Nasci em um lar evangélico e fui uma adolescente cristã do sertão de Pernambuco. Migrei para São Paulo para trabalhar, primeiro como babá e, depois, como empregada doméstica. Além dessa travessia do Nordeste para o Sudeste, ousei fazer várias travessias internas. Já pensou se descobrir bissexual depois dos 30, com quatro filhos? Quando entrei no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em 2017, me descobri, ou melhor, me reconheci.

A resistência nas ocupações do MTST nunca foi só por moradia digna. É uma busca por direitos, pois o direito à moradia garante um conjunto de outros que vêm com ele. E quem são os mais impactados com a falta desses direitos? Em sua imensa maioria, mulheres, negros e LGBT’s. Não é por acaso – e nem por ironia do destino ou coincidências – que essas pessoas são as mesmas que constroem o movimento popular por moradia digna. Além de sofrerem com a falta de saúde, educação, emprego e renda, são elas também que fazem o enfrentamento ao machismo, racismo e a lgbtfobia que estão na estrutura da nossa sociedade.

Junho é mês do Orgulho e da visibilidade LGBTQIA+. Nossos corpos são políticos e nos colocamos em movimento porque precisamos ocupar todos os espaços e naturalizar as nossas existências. Não canso de dizer que as ocupações são espaços pedagógicos. Há uma rede real de apoio onde ninguém tem que dar a voz pra ninguém. Nós já temos voz e queremos amplificar ainda mais todas elas. Somos tantas e tão diversas; somos universos inteiros se somando em constante construção e desconstrução.

Foi numa dessas rodas de conversa do movimento, ouvindo outras mulheres, que me senti confortável para me abrir e entender minha sexualidade. Amar mulheres pra mim sempre foi transformador, mas nunca pareceu possível. Diante de tantas pessoas parecidas comigo e de outras tantas diferentes de mim, fui querendo compartilhar afetos, experiências e viver a liberdade de ser quem se é.

Na Ocupação Lélia Gonzalez, lá no ABC, ouvi a história de Alexia, trans que sofreu diversos ataques na própria casa e fora dela. Hoje, ela entende o preconceito como a combinação da falta de informação com a falta de educação. E acredita que a informação tem que chegar a todas as pessoas para acabar com estigmas enraizados na sociedade sobre as identidades das pessoas. Na ocupação, Alexia encontrou uma nova família, afetividade e acolhimento que recuperaram sua auto estima. Ela voltou a estudar e hoje cursa Enfermagem com bolsa Prouni.

Bruna é coordenadora de uma das ocupações do MTST que se reconheceu mulher trans muito nova. Aos 19 anos, lembra ter descoberto o movimento por moradia em uma fila de emprego. Após ter ficado horas na fila e sem a resposta positiva de uma oportunidade de trabalho por ser mulher negra e trans, se juntou ao movimento e encontrou uma rede de apoio e de pessoas com histórias iguais as dela. Noah, um homem trans, protegeu a sua vida e a de sua mãe – que havia sofrido uma tentativa de feminicídio – vivendo em um dos acampamentos.

Todas essas e outras tantas histórias, assim como foi a minha em uma dessas rodas de conversas, me mostram que essas narrativas não deveriam ter limites geográficos. As pessoas LGBT’s querem e devem existir como são, mas enfrentam muita rejeição e violência. Infelizmente, a maioria delas em situação de rua, sobretudo as pessoas trans, sentem a dificuldade de existir dentro de seus lares e muitas são expulsas pelos próprios pais. Além disso, a violência está sempre presente. Somente de janeiro a abril deste ano, o Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ registrou a morte de 80 pessoas de forma cruel.

Hoje tenho abertura com minhas filhas e meu filho para falarmos sobre diversos assuntos e sem qualquer tabu. Todos sabem que a minha luta é para que o diálogo chegue nas pontas, nas áreas onde estão todas as pessoas e as famílias dos LGBT’s em situação de vulnerabilidade social. Nas ocupações, sentimos as dores de quem sofre com o desemprego, com a saúde precária, com a falta de ensino, com a intolerância e a violência.

Como disse anteriormente, o direito à moradia carrega vários outros direitos com ele. O Orgulho LGBTI+ na periferia é construído longe dos holofotes, sem tanto glamour, mas tá, ali, resistindo no dia a dia. E segue firme de conversa em conversa, de olhar para olhar. É por isso que reafirmo que a informação sobre direitos, reconhecimento e orgulho não pode ser centralizada. Tem que estar além do “hype” das regiões mais nobres. “Sem a inclusão de vozes de diferentes lugares da cidade o debate torna-se esvaziado”. Quem diz isso não é nenhum figurão famoso, mas uma companheira, no olho a olho, com o pé no barro, com os olhos marejados e o coração cheio de sonhos.

A Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo é hoje a maior do mundo. E ocorre, sim, no país que mais mata pessoas LGBT’s no mundo. Somada à força da Marcha do Orgulho Trans, que acontece na sexta (09), e a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, no sábado (10), e outros tantos eventos que vão colorir São Paulo com nossas cores e nossa luta nesse mês de junho, a Parada do Orgulho vai ser gigante no domingo(11). Nossos corpos políticos estarão na rua, por dignidade, respeito e por nossas vidas. O orgulho é para todas, todos e todes em todos os espaços. Simbora nos reconhecer!

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