Eduardo Coutinho e as gentes do Brasil
O documentarista completaria 89 anos em maio de 2022
Por Juliana Gusman
Para Eduardo Coutinho, fazer documentários era entabular uma boa prosa. Mestre da arte da conversa, ele completaria, neste 11 de maio, 89 anos. Além de se enveredar nos terrenos do cinema do real, Coutinho foi roteirista e diretor de ficções, teatrólogo, jornalista, crítico e, acredite quem quiser, até astrólogo – ainda que suas previsões para a revista piauí fossem norteadas menos pelos cosmos do que pelo seu afiado senso de deboche. O êxito que obteve no campo profissional não necessariamente espelhava os atropelos da sua vida particular: fumante inveterado, Coutinho era um sujeito de saúde frágil, dado às crises de pneumonia. Dizem os amigos que ele era um tanto atrapalhado e que se machucava com facilidade. Também tropeçava, com frequência, na autoconfiança. Atropelos à parte, tornou-se nosso mais importante e influente documentarista da virada do século XX para o XXI, não somente pelo método que depurou ao longo do tempo – ancorado, sobretudo, no dispositivo da entrevista – como pelo conjunto da obra que edificou em vida. Com carisma e lábia, Coutinho engrandeceu as gentes do país.
Elevou, por exemplo, o povo de Ouricuri, ocupando impensáveis três minutos e dez segundos ininterruptos de um Globo Repórter dos anos 1970 para mostrá-lo não somente como vítima da fome aplacada com macambira e batata de umbuzeiro, mas para evidenciar sujeitos conscientes e revoltados com a própria penúria. A veia social de sua filmografia também alçou à merecida importância Elizabeth Teixeira, a nonagenária líder camponesa de Cabra Marcado para Morrer (1984). A despeito da miudeza física, Elizabeth se tornou uma das maiores figuras femininas do documentarismo nacional.
Coutinho dignificou as muitas mulheridades do Brasil. Perdurando com a aposta na denúncia, apresentou-nos à força bonita de dona Jurema, de Boca de Lixo (1992), que ousou colocar em xeque o direito de Coutinho de filmá-la em condições que poderiam agravar estigmas e outros preconceitos. Mas Coutinho é Coutinho, e se achegou pelas beiradas com uma simpatia incomum – rabugenta, carrancuda e cativante. Foi com seu talento improvável para o acolhimento e a escuta que elaborou o seu “cinema de conversa” – iniciado com Santo Forte (1999) – ainda mais vocacionado para enaltecer pessoas comuns.
Dona Mariquinha, de O fim e o princípio (2005), consegue sumarizar a amplitude dessa guarida narrativa: verte lágrimas ao se despedir do realizador como quem perde o alento de uma convivência diária, embora eles tivessem acabado de conhecer. Outra personagem síntese foi Alessandra, a garota de programa de Edifício Master (2002), que depois de discorrer sobre os percalços que a acometiam cotidianamente, assume, com charme e chacota, seu pendor para a mentira. Mas Coutinho se importava menos com a precisão do fato do que com o sabor da oralidade, com o manejo astuto da contação de caso e com a fluência tranquila de um tête-à-tête prolongado, abraçando sem ressentimentos as inverdades sinceras.
Alessandra abriu caminhos para os reflexionamentos sobre a encenação de si, que engendrariam, inclusive, o eixo do trabalho mais tardio de Coutinho, que tem como grande marco o revolucionário Jogo de Cena (2007). Nele, relatos espontâneos e representações desses mesmos relatos – encarnadas por atrizes mais ou menos experientes – são imbricados, colocando em suspensão a autenticidade daquilo que se diz. Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra confirmam a enormidade das suas performances, não obstante sejamos confrontadas com outras imponentes atuações. A menos célebre Débora Almeida, ao fim de um convincente testemunho, abalou espectatorialidades ao virar-se para o público e revelar que surrupiou biografias alheias.
Os documentários de Coutinho foram envelhecendo com ele, no melhor dos sentidos. Cada vez menos apto às aventuras em campo, retraiu-se para os recintos fechados, mas só para expandir outros universos audiovisuais. Bastava-lhe duas cadeiras e uma câmera para desbravar o mundo. Suas Últimas Conversas (2015) foram com Luiza, que no auge dos seus seis anos de idade diz que “Deus é um homem que morreu”. Nesta lógica, apesar de tentador, só não é possível içar Coutinho à santidade cinematográfica porque não seria justo com as crenças de um ateu. Ademais, quem vira história não parte jamais.