eduardo Coutinho. 

Já em Jogo de Cena (2007), o cineasta se debruça e brinca sobre a ideia de verdade e representação. O mote é simplíssimo: atendendo a um anúncio de jornal, 83 mulheres contaram suas histórias de vida em um estúdio. Em junho de 2006, 23 delas foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Em setembro do mesmo ano, atrizes interpretaram, a seu modo, as histórias contadas pelas personagens escolhidas. O filme é um tour de force sobre a complexidade da atuação e da criação cinematográfica. O filme reforça a genialidade criativa de Coutinho, bem como sua marcante sensibilidade.

Admirador expresso do documentarista, o crítico de cinema Pablo Villaça enfatiza que “Coutinho era um cineasta de alma gentil, que rapidamente se apaixonava pelos donos das histórias que ajudava a contar – e, se não se apaixonava, ao menos os respeitava. Enquanto outros (fantásticos) documentaristas frequentemente encurralam, alfinetam, julgam e até podem se mostrar superiores aos entrevistados, Eduardo Coutinho era incapaz de preparar armadilhas para aqueles que enfocava”. 

Tragicamente assassinado a facadas pelo seu filho durante uma crise psicótica em 2014, Eduardo Coutinho nos deixou aos 80 anos. O documentarista estava em meio à produção de Últimas Conversas (2015), obra póstuma editada por sua parceira de longa data, a montadora Jordana Berg, cuja versão final é assinada por João Moreira Salles. O filme busca entender como pensam, sonham e vivem os adolescentes de hoje. Coutinho, sem saber, em sua última incursão cinematográfica, lançou um olhar para o futuro. Nada mais simbólico para um artista cuja obra jamais morrerá.