Foto: Sitah

A convite da Expedição Katerre, fomos até o Rio Negro, Amazonas, conectar saberes e conhecer essa que é uma das regiões mais míticas e exuberantes da Amazônia brasileira. Comigo estiveram muitas memórias de mestres contemporâneos, como o piauiense já encantado, Nêgo Bispo e o indiano Satish Kumar.

Quando a agenda é socioambiental e climática, um dos temas que ecoa fortemente hoje é a economia da floresta em pé: como viver da Amazônia, multiplicando sua abundância, em contraponto à noção desenvolvimentista sintética de inferno verde?

Aí entram os filósofos. Nêgo Bispo dissertou que desenvolvimento é sintoma da “cosmofobia social” – medo do sagrado – e que é preciso contracolonizar esta lógica a partir da noção de envolvimento. Envolvimento com a terra, “os animais, nossos corpos, nossas roças, formas de comer, de construir casas e, sobretudo, de falar e pensar”.

Assim, como trabalhar o envolvimento na perspectiva da sociobioecomia e da biointeração?

Simplicidade, beleza e economia em seu sentido original (eco, do grego “oikos”, é lar ou local de morada, e “oikonomia” é sua administração) são ferramentas indispensáveis no pensamento de Kumar.

Pois bem, aí vêm as experiências que conheci. Um ecoturismo envolvendo as comunidades, cooperando no (des)envolvimento de arranjos produtivos e criativos, potencializando experiências de restauração e dando visibilidade ao que de mais rico nossa gente tem e é, de maneira orgânica, junto e com.

Confluenciador, do nome confluência

Ruy Carlos Tone é personagem chave desta história. Ele é engenheiro e administrador, formado pela USP, empresário, atuante no setor da engenharia. Resumidamente, seu gosto vivo por viagens o levou também ao turismo e à Amazônia, em 2004. Entre os seus projetos na região estão a Expedição Katerre, o Mirante Gavião Lodge, o Flutuante Flor do Luar, todos em Novo Airão (AM), e ainda o restaurante Caxiri, em Manaus, e outros na bacia do Tapajós-Arapiuns.

Seu tempo investido na Amazônia, no entanto, não pára por aí. Desde 2015, é presidente do Conselho Curador da Fundação Almerinda Malaquias (FAM), organização da sociedade civil fundada em 2000 por Miguel Rocha da Silva e Jean-Daniel Vallotton, responsáveis por várias iniciativas socioculturais. Também se juntou ao Bicho de Casco, desenvolvido desde 2003, e ainda apoia muitos outros a partir de diálogos e parcerias, em especial, com lideranças indígenas, ribeirinhas e artistas.

Ruy Tone durante a Expedição Katerre, março/2024. Foto: Rodrigo Coutinho.

O resultado é a confluência de uma variedade de realizadores e iniciativas que juntos fortalecem a cadeia produtiva e criativa local, tendo como um dos principais vetores econômicos o ecoturismo de base comunitária, marcado por uma compreensão forte sobre o elo fundamental entre cultura, identidades, populações locais e território.

Estima-se que grande parte dos 21 mil habitantes de Novo Airão vivem da atividade do turismo.

A educação como base de formação e ampliação de consciência

Entre os projetos da Fundação consta o Educação Ribeirinha, que está construindo ou reformando – onde já existe um ponto de atendimento da prefeitura – um conjunto de 25 escolas, que atende 740 crianças e adolescentes com foco na educação básica das comunidades ribeirinhas de Novo Airão.

Iniciado durante a pandemia, busca fortalecer a relação das comunidades com o território do qual fazem parte. Isso é perceptível desde a concepção visual das escolas construídas. O projeto é assinado pelo Atelier Marko Brajovic, especialista em bioarquitetura, e recentemente foi premiado como melhor design público pelo iF DESIGN, um dos mais prestigiados prêmios de arquitetura e design do mundo.

 

Resignificando o imaginário da escola

Ruy conta que a proposta de investir em uma construção orgânica e sustentável com, por exemplo, teto alto, ventilação cruzada, e um visual “bonito e bacana”, buscou principalmente fortalecer a escola no imaginário das crianças. “Um dos fatores subliminares é que essa construção virasse um ponto de referência dentro da comunidade de tal forma que elas interpretassem a escola como um motivo de orgulho”, contou.

O projeto é ambicioso, conta com a participação da comunidade na construção e prevê três módulos, sendo que os menores, com uma sala, atendem até 15 estudantes; o segundo, com duas, até 30; e o terceiro, com três salas e um laboratório, até 60 estudantes. Todos com possibilidades de crescimento, caso haja aumento da demanda futuramente. À prefeitura, parceira da iniciativa, cabe o pagamento, mediante contrato, de professores, merendeiras e piloteiros para transporte fluvial para cada escola, além de insumos para merenda e gasolina para o transporte escolar. Ainda realiza a logística de distribuição.

Fotos: Sitah e Maihara Marjorie

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, como já dizia Paulo Freire

Depois desta etapa, entre os próximos passos, o mais desafiador é avançar no método pedagógico adequado à realidade territorial, neste caso, em parceria com poder público municipal, que é o responsável institucional pela agenda. A fundação já tem planos para isso.

Em sua sede em Novo Airão, por exemplo, onde há outro projeto importante, de educação complementar, eles convidaram a educadora terapeuta Paula Mourão, que propôs a partir do intercâmbio com a equipe da FAM, uma metodologia inspirada no método Waldorf. Neste caso, as crianças estudam em escolas regulares e fazem o contraturno na fundação. Em uma das experiências, construíram uma peça de teatro do zero: do roteiro à produção.

Já em relação à Escola Ribeirinha, a proposta é investir em apoio pedagógico, treinamento e capacitação do corpo docente, além do intercâmbio entre os professores ribeirinhos e da FAM.

A cultura na perspectiva simbólica, econômica e cidadã

Na comunidade Apurinã – Peenrêkore Pitapoka –  que visitamos, no Baixo Rio Negro, há um intercâmbio sendo implementado com sua escola municipal indígena Myry e também o estímulo à comunidade para promoverem a própria economia narrativa, contando melhor suas próprias histórias. Ao fim da visita, há uma lojinha de artesanatos indígenas feitos com peças da cultura e disponíveis para aquisição do público. A venda gera fundos para a comunidade, que tem como principal receita o Bolsa Família.

Loja da FAM e peça da marchetaria. Fotos: Divulgação

O mesmo ocorre na comunidade de Cachoeira, onde além da escola construída, visitamos a casa de farinha e uma loja de artesanato. Assim como a Associação dos Artesãos de Novo Airão, que manufatura esteiras, cestos, balaios, bolsas, luminárias, cadeiras revestidas de fibra e outras trançadas principalmente com tiras de Arumã e tingidos com tinturas e resinas da flora nativa. Trabalho lindo realizado pelos artesãos de lá.

Em ambos os locais também é possível comprar os produtos diretamente dos produtores nativos, com valor agregado a matérias-primas da Amazônia e técnicas ancestrais e/ou tradicionais das populações locais.

Marchetaria no dna da FAM

A fundação também investe em Marchetaria desde o início de seus trabalhos. A produção é realizada pelos artesãos na própria sede da FAM, que dispõe também de uma loja de comercialização de produtos.

A inclusão na rota do turismo garante uma parte do público nestes locais. Só no Parque Nacional de Anavilhanas são cerca de 50 mil visitações ao ano. Ainda há loja virtual no site da FAM acessível para qualquer localidade do país.

Gastronomia, símbolo de identidades

Um outro aspecto da valorização da identidade cultural amazônica é atestada na gastronomia dos restaurantes e barcos relacionados à Expedição Katerre. Itens da mesa amazônica estão presentes em todo o cardápio, no caso dos restaurantes, assinado pela chef Débora Shornik, que também colabora em parceria com Ruy, com a casa de comida indígena Biatuwi (@biatuwi), em Manaus.

Iguaria do restaurante Camu, no Mirante Gavião Lodge. Foto: Ana Paula Lustosa | Bolinho de tambaqui do Restaurante Caxiri | Uma das delícias do Biatuwi

Conservação da biodiversidade, restaurando o equilíbrio

Outro projeto de destaque é o Bicho de Casco, de conservação de quelônios, em contraponto à pesca predatória que é uma das ameaças locais. A iniciativa é liderada por Francisco Parede, presidente da Associação de Artesãos do Rio Jauaperi (AARJ), e pelo educador Paul Clark, fundador da escola Vivamazônia junto à sua companheira Bianca Bencivenni. Realizado na Resex Baixo Rio Branco-Jauaperi, atuam na proteção das quatro espécies ameaçadas na bacia do Rio Negro e afluentes: iaçá, irapuca, tracajá e tartaruga-da-Amazônia. Só esse ano, soltaram 4 mil filhotes. O projeto remunera os voluntários por cada tartaruga devolvida ao rio.

 

Durante nossa passagem pelo Parque Nacional do Jaú, na comunidade de Cachoeira, visitamos outra iniciativa, o Pé de Pincha, gerido pelo ICmbio. Ali encontramos a liderança comunitária Eduardo Elisio de Souza, o Sibá. No ano passado, só ele soltou em segurança na natureza cerca de 1.400 mil quelônios.

A força coletiva dos arranjos

Gilberto Gil, quando ministro da Cultura, defendia o seu papel simbólico, econômico e cidadão, e a necessidade do Estado realizar um do-in antropológico para avivar o velho e atiçar o novo, promovendo aquilo que de mais potente a sociedade brasileira possui em sua diversidade. Dessa forma, seria possível gerar também economias orgânicas e integradas à vida em sua abrangência. Neste sentido, esses arranjos que marcam a Amazônia de Novo Airão nos apresentam soluções baseadas na natureza, com impacto real na vida das pessoas.

Sem dúvidas, em meio a tantas exuberâncias naturais, esse conjunto de esforços são algumas delas. E isso não é pouco diante daquela mata verde úmida, dos espelhos d’água na superfície das águas negras do Rio, do amanhecer e entardecer cheio de cores, além do conversê interminável da bicharada colorida que canta, enquanto o vento sopra depois da chuva.

 

* Com colaborações de Heluana Quntas e Lidiane Barros.