Editora Nua: novas narrativas na literatura independente
Editora Nua surgiu em 2018, com a proposta de facilitar a circulação de autorias e livros deixados de lado pelo mercado editorial
Por Kaio Phelipe
Através de uma ideia de Sabine Mendes Moura, autora e roteirista independente, a Editora Nua surgiu em 2018, com a proposta de facilitar a circulação de autorias e livros deixados de lado pelo mercado editorial por conta do racismo estrutural, da lgbtqfobia, dos neurotipismos e preconceitos ao redor dos quais o mercado editorial se constrói.
“Desde a minha época de professora, eu já queria que minhas turmas não produzissem apenas para não reprovarem. Queria ver seus textos rendendo frutos e não esquecidos na gaveta até a hora de serem jogados fora”, explica Sabine. “Pouca gente se vê como autor no Brasil, um construto entendido como branco, cis e heteronormativo. Já que o propósito da Editora Nua era ser uma plataforma autossustentável de lançamento, o primeiro passo foi pensar autorias. Decidimos firmar compromisso com autorias negras, LGBTQIAP+, neuroatípicas, PCD e ativistas. Foi nosso primeiro recorte: é a maioria da população brasileira, mas são as pessoas que têm menos acesso aos meios elitistas de publicação”, aponta.
Outra decisão foi publicar em gêneros variados. No catálogo da Nua, encontramos obras de poesia, dramaturgia, ficção e não-ficção, distribuídas em coleções de livros solo, ou seja, autores selecionades têm obra individuais publicadas na coleção mais adequada ao original enviado. O critério utilizado para a avaliação de cada original é, sobretudo, o lugar de fala, mas também seu potencial de inovação, seja em termos de estilo seja porque aborda temáticas pouco publicadas.
Na Coleção Palavra Crua, selo de poesia, os livros apresentam a linguagem de rua, dos saraus, da poesia falada e da experimentação digital, um estilo que, geralmente, não é considerado para a composição de livros solo.
Na Coleção Viva Voz, selo de não ficção, a ideia é questionar quem tem o direito de publicar relatos em primeira pessoa, compartilhando histórias e expertise.
“Contamos nos dedos quantas capas de relato não têm a pessoa, sempre muito branca, sentada em um banco de madeira, no meio da imagem e com uma nota dizendo que a escrita foi apoiada ou compilada por jornalista tal e tal. Normalmente, isso significa que o livro foi baseado em transcrições de gravações, um serviço caro, que está à disposição de pouquíssimas pessoas, altamente rentável no mundo contemporâneo da ‘construção de autoridade digital’”.
Autores publicades pela Nua, geralmente, estão em início de carreira e, por isso, não possuem público formado. Na busca por democratizar o acesso aos livros, as preocupações são muitas, incluindo como precificar cada exemplar. “Desde o início, a gente sabia que os livros não poderiam ser caros”, Sabine comenta. “Atualmente, tabelamos nossos livros em R$25,00 e procuramos fazer o melhor trabalho possível dentro desse orçamento. Não trabalhamos com capa dura nem oferecemos muitos dos brindes que se tornaram comuns no mercado, mas apresentamos um trabalho de qualidade, que atrai o público-foco”, afirma.
Sobre as plataformas de financiamento, grandes aliadas de editoras independentes, Sabine afirma que nem sempre é tão viável assim para projetos como o da Nua. “A meu ver, o Catarse é a melhor plataforma para campanhas de financiamento coletivo, em termos de infraestrutura, só que o nosso público, muitas vezes, não está lá, até porque boa parte dele não é tão versada no digital assim. Além disso, não dá para competir com quem está aposta no lado ‘entretenimento’ da literatura, por mais que eu mesma não goste muito da polarização entretenimento/ativismo. Então, é mais viável criar um link próprio de venda, pagar percentuais menores, mesmo que estejamos capitaneando campanhas mais humildes”, completa.
Também perguntamos sobre as conquistas recentes da literatura LGBTQIAP+ no mercado editorial. Quanto a isso, Sabine percebe os livros da Nua como um ponto fora da curva. “Não critico quem está trabalhando para criar possibilidades de lucrar com livros que tragam personagens LGBTQIAP+: avançamos muito nesse sentido, o que é sempre importante”, comenta. “No entanto, acredito que espaços como o da Nua e de outras independentes com linhas editoriais semelhantes é fundamental para entendermos a realidade da comunidade no Brasil. Há alguns meses, tivemos alguns títulos LGBTQIAP+ nas listas mais vendidos, endereçados ao público YA (Young Adult/Jovem Adulto, entre 15 e 25 anos). Vejo vantagens e desvantagens nisso. As vantagens estão no campo da reparação histórica, da construção de representatividade e de formação de leitores. Atingimos um público que não faz parte da sigla – um fenômeno muito interessante comercialmente falando. A meu ver, a pergunta que ficou é: para quem estamos escrevendo? Às vezes, o preço de entrar no mercado comercial é apresentar narrativas embranquecidas, heteronormativas, em linguagem muito simples e amplamente apoiada no digital. Até quando são apresentadas personagens negras ou queer, os códigos continuam brancos e heterossexuais.
Para Sabine, esse fenômeno não é recente e pode ser justificado, em parte, pelo costume do público leitor brasileiro em consumir autores estrangeires, quase sempre por meio de traduções. “Quando uma editora brasileira publica um texto estrangeiro traduzido, assume um risco muito menor, já que esses autores vêm com uma espécie de cota de marketing garantida, que encontra raízes em nosso próprio pensamento colonizado”. Segundo a editora, esse panorama influencia o que leitores consideram uma “boa escrita”: mesmo em narrativas LGBTQIAP+, esperam-se textos simples, influenciados pela lógica da tevê e das séries em geral, que não extrapolem o que já se vê como padrão, sob pena de perder público.
“Te dou um exemplo: há muitas narrativas ao redor do romance, da ideia de ‘comédia romântica’, em um padrão altamente americanizado que eu curto, mas acho difícil que represente a realidade de autores que recebo na Nua”, Sabine explica. “Não estou dizendo que precisamos cortar as relações românticas das histórias, mas, talvez, elas não sejam a maioria ou nem façam parte do horizonte complexo de desejos que vejo entre os originais que chegam até nós. A Nua evita isso, porque esse lugar já existe em outras editoras, e nós acreditamos que existem outros tipos de texto, outras literaturas tão brasileiras quanto, que não estão sendo consideradas.”
Recentemente, a editora lançou o Desnudes, um clube de assinaturas que pretende ampliar e fidelizar seu público, atraindo leitores dispostes a mergulhar nessas outras histórias. Há planos a partir de R$5,00 e é possível encontrar mais informações aqui. “Como a equipe é composta por voluntáries, o clube também é uma forma de apoiar nosso trabalho para que a editora siga existindo em 2023”, Sabine informa e finaliza reforçando o papel de cada um de nós na mudança do panorama literário brasileiro: “Com o tempo cada vez menor que temos para nos dedicar aos livros, resta saber: a quem você dará a honra da sua leitura?”