La Veneno – a representação e as memórias visuais de Cristina Ortiz em série da HBO
Todos mereciam uma dose de “Veneno”, série da HBO Max sobre a ícone trans espanhola Cristina Ortiz, dirigida pela dupla Los Javis – Javier Calvo e Javier Ambrossi. Leia crítica da Mídia NINJA.
Todos mereciam uma dose de “Veneno”, série da HBO Max sobre a ícone trans espanhola Cristina Ortiz, dirigida pela dupla Los Javis – Javier Calvo e Javier Ambrossi. Que série incrível, uma produção corajosa e revelações impecáveis em atuação de mulheres trans. São 8 episódios que trazem a vida de Cristina contada por ela mesma à jornalista Valeria Vegas. Uma narrativa com o drama e entusiasmo de La Veneno que, por sinal, poderia ser tudo fantasia! Por que tão poucos pontuaram Veneno nas listas de 2020? Não é difícil saber…
Poderíamos falar que não há plataforma tão acessível para assistir já que a série da HBO Max não está disponível entre as outras da mesma rede em plataformas como NET Now. Balela, pois quem procura acha, a exemplo de diversos filmes e séries internacionais tão elogiados quanto restritos à deep web.
Também poderíamos falar que histórias como a de La Veneno parecem tão comuns entre as poucas mulheres trans que conhecemos. Cristina Ortiz poderia ser qualquer uma delas. Há um quê de verdade. A série, contudo, faz um trabalho notável em mergulhar no universo de uma personagem e encontrar ali uma singularidade que nos faz chorar e nos desperta. Um trabalho que não fez a televisão para Cristina Ortiz, ou muitos de nós quando se trata de mulheres trans, ao pasteurizar e tratar todas como se fossem uma só. A puta, a linguaruda, a extrovertida. Essa história de “identidade” ainda irá nos afogar, como diria Judith Butler.
Interessante notar como o drama espetacular contado por Veneno se dintingue e traça paralelos com o drama de Cristina da TV, apresentada ao público espanhol. Ela não deixa de ser a personagem peculiar, genuína e cheia de vida que encantou uma audiência. Contudo, sob as páginas de Valeria Vargas e as lentes dos Javis, Veneno sobreviveu ao “drama” da mulher transexual, na acepção mais crítica do gênero pois Cristina está longe de ser uma heroína. A garota dinamarquesa está com seus dias contados. Em Veneno, famílias tóxicas existem e não houve jornada possível que trouxesse o perdão da família. A cena de encontro entre Cristina e seus pais diante das câmeras é peculiar. Todos deveriam assistir à cena original, disponível no Youtube, e retornar à cena de Veneno. Para além de notar o trabalho genial de representação da atriz Daniela Santiago, a série revelou o cochico da mãe nos ouvidos de Cristina no primeiro abraço: “você é uma vergonha!”.
2020 foi um ano em que pudemos conhecer a história diversa de mulheres trans, reais ou fictícias, se despontando e tentando sair do circuito audiovisual LGBT, ainda que seja um circuito cada vez mais amplo e menos restrito. Só no Brasil, revelações como Anne Celestino (de Alice Junior), ou Thiessa Woinbackk (de Valentina). Nesse sentido, é incrível notar como a personagem de Cristina La Veneno foi vestida por outras mulheres trans, em um momento em que se reivindica cada vez mais a representação nas mídias. Há uma afetividade notável ali! As atrizes Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres trouxeram uma carga pesada de personalidade. Que atriz cisgênero poderia emprestar a Veneno o trabalho pessoal da transição corporal, como fez Jedet?
Há ainda que mencionar outras mulheres que circundam Cristina, como a primorosa (que atriz!) Paca La Piraña, que interpreta ela mesma no papel da melhor amiga de Veneno, com um final triste e emocionante. O protagonismo é de Lola Rodriguez, que interpreta a jornalista Valeria Vegas, que deu vida e narrativa a Cristina La Veneno e a quem a série busca identificar seu público logo de início. Pois somos um pouco Valeria ao buscar entrar no universo estonteante da protagonista e acabamos por descobrir mais sobre nós mesmos e o que fica do mundo depois de La Veneno. A autodescoberta de Valeria é um dos pontos fortes da narrativa e é uma pena que por vários momentos ela passa de raspão, como uma história que está sendo contada rápida demais, com lapsos temporais e o repentino sumiço de personagens.
Personagens que somem, por sinal, é uma característica da série. Podíamos falar da premiada atriz Lola Dueñas em sua participação no primeiro capítulo, responsável por levar a fama à Cristina Ortiz – e não o contrário como muitos poderiam imaginar. Neste caso, trazer a fama à série em uma participação de primeiro capítulo parece justificável. Mas podíamos também ter mais Amparo (Mariona Teres), a amiga da jornalista Valeria Vargas, com quem muitos poderíamos, enquanto público, ter uma relação direta.
Contudo, sabemos, há ainda mais motivos pra vermos uma série precisar de tanta resistência para encontrar seu lugar nos espaços de prestígio e crítica. Talvez nem precisemos apontar, mas pelo menos eu lembro o choro de Angelina Ross ao ver negligenciado todo o elenco feminino trans da série Pose quando anunciadas as indicações ao Emmy de 2020.